A imagem acima é a leitura que Pietro Lorenzetti fez da narrativa evangélica conhecida como "Entrada Triunfal", por volta da primeira metade do século XIV EC. Este é o texto que vamos comentar nesta postagem, a partir da versão do Evangelho de Mateus.
No início do capítulo 21 de Mateus, o leitor atento
pode notar o retorno de um recurso literário já usado pelo autor nos primeiros capítulos
do evangelho. Nos referimos ao emprego de uma passagem do Antigo Testamento
como se fosse um anúncio antecipado de eventos da vida de Jesus (21.5). O
emprego dessas citações, como já vimos, quer acima de tudo legitimar o Jesus
que Mateus anuncia, fazendo-o especial por ser o instrumento pelo qual Deus
cumpre na terra seus planos e projetos. Citando passagens que eram lidas
tradicionalmente como profecias a respeito de uma figura messiância e
ligando-as à sua narrativa da vida de Jesus, Mateus está claramente fazendo
este Jesus que anuncia encaixar-se no papel de Messias para si mesmo e para outros.
Sabendo disso, é interessante observar que nas perícopes que giram em torno de
uma citação do Antigo Testamento, é a intertextualidade que delineia a
narrativa; isto é, aqui a citação é um marco, um elemento textual de forma
fixada que faz com que a história contada, e nela a própria vida de Jesus, se
adequem a seu conteúdo.
Essa mesma narrativa já existia em Marcos
11.1-11, que é a fonte de Mateus para os textos que estamos lendo. Mas Marcos não
trazia a citação de Zacarias 9.9 que Mateus incluiu, o que nos mostra mais uma
vez que o uso da profecia em associação com a vida de Jesus é uma estratégia
literária da qual Mateus se utiliza com mais frequência que os demais
evangelistas e de maneira própria. Marcos já apresentava sim uma citação do Salmo
148.1-2, que Mateus mantém. Isso quer dizer que estamos diante de um texto
particular, que não é totalmente moldado a partir da leitura que o autor faz do
Antigo Testamento, pois parte de um texto já escrito. Cabe ao leitor de Mateus
entender como e porque este evangelho faz o acréscimo intertextual no texto
original de Marcos, e quais as implicações dessa alteração.
Falando agora apenas do
conteúdo do Evangelho de Mateus, vemos que ele cita no interior desta perícope uma
passagem incompleta de Zacarias (Zc 9.9), que é apenas parte da perícope
original que trata de um contexto de guerra e até menciona a Grécia (Zc 9.9-17).
Notamos mais uma vez que a apropriação que o Novo Testamento faz do Antigo
Testamento, seguindo uma prática comum à literatura de seu tempo, é
exegeticamente reprovável. Isso, todavia, não deve nos servir como desmotivação
à leitura. Temos que partir das limitações e práticas literárias do texto para
compreender como o autor manuseou o material que tinha em mãos, e alcançar o seu
conteúdo. Aqui, temos que guardar que o autor de Mateus tinha em mente um
trecho de Zacarias que anunciava um “rei” que, aparentemente, em sua cerimônia
de posse, entraria humildemente em Jerusalém montado num jumento. Tudo nos leva
a crer que para determinados leitores essa passagem era um texto profético em
relação ao Messias libertador de Israel, e provavelmente era apenas isso o que
o autor do texto tinha em mente quando compôs a entrada de Jesus em Jerusalém a
partir do Antigo Testamento.
Podemos dizer que o
autor foi astuto ao recordar Zacarias e incluí-lo explicitamente na narrativa
em que Jesus, chegando a Jerusalém, manda dois discípulos buscar dois
jumentinhos no povoado que estava adiante (Mt 21.1-3). A profecia de Zacarias
em sua leitura “cristianizada” é citada a seguir (v. 4-5), e funciona bem, como
uma explicação para a atitude de Jesus. Pode até ser que o texto de Marcos já
contivesse implicitamente a relação de intertextualidade com Zacarias, que
neste caso, não seria uma citação, mas uma alusão (Lima, 2012, p. 111). Mateus estaria,
se assim for, apenas deixando explícita a utilização do Antigo Testamento que
já influenciara a narrativa sobre a chegada de Jesus a Jerusalém, provavelmente
com o intuito de melhorar ou tornar mais acessível o texto marcano.
