sexta-feira, 30 de março de 2012

PAULO, ERUDITO OU ANALFABETO?

Introdução
Todos que porventura decidem estudar a literatura paulina com dedicação acabarão se defrontando com esta questão que já expusemos desde o título. Sabemos que tradicionalmente Paulo é considerado um erudito, para muitos, o primeiro grande pensador da história do cristianismo. A imagem ao lado, de Paulo com um livro moderno, ilustra o funcionamento desse imaginário religioso popular. Porém, atualmente há um grande número de estudiosos que, levando à sério a questão, estão defendendo a opinião de que Paulo era um homem bem mais simples do se imagina. Isso não quer dizer que ele não tenha sido um importante pensador, doutrinador, mas que talvez ele não tivesse um nível de escolaridade tão elevado quanto hoje imaginamos.
Não pretendemos resolver a questão, oferecer a resposta definitiva que tantos outros mais dedicados à pesquisa paulina não conseguiram. Nosso objetivo é averiguar alguns dos motivos que levam estes estudiosos a fazer este tipo de afirmação tão contraditória em relação àquilo que a igreja sempre acreditou. Antes de mais nada, é importante saber que a desconfiança em relação ao retrato tradicional de Paulo se dá pela maneira como estes estudiosos leem Atos dos Apóstolos.
Quem disse que Paulo era um erudito?
A verdade é que todos nós somos induzidos pelo cânon do Novo Testamento a ler a história de Paulo em Atos antes mesmo de ler as cartas paulinas, e isso já nos impõe uma série de pressupostos que depois, inevitavelmente, influenciam nossas leituras. Aprendemos que Paulo era um homem erudito lendo Atos, que o admira e o retrata como um grande herói (At 22.3 é usado para isso, embora seja duvidoso que a educação em questão tenha caráter escolar). Todavia, há muitos motivos para pelo menos desconfiarmos de muitas das afirmações de Atos em relação a Paulo. Por exemplo, depois de falar da conversão de Paulo no capítulo 9, Atos diz que Paulo fora logo a Jerusalém, informação que não condiz com o que lemos na carta paulina aos gálatas (Gl 1.15-19).
No capítulo 15 de Atos nós encontramos a narrativa do chamado “concílio de Jerusalém”, onde Paulo entra em acordo com os apóstolos mais antigos e recebe deles algumas recomendações típicas da religiosidade judaica (At 15.28-29). Atos quer transmitir ao leitor a impressão de que não haviam divisões entre Paulo e os apóstolos de Jerusalém (At 16.4). Porém, Gálatas 2.10 não menciona nenhuma dessas exigências, mas fala de um pedido feito para que Paulo auxiliasse de alguma maneira os pobres das comunidades de Jerusalém.
Por fim, se lermos Atos atentamente notaremos que Paulo, embora influente pregador, não é reconhecido como apóstolo em nenhuma passagem do livro, e isso se deve aos critérios de apostolicidade de Atos, que podem ser lidos em 11.21-22. Segundo este texto, um apóstolo tinha que ter conhecido Jesus pessoalmente e andado com ele durante todo o seu ministério. Portanto, o ministério apostólico para Atos só existiu nos primórdios da igreja, e morreria junto com aqueles líderes. Atos também exige que o apóstolo tenha sido testemunha da ressurreição, e qualquer dessas exigências desqualifica Paulo. Por outro lado, o próprio Paulo se diz apóstolo, e melhor que Pedro e os outros, não escolhido por homens, mas por Jesus Cristo (Gl. 1.1, 11-12).
De maneira bem rápida e simples, tentamos mostrar que para os estudiosos em geral que buscam informações mais confiáveis a respeito do Paulo histórico, Atos é um livro problemático. Certamente há nele dados relevantes, mas sua leitura deve ser feita com reservas, e sempre que isso for possível, em comparação com aquilo que nos diz as cartas, fontes mais diretas para acesso a Paulo.
