O título acima já expõe nosso objetivo, falar de como os evangélicos lidam com a ideia do mal, recebida da tradição cristã católica e protestante, e antes dela, do judaísmo. Queremos especialmente falar da ideia do mal personificado em figuras milenares como o Diabo e os demônios. Mas para falar da recepção das imagens do mal entre grupos religiosos dos nossos dias, temos que considerar as exigências metodológicas que esse objeto nos impõe.
Falando de maneira breve, o fenômeno religioso que chamamos de maneira reducionista de “Evangélicos” trabalha atualmente com paradoxos que não podemos ignorar. Por um lado, ele é marcado pelo conservadorismo, pela manutenção em alguns círculos de tradições de gerações passadas que resistem obstinadamente à passagem dos anos através da força de dogmas religiosos; por outro lado, grande parte dos evangélicos estão “conectados” às novas tecnologias e formas de comunicação. Por exemplo, algumas denominações ainda insistem no uso obrigatório de gravatas e longas saias durante as reuniões, mas já lêem a Bíblia por meio de telões e transmitem suas reuniões ao vivo pela internet. A descentralização de poder e a consequente multiplicidade de formas religiosas que costumam ser colocadas sobre o rótulo “Evangélicos” torna praticamente impossível a qualquer pesquisador oferecer resultados conclusivos a não ser que se faça rigorosos recortes. Todavia, em nosso caso não queremos resultados conclusivos, e não queremos reduzir demais nosso campo de observação. Mesmo estando conscientes do risco de fazer generalizações, nosso objetivo é desenhar um quadro geral com algumas das ideias que este universo evangélico têm sobre o mal e suas personificações. Por isso, em vez de buscar peculiaridades e fazer escolhas, buscamos elementos comuns que ainda permitem grupos religiosos distintos nos credos e nas liturgias considerarem-se, na medida do possível, grupos “irmãos”.
Dentre os elementos que vinculam essas diferentes formas de ajuntamento sócio-religioso e ainda nos levam a classificar todos como “evangélicos”, talvez o fundamentalismo seja o mais evidente, e o mais relevante para nossa tarefa atual. Sem dúvida o emprego que fazemos aqui de “fundamentalismo” é bastante amplo, mas queremos evitar ao menos seu uso mais pejorativo. Quando dizemos que os evangélicos brasileiros são fundamentalistas, não estamos dizendo que são irracionais, fanáticos...; aqui usamos o termo para falar de grupos que defendem certos conjuntos de