Na narrativa, os
discípulos teriam de ir ao povoado e trazer a Jesus tanto a jumenta quanto o
jumentinho, e aí o leitor concebe a existência de outro personagem, o dono dos
animais. Embora esse “alguém” tenha que ser considerado como um possível
impedimento para a realização da tarefa dos discípulos, Jesus, o destinador, já
oferece antecipadamente o instrumento (objeto-modal), que neste caso são
algumas palavras, que os faria superar o empecilho e realizar com sucesso sua
missão. As palavras, literalmente traduzidas, são: “o senhor tem necessidade
deles”. Se, segundo Jesus, com essas poucas palavras o dono dos animais seria
convencido e permitiria que os discípulos os levassem, só podemos supor que no
nível narrativo o dono dos animais compreenderia tais palavras e, consciente da
profecia e do momento histórico, se converteria de adversário a ajudador, ou numa
linguagem mais técnica, de oponente a adjuvante (Lima, 2012, p. 73). Assim, podemos
dizer que a primeira parte desta perícope sobre a entrada de Jesus em Jerusalém
começa com um problema, o de realizar expectativas messiânicas extraídas da
leitura fragmentária de Zacarias na vida dos personagens. Jesus é o motivador,
aquele que quer cumprir as escrituras e que incumbe seus discípulos de uma
missão; os discípulos atuam neste caso como seus representantes, aventureiros
que deveriam conseguir jumentos de estranhos. Todavia, Jesus não os enviou de
qualquer maneira, mas lhes deu as “palavras mágicas”, que segundo nossa intuição,
eram capazes de convencer o possível adversário, o dono dos animais, de que ele
estaria contribuindo com a realização da profecia. Como vemos, tudo gira em
torno dessa expectativa messiânica derivada da leitura que faziam de Zacarias,
e Mateus, com sabedoria agora mais evidente, quis citar o texto do profeta
exatamente aqui, no centro do enredo, quando os discípulos estavam para encontrar-se
com o possível adversário.
Os versículos 6 e 7
mostram que tudo saiu como o planejado. Ainda que a narrativa não mencione o
momento em que os discípulos encontraram os animais e talvez tenham conversado
com o dono deles, ficamos sabendo que eles realizaram com sucesso seu dever, e
Jesus pode montar nos animais antes de entrar na cidade de Jerusalém. A omissão
daquele momento aparentemente importante no enredo, do encontro dos discípulos
com os animais e seu proprietário, nos mostra que tal conflito era uma
possibilidade apenas imaginada, e sua menção foi importante para que a
narrativa fosse mais coerente enquanto imitação da vida; mas obviamente era
mais importante falar que Jesus entrou em Jerusalém sob um jumento, em cumprimento
da profecia de Zacarias, do que nos contar como foi que tudo aconteceu.
A ação de Jesus trazia o
texto do Antigo Testamento à memória. Esse era o intuito do autor da narrativa
marcana, e sua estratégia funcionou com o autor de Mateus. Internamente, o
texto também evidencia quão forte e de fácil entendimento era a relação
intertextual. Não só os discípulos e o possível dono dos animais entendiam o
que Jesus estava fazendo, mas uma “grande multidão” viram a chegada de Jesus
sob o jumento como o cumprimento da profecia messiânica, e por isso
demonstraram sua alegria e reverência estendendo capas e ramos em seu caminho,
enquanto recitavam o Salmo 118.26 que é uma exaltação pela vinda do “filho de
Davi”, ou seja, pelo novo rei de Israel que vem em nome do Senhor (v. 8-9).