Então, deixando Atos de fora da questão, quais fontes temos para falar de Paulo? Também é consenso acadêmico que apenas sete das cartas do Novo Testamento podem ser consideradas autenticamente paulinas. Os motivos são vários: há informações contraditórias, como a escatologia oposta de 1Tessalonicenses e 2Tessalonicenses, há preocupações cristológicas e eclesiológicas que nos remetem a períodos em que as comunidades já estavam mais “institucionalizadas” e hierarquizadas, coisa que não condiz com o contexto paulino original, e há muitas diferenças no próprio estilo dos textos. Enfim, esse é outro debate, talvez até maior do que esse em que nos envolvemos, e que merece um trabalho à parte (Vaage, 2009; Heyer, 2009, p. 1-12). Por hora basta lembrar que todas as informações sobre Paulo devem, para o contexto acadêmico, ser tiradas de sete cartas, que seriam as indiscutivelmente paulinas. São elas: Romano, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1Tessalonicenses e Filemon.
Que evidência há para dizer que Paulo era indouto?
Há uma passagem que realmente parece indicar que Paulo admite não ser um homem letrado. Trata-se de 2Coríntio 11.6, cuja tradução literal pode ser assim: “... e se porém indouto para a palavra, mas não para o conhecimento...”. Paulo diz que é indouto para a palavra (idiotes to logo), mas as Bíblias que geralmente lemos não nos deixam notar isso, pois traduzem o mesmo substantivo de diversas maneiras, menos da maneira que revela que Paulo é um “não capaz” ou “não iniciado” na palavra (que pode ser escrita ou discurso). Isso é curioso, posto que noutro texto paulino o mesmo termo reaparece e aí sim nossos tradutores o fazem como sugerimos.
Estamos falando de 1Coríntios 14.16, quando Paulo diz que aos discípulos que se eles bendisseres em espírito, “como os indoutos dirão amém para o teu agradecimento depois?”. Neste caso, fica claro pelo uso do mesmo substantivo que Paulo está se referindo àquele que não entendem, que são incapazes de compreender aquela adoração extática. Voltando ao texto anterior, tudo nos leva a crer que ele está dizendo que não é alguém capacitado para as letras, mas que é para o conhecimento (gnosis).
Se Paulo não está falando de sua incapacidade de “escrita”, está pelo menos se referindo ao discurso, provavelmente às técnicas de retórica que também faziam parte da educação, e que os coríntios não viam em Paulo. Partindo daí a hipótese de que Paulo não era um homem letrado pode ser defendida com outros argumentos. Talvez isso também esteja em pauta quando 2Coríntios 10.10 (a mesma carta) traz uma suposta reclamação dos coríntios: “... pois as cartas, dizem (são) pesadas e fortes, mas a presença (parousia) de corpo fraca e a palavra desprezível”.
Não é difícil entender como seria possível Paulo demonstrar alguma erudição nas cartas e nenhuma pessoalmente. As sete cartas paulinas, sem exceções, sempre dizem abertamente que Paulo não as produziu sozinho. Na maioria delas Paulo se apresenta como autor ao lado de outros. Em Filipenses, por exemplo, Paulo e Timóteo são os autores (Fl 1.1), mas no decorrer do texto Timóteo desaparece, e ficamos com a impressão de que há apenas um autor na carta. Qual seria a participação de Timóteo na autoria da carta? O que Timóteo fez para que merecesse um lugar como autor? Nossa resposta é: Timóteo deve ter escrito a carta. Acreditamos que Paulo era o mais ativo pensador da carta, o mais influente mensageiro, mas seria natural que aquele possuísse maior habilidade com a arte de escrever colocasse as palavras no papiro. Timóteo, que segundo Atos 16.1-3 era um gentio de Listra que aparentemente tinha por pai um homem de posição social elevada, pode muito bem ter redigido toda a carta aos filipenses, usando as técnicas de argumentação e gramática que, talvez, o próprio Paulo não dominasse tanto.
Há outra referência muito significativa para esta hipótese, a de que as cartas paulinas pudessem ser escritas por pessoas diferentes, espécies de secretários ou escribas que estavam na companhia de Paulo. A carta aos romanos começa com a apresentação de apenas um autor, Paulo. Mas no último capítulo outros personagens aparecem, e vemos que outros estão com o apóstolo no momento da criação. Em especial, Romanos 16.22 diz: “Saúdo-vos eu, Tércio, que escrevi esta carta no senhor”. Aqui a evidência é muito clara, e somos obrigados a reconhecer que outra pessoa tinha o controle da pena durante a composição da carta, que apesar disso, fora atribuída principalmente a Paulo. Isso não parece ser motivo de escândalo para aquele tempo.
Apesar de tudo, não precisamos defender a partir de agora que Paulo era um analfabeto. Talvez ele tenha estudado, mas não dominasse a escrita tão bem quanto esses irmãos a que nos referimos. Isso é natural, já que saber ler não significa que uma pessoa também saiba escrever; além do que, naqueles tempos só seria um bom escritor quem soubesse escrever com letras bonitas e pequenas, para ser legível e economizar papiro, material importado do Egito que certamente não era tão barato quanto os nossos cadernos de hoje.
Quem sabe, Paulo fosse um homem letrado, mas que por alguma limitação física, talvez na visão como alguns acreditam, já não se considerasse apto para redigir uma longa carta? No final de três das sete cartas paulinas nós encontramos estranhas referências à escrita de Paulo. Em 1Coríntios 16.21, Paulo diz que escreveu a saudação de sua própria mão, provavelmente porque não escreveu todo o restante da carta. Em Gálatas 6.11 ele também diz escrever a saudação final, e com “grandes letras”, talvez indicando sua inabilidade com o manuseio da pena. Por fim, Filemon há uma referência à “própria mão” de Paulo no versículo 19.
Depois de tudo isso, podemos concluir que Paulo, ainda que tenha tido algum tipo de educação formal, não foi o grande erudito que geralmente se imagina. Ele parece saber escrever, pelo menos um pouco, mas dificilmente é o responsável direto pelas cartas, e por conta disso não adianta muito avaliar o grau de erudição desses textos em busca de informações sobre Paulo. Importante é sabermos que ele, erudito ou não, foi um líder influente, um formador de opiniões que deixou marcas definitivas na história do cristianismo. Suas cartas, certamente refletem seus pensamentos, porém, também trazem opiniões alheias, mais uma vez nos fazendo lembrar que o texto sagrado é um produto de autoria coletiva, da comunidade, e não apenas dos grandes apóstolos.
Referências Bibliográficas
CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Em Busca de Paulo: Como o Apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas, 2007.
HEYER, C. J. den. Paulo, um Homem de Dois Mundos. São Paulo: Paulus, 2009.
QUESNEL, Michel. Paulo e as Origens do Cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2008.
SAMPLEY, J. Paul (org.). Paulo no Mundo Greco-Romano: Um Compêndio. São Paulo: Paulus, 2008.
VAAGE, Leif. Introducción Metodologica a los Escritos de Pablo. In. RIBLA, 62. Quito, 2009.

sexta-feira, 23 de março de 2012

LENDO FILIPENSES: 1.3-6


Expressões de alegria e gratidão (1.3-6)

A carta em si começa a partir do versículo 3, e para sua análise, vamos trabalhar as estruturas internas do texto, dissecando as frases uma a uma e então fazendo considerações preliminares sobre seus conteúdos. Começaremos dividindo os versículo 3 a 6 em três partes:

Agradeço a Deus quando lembro de vocês

Nas minhas orações por vocês

Com alegria

Por causa da cooperação com o evangelho (?)

· desde o primeiro dia

· até agora

Estou convencido...:

aquele que começou boa obra (?)

vai completá-la

até o dia de Cristo

Estes esboços nos apresentam uma tentativa de dissecar o conteúdo dos versículo 3 a 6. Primeiro, nota-se que dividimos o conteúdo em três unidades, e isso já facilita nossa análise, pois os comentaremos agora individualmente.

A primeira unidade, que vamos chamar de A, dá início à carta com uma exultação, e é composta pelos versículos 3 e 4. O autor expressa sua alegria, sua satisfação em relação aos destinatários (os filipenses) em sua linguagem religiosa. Ou seja, é orando e agradecendo a Deus que ele demonstra seus sentimentos. Assim, olhando para o nosso gráfico, fica claro que separamos a “alegria” e o ato de agradecer a Deus, por nos parecerem os pontos mais relevantes. Depois, temos alguns detalhamento, onde ficamos sabendo que quando Paulo fala de “agradeço a Deus”, ele está falando de um formato de oração, o que especifica temporalmente quando ele faz tais agradecimentos. Por fim temos os pronomes, que só indicam aos leitores (coletivamente), que é por eles que se agradece. Em resumo, a ação envolvida, a oração, é um elemento secundário nesta primeira unidade; central mesmo é o sentimento de satisfação, a alegria que impulsiona a ação. Assim, A nos fala, acima de tudo, dos sentimentos favoráveis do apóstolo em relação aos filipenses.

A segunda unidade (B), já não fala apenas de sentimento. Diríamos que o que temos agora é uma explicação para aquele sentimento de alegria. Os filipenses cooperam com o evangelho, e é isso que faz Paulo tão feliz. Obviamente, o texto por si só não nos oferece ainda recursos suficientes para expliquemos o que esta “cooperação”, pelo que, incluímos uma interrogação no texto entre parênteses. Fica esta dúvida para adiante, e esperamos que noutro ponto desta carta o texto nos dê indícios para a interpretação, evitando assim que nos envolvamos em especulações. O que sobre desta segunda unidade textual são também expressões temporais, que indicam que a tal cooperação com o evangelho por parte dos filipenses é contínua. Ou seja, eles cooperam desde o dia em que conheceram o evangelho, até o momento em que a carta estava sendo escrita. Ainda que não tenhamos condições de entender que a tipo de ação o texto se refere, já podemos dizer que esta segunda parte, abandonando a exultação, os sentimentos, passou diretamente para as ações; então, o que temos nesta segunda unidade é o esclarecimento de que boa obra Paulo se alegra. Se A fala de sentimentos, B fala de obras.

Chegamos à parte C, a terceira porção de texto que separamos em nossa reestruturação formal. Quando Paulo diz que está convencido, temos que nos lembrar de que esta certeza é o resultado do que já foi dito; ou seja, os filipenses cooperam com o evangelho continuamente, e isso alegra o apóstolo e o faz crer que Deus também vê tais obras da mesma maneira. Aqui, temos novas expressões que não se explicam por si mesmas. Primeiro o pronome demonstrativo “aquele”, que imaginamos ser Deus; depois a “boa obra”, que permanece subjetiva para nós. Evidente são as indicações temporais que ligamos de forma vertical na estrutura. Paulo acredita que uma “boa obra” estava sendo feita pelos filipenses também, e por conta do bom desempenho deles na cooperação com o evangelho, mostra-se confiante de que esta obra será completada, e isso até o “dia de Cristo”, que deve ser a parousia.

Nesta parte C misturam-se as expectativas escatológicas de Paulo aos seus sentimentos pela comunidade filipense. Ele se alegra pelo que fazem, mostra-se muito satisfeito, e imagina que tamanha fidelidade só pode resultar em retribuição divina, retribuição que curiosamente não lhes viria na “vida eterna”, mas em breve, antes da volta de Cristo. Enfim, os filipenses haviam contribuído com o evangelho, como efeito de tal atitude, Paulo sente-se satisfeito, e demonstra a esperança de que tais gestos resultarão em recompensas da parte de Deus

quarta-feira, 21 de março de 2012

O QUE É “OBRA DE DEUS”? – UM MANIFESTO PELO SACERDÓCIO PESSOAL

A pergunta é: o que é “obra de Deus”? Esta questão volta a ser relevante quando nos sentimos agredidos por líderes religiosos que dizem fazer a “obra de Deus” enquanto manipulam pessoas sem instrução e arrecadam fortunas. Tudo o que se pede é em nome de Deus, e mais especificamente, o dinheiro que se exige do público religioso é para a “obra de Deus”. Então, volto a perguntar: o que é “obra de Deus”?

Sem procurar muita profundidade, diríamos que essa prática é uma herança cultural de antigas formas de religiosidade. Nas páginas da Bíblia, e também entre os povos não contemplados em suas narrativas, houveram inúmeros homens (principalmente homens, já que as mulheres dificilmente eram dignas de fazer a “obra de Deus”, pelo que até Deus é imaginado como um homem) que atraiam o público por serem os “fazedores” da “obra de Deus”. Primeiro os videntes e curandeiros, que de maneira bem popular evocavam forças sobrenaturais e colocavam o mundo em contato com os deuses. Mas nos referimos principalmente aos sacerdotes em suas mais diferentes formas, que em todas as partes do mundo existiram e trabalharam na “obra de Deus”. O que faziam os sacerdotes? Eles eram intermediários entre os deuses e os homens, diziam-se incumbidos da responsabilidade de guiar os homens na direção desejada pelos deuses. Eles interpretavam o mundo, e em tempos de seca, de guerra, de pragas, aplacavam a ira dos deuses com ofertas em nome de todos.

Se olharmos para o sacerdócio dos tempos do Antigo Testamento, por exemplo, hoje concordaremos que o que eles faziam e chamavam de “obra de Deus” era basicamente derramar sangue. O sacrifício era a principal atividade religiosa desses homens, coisa que obviamente, nos parece antiquada e não divina. Então, quem lhes mandou fazer tais coisas para os deuses? Ou ainda, quem lhes elegeu ao sacerdócio?

É difícil dizer como tudo começou, mas não demorou muito para que percebessem quão vantajosa podia ser a atividade sacerdotal. Pedir que o povo trouxesse recursos para alimentar os deuses mostrou-se uma fonte de lucro pessoal, e por isso, nos dias de Jesus os líderes religiosos eram os homens mais ricos da sociedade judaica. Assim, também a eleição de sacerdotes se tornou uma disputa por privilégios; e aquela linhagem sacerdotal idealizada, formada exclusivamente por descendentes de Arão, havia sido substituída inúmeras vezes, de modo que quem fosse mais dedicado aos serviços políticos, auxiliando os poderes estrangeiros no controle da população local subjugada, era quem tinha melhores condições de manter o sacerdócio.

A “obra de Deus”, infelizmente, sempre atendeu aos interesses humanos. Os obreiros não eram escolhidos por Deus, claro, e uma série de interesses escusos sempre permeou a atividade religiosa. Tais motivos provocaram tantas divisões, tantas batalhas internas, tantos escândalos... Até que mais recentemente os reformadores, revoltados com os abusos dos líderes do catolicismo romano criaram uma nova forma de religiosidade, que estava baseada numa utopia: eles defenderam o “sacerdócio universal” dos crentes. Ou seja, todos podemos ser sacerdotes, e com isso não precisamos nos curvar àqueles que distribuem entre si títulos honoríficos e passam a vida a explorar a fé dos “leigos”. Cada pessoa poderia, de acordo com essa utopia, ser um sacerdote, buscar por si mesmo o contato místico com a sua divindade, e mais, podia ter acesso direto ao texto sagrado em seu próprio idioma. Mas a utopia não pôde revolucionar a religião cristã tanto quanto se imaginava, pois as hierarquias eclesiásticas não desapareceram, talvez porque tantos milênios de opressão religiosa nos tenha marcado sobremaneira.

E hoje, como anda a tal “obra de Deus”? Agora os sacerdotes (eles mudaram o nome da atividade para não notarmos quão sanguinários ainda são) não aceitam mais bois, ovelhas e cereais, eles querem dinheiro vivo, para não ter que queimar nada no altar. Dizem que você deve “se sacrificar” um pouco pela “obra de Deus” depositando alguma quantia numa conta bancária, para que eles administrem este valor na “obra de Deus”. Na verdade, o dinheiro é investido nos próprios programas de TV e nas construções dos seus templos. Isso é “obra de Deus” para eles, já que por trás de tais empreendimentos sempre dizem que a divulgação do evangelho para a salvação das pessoas é o objetivo. Todavia, não há como negar que maiores templos e mais programas de TV não só atraem mais pessoas, como mais dinheiro. Quem tem fé, pode acreditar que o objetivo é realmente o evangelho (embora na maioria das vezes o tempo dedicado ao seu anúncio seja pequeno, e a qualidade das ministrações ridícula), mas quem não tem, vai sempre entender que o enriquecimento pessoal e o fortalecimento empresarial são as verdadeiras “obras de Deus” que os tais líderes estão empreendendo.

Vê-se que o argumento religioso continua sendo bom, eficaz. Todavia, há uma grande falha em todo esse sistema religioso, que é o próprio direito de ser sacerdote. Os líderes religiosos de hoje precisam legitimar suas atividades, então criam vínculos falsos entre si e os antigos sacerdotes. Por exemplo, dizem que a “casa do tesouro” de Malaquias agora é sua própria igreja, dizem que os dízimos que cobram é o mesmo dos textos bíblicos. Mas a verdade é que eles estão reconstruindo as arcaicas e abusivas instituições religiosas que os profetas condenaram, que Jesus menosprezou, que os reformadores, ao menos na teoria, quiseram transformar.

Agora exponho a verdade (pelos menos a minha): não existem sacerdotes! Afirmo que ninguém foi chamado por Deus para exercer controle religioso sobre a vida dos outros, que Deus não criou hierarquias religiosas, nem ordenou que nos submetêssemos aos tais. Se alguém julga ter algo a oferecer, a ensinar, alguma experiência que pode auxiliar outros em sua busca religiosa, que seja um mestre, e não um sacerdote; que seja um companheiro de caminhada, não um intermediário entre os homens e os deuses. Insisto que se existe alguma “obra de Deus”, esta não está sob a administração desses líderes, e deixo esta orientação: prega o evangelho por ti mesmo, ajuda o próximo com teu dinheiro, mas não se sinta obrigado a deixar nas mãos de outros homens tal responsabilidade.

Sente-se incapaz de assumir o sacerdócio da tua vida? A Bíblia está aí para que você leia. Não sabe ler? As escolas estão aí para que aprendas. Ou então, em vez de pedir que alguém administre tua vida religiosa, peça que o ensine a ler a Bíblia, para que adquiras autonomia e sirvas a Deus sem ser controlado por outros.

Pronto, coloquei minha utopia! Ela vai mudar alguma coisa? Não sei, eu estou mudando a partir dessas reflexões e me sinto livre. Hoje realmente não preciso prestar contas aos homens sobre o que acredito ou o que digo. Penso que tenho sim responsabilidades para com outros seres-humanos, e que Deus espera algo de mim, todavia, não me quero ajuda de sacerdotes, e nem quero me tornar um sacerdote. Eis o meu manifesto pelo sacerdócio pessoal dos crentes.

quarta-feira, 14 de março de 2012

LENDO FILIPENSES 1.1-2


Na introdução à carta, devemos nos perguntar primeiro sobre a indicação que o próprio texto nos dá sobre seus autores. São dois, Paulo e Timóteo. A leitura cristã, como sabemos, sempre considera a carta como se fosse apenas paulina, desconsiderando essa informação. Mas isto não é sem motivos, na sequência de nossa leitura, notaremos que o texto é construído a partir de um só narrador, Paulo. Então, por qual motivo Timóteo é citado? Uma resposta, embora não definitiva, é que Timóteo estava presente durante a composição da carta, talvez opinando, talvez até mesmo escrevendo. É bem possível que não apenas Filipenses, mas todas as cartas paulinas, tenham esta autoria coletiva, em que as palavras de um só narrador na verdade escondem ideias de vários pensadores; e é bem provável que aquele que tivesse melhor caligrafia ou melhor formação, assumisse a pena. O nome do apóstolo, o mais célebre entre os possíveis autores, é enfatizado por dar maior autoridade à carta ou legitimidade ao seu conteúdo. Sabemos pelos pseudepígrafos que critérios assim determinavam a escolha dos “autores”.

Se nos perguntamos pelos autores, também devemos tratar dos destinatários. Neste caso, todos os “santos em Cristo Jesus que estão em Filipos”, e com eles os bispos e diáconos, são apontados como os leitores da carta. Temos então um texto que se dirige a todos, inclusive aos líderes que já iam surgindo nas comunidades proto-cristãs. Isso será relevante para que entendamos os elogios, críticas ou exortações da carta como temas de amplo interesse, que não tinham objetivos pessoais. A generalização do conteúdo é uma característica que esta introdução já nos oferece.

Por fim, no versículo 2 a típica saudação paulina aparece. Aqui temos um daqueles casos em que o texto já não quer dizer exatamente o que suas palavras dizem; isto é, como em toda saudação, falamos movidos por hábitos, e nem sempre meditamos sobre o significado das palavras envolvidas na comunicação. Por exemplo, quando encontramos alguém é dizemos “tudo bem?”, não estamos realmente esperando que a pessoa comece a nos contar todos os problemas que tem atravessado na vida; na verdade, na maioria das vezes não se trata de uma oferta de ajuda real, mas apenas de hábitos de linguagem. Paulo parece ter adquirido (ou criado) um hábito de linguagem, onde sempre deseja ou evoca a graça e paz de Deus e Cristo sobre os destinatários da carta, independente do conteúdo que se seguirá. Por isso, não nos ocuparemos destas palavras com mais detalhes por enquanto.

terça-feira, 13 de março de 2012

LIVRO: INTRODUÇÃO À EXEGESE

Agora pode-se comparar meu livro "Introdução à Exegese" pela internet e recebê-lo em qualquer parte do Brasil.

Acessem o link da livraria Erdos e confiram:


http://www.erdos.com.br/index.php/introduc-o-a-exegese.html

NOVO ARTIGO PUBLICADO: A RECEPÇÃO DO MAL PERSONIFICADO ENTRE AS IGREJAS EVANGÉLICAS BRASILEIRAS


Já está no ar o novo número da Revista Âncora. Além de ser membro da comissão editorial da revista, contribuo com mais um artigo neste número. Produzido no último ano, este texto fala sobre o modo como os evangélicos interpretam os textos bíblicos e as tradições sobre o mal personificado em Satanás e demônios, analisando trechos de livros e músicas evangélicos.

Este meu artigo, e os demais, podem ser baixados em pdf gratuitamente no site da revista (www.revistaancora.com.br). Incluo abaixo o resumo original do meu artigo:

Neste artigo o objetivo é demonstrar como os evangélicos brasileiros lidam com a idéia do mal personificado em suas vidas e ritos. O estudo é panorâmico, e está baseado em três exemplos: Primeiro tratamos do filme "Deixados para Trás" e suas influências; depois falamos sobre obras de Rebecca Brown e suas repercussões; finalmente, nós traremos à discussão uma canção de Marcos Witt que faz uma espécie de exorcismo coletivo. Nesse ínterim, nossas reflexões abordam o uso da Bíblia entre essas apropriações diversas, e discutem a maneira como essas releituras populares passam a existir.

quarta-feira, 7 de março de 2012

A LEI CONTRA O HOMICÍDIO: MATEUS 5.21-26

Fazendo uma leitura breve de cada uma dessas discussões legais, temos entre os versículos 21 e 26 a renovação ou reelaboração da lei contra o homicídio. Em resumo, a Lei do Antigo Testamento já proibia o homicídio, mas Mateus afirma que todo aquele que se irar contra seu irmão, ou ofendê-lo, será acusado como aquele que mata (v. 22). Parece claro que a aplicabilidade pretendida para este novo mandamento é no interior do próprio grupo de discípulos mateanos (v. 23-26); temos uma nova tentativa de coibir as discórdias, contendas ou divisões no interior de um grupo que quer ser formados por “irmãos”. Este novo e rigoroso mandamento, além de proteger o grupo em seu próprio convívio social, pelo menos em tese, é o tipo de lei que pretende fazer este grupo de leitores melhores que os fariseus e escribas. Aqueles continuariam seguindo a lei contra o homicídio, mas não igualariam a justiça do grupo que nem mesmo admitia ofensas ou ira. Com isso, queremos mostrar que em cada novo caso colocado em pauta nesta seção, devemos atentar tanto para seus propósitos sócio-comunitários, quanto para seu papel no estabelecimento de diferenças entre os discípulos de Mateus e os fariseus e escribas. É até possível que o segundo alvo fosse o mais relevante.