A história da infância de Jesus chega ao final em Mateus 2.19-23. Nos versículos 19 e 20, o anjo volta a aparecer a José em sonho, dizendo-lhe que Herodes, que procurava matar Jesus havia morrido e que eles poderiam voltar à sua terra natal. Literariamente, Mateus é fiel à sua estratégia. José continua sendo o personagem ativo, quem recebe as mensagens, quem toma as decisões, quem conduz os caminhos do menino Jesus.
A volta de Jesus do Egito, como já dissemos ao comentar os textos anteriores, é uma referência simbólica a Moisés, que quando nasceu escapou à milagrosamente e foi criado no Egito. De lá, veio o libertador e legislador Moisés para tomar posse da terra de Canaã; também é do Egito vem o novo libertador e legislador de Israel (v. 21). Porém, há algo estranho na narrativa. Quando chegam na sua terra no sul de Israel (Judéia), a família fica sabendo que Arquelau, o filho do antigo Herodes Magno, estava governando a região (v. 22). José teve medo de voltar a Belém, e outra vez, o anjo lhe fala por meio do sonho para que vá para o norte do país, para a Galiléia; mais especificamente para a cidade de Nazaré (v. 23a). Temos que dizer que o argumento para esta mudança territorial é estranho. Historicamente falando, é verdade que o filho de Herodes, Arquelau, assumira o controle da Judéia depois da morte do seu pai. Ele foi o Etnarca da Judéia de 4 a.C. até 6 d.C. Porém, a fuga para a Galiléia não livra a família desta ameaça, como o texto pretende dizer, pois a Galiléia estava também sob o domínio de outro filho de Herodes, o famoso Antipas, que foi Tetrarca da região de 4 a.C. até 39 d.C.
Arquelau não durou muito no poder, foi deposto e o controle da Judéia passou a ser exercido diretamente pelos romanos. Tanto, que nos dias da morte de Jesus quem governava a região era o romano Pôncio Pilatos (26-36 d.C.). Mas Antipas, que herdou o domínio da Galiléia, ficou no poder por décadas, e nós ainda ouviremos falar dele como o Herodes que mata o profeta João Batista no capítulo 14. Mais estranho ainda, é que esse mesmo Herodes Antipas tinha fixado a sua capital na cidade de Séforis, na Galiléia. Séforis, embora não seja mencionada nos evangelhos, era na época a maior cidade da Galiléia, onde a presença imperial romana e a cultura grega eram mais presentes. E o mais curioso: Nazaré, para onde foge a família de Jesus, ficava a cerca de quatro quilômetros de distância de Séforis. Há até uma hipótese de que José e Jesus, como artesãos (o grego tekton pode referir-se a diferentes atividades manuais com ferro, madeira ou pedra), não teriam como exercer sua profissão em Nazaré, uma pequena aldeia de camponeses, mas provavelmente prestavam serviço à cidade de Séforis (Lima, 2010, p. 8-9). Então, é muito estranho o que nos diz o texto bíblico, que a família de José fugiu para a Galiléia por medo de Agripa, sendo que eles tornaram-se vizinhos do irmão dele, Antipas.
A verdadeira explicação para essa suposta fuga é outra, e está expressa no versículo 23b. Lemos que mais uma vez, o autor de Mateus acredita que tal fuga possui base bíblica. Na suposta profecia, o Messias deveria ser conhecido como Nazareno. O problema é que esta profecia simplesmente não existe em nossas Bíblias. Pode ser que o autor esteja citando uma tradição oral, ou uma versão que nós não conhecemos mais, ou pode ser que tenha entendido mal a leitura que algum dia ouviu na sinagoga. Lembremos que no mundo antigo ninguém tinha Bíblia para consultar em casa, e que estas citações, além de estarem baseadas na leitura de uma tradução do Antigo Testamento para o grego, a Septuaginta, eram feitas de memória. Enfim, parece haver um erro na citação mateana.
Para fechar a questão, o que nos parece realmente é que Jesus nascera em Belém apenas literariamente, ou seja, a história do seu nascimento na Judéia foi criada para atender às expectativas messiânicas de este seria um rei como Davi. Porém, a tradição preservava uma versão mais real, a de que Jesus nascera mesmo em Nazaré. O evangelista precisou reunir as duas versões, a histórica e a mítica, e ao fazê-lo, cria motivos estranhos para que Jesus vá de um lugar para outro. Apesar das incompatibilidades narrativas, esta versão tranqüiliza o autor, que pode chamar seu senhor por Jesus de Nazaré, ao mesmo tempo que crê nele como um novo rei davídico. Para ele, está explicado porque tanta gente chamava Jesus de nazareno, enquanto que o Messias, como sabiam, devia nascer em Belém.
Referência Bibliográfica
LIMA, Anderson de Oliveira. Roma e os Camponeses da Galiléia: Os Motivos que Proporcionaram o Nascimento do Movimento de Jesus de Nazaré. In. Revista Jesus Histórico, n. 4, vol. 1. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010, p. 1-14. Disponível em