Muitos leitores falam
desse texto que estamos lendo e da ampla aceitação de Jesus em Jerusalém em
oposição à rejeição que o mesmo Jesus sofre mais adiante, quando é julgado e
condenado à morte. Parece haver uma grande transformação na opinião da
multidão, coisa que é difícil de explicar. Mas se a multidão exulta ao ver
Jesus entrando em Jerusalém sob o jumento, é porque, ao menos no âmbito literário,
o identificam com o Messias e rei que conceberam a partir de Zacarias. Todavia,
Jesus não vai cumprir a profecia, não vai fazer explodir a guerra santa em
Jerusalém, não vai trazer paz imediata ao mundo, não vai derrubar o império
dominante... Jesus vai ser rejeitado pelos líderes religiosos, vai ser preso e
humilhado pelo império, vai morrer crucificado sem demonstrar qualquer poder de
reação; talvez por isso, aquela multidão passará a vê-lo como um falso messias,
e com o mesmo entusiasmo com que o exaltou, o rejeitará. O messianismo de Jesus
trilhou um caminho diferente do esperado, essa é a mensagem que a paixão de
Cristo, que culmina com sua ressurreição, quer mostrar. Era natural que a
multidão que esperava por um novo rei guerreiro se decepcionasse, que a memória
de Jesus não fosse amplamente cultuada em Israel, e é exatamente aí que o
discurso dos Evangelhos querem interferir, levando as pessoas a aceitar outra
leitura das profecias messiânicas, leitura esta que encaixaria Jesus no papel. A
culpa pela incompreensão do povo não será imputada sobre a má exegese que se
praticava, nem sobre a própria multidão incrédula, mas sobre os líderes
religiosos que tinham acesso às escrituras, que ensinaram o povo de maneira
equivocada, e que por isso não reconheceram o ministério do Messias verdadeiro.
Mas a história da
rejeição de Jesus em Jerusalém ainda está por vir. Nossa narrativa continua sob
a expectativa de que aquele homem que entra na cidade montando num jumento era
o Messias. Curiosamente, lemos nos últimos versículos (v. 10-11) um diálogo
entre dois personagens coletivos: a multidão e a cidade. A multidão entendeu a
encenação de Jesus, recebeu-o como Messias na entrada da cidade, mas a cidade em
si parece curiosa, ignora a identidade de Jesus. Esta cidade de Jerusalém
parece nunca ter ouvido falar do profeta da Galiléia, e talvez, por ser formada
por sacerdotes, escribas, soldados, e pela aristocracia de forma geral, mostrar-se-á
mais resistente a Jesus do que a multidão, que de alguma forma o acompanha
desde o início.
Enfim, este texto que
geralmente é chamado de “Entrada Triunfal”, na verdade mostra Jesus assumindo o
papel de um Messias que é rei, mas que é simples; que é exaltado, mas que não
possui a pompa de uma verdadeira realeza terrena. Outros estudiosos já
ressaltaram que, diante desse gesto, era impossível não compreender que Jesus
entrava em Jerusalém com pretensões grandiosas, e que por isso mesmo, tal
entrada era o primeiro motivo para condenar Jesus por sedição. Esse tipo de
leitura é bastante enfatizada por Richard A. Horsley e Neil A. Silberman, que contudo,
erram por sempre imaginar de maneira fundamentalista, o significado dos reais
atos de Jesus que teriam precedido a narrativa (2000, p. 83-84). Os autores parecem
exagerar quando veem Jesus parodiando num teatro de rua as entradas triunfais praticadas
pelas autoridades de seu tempo, ao passo que se esquecem dos evidentes convites
para que leiamos o texto a partir de Zacarias. Nós vemos a narrativa, e não os
possíveis fatos, e nos ocupamos mais com as explícitas relações entre as ações
dos personagens e a profecia do Antigo Testamento do que com as hipóteses de
que Jesus estivesse fazendo tudo apenas para deslegitimar os poderes de então.
Um comentário:
Gostei muito dessa reflexão
sobre a entrada de Jesus em Jerusalém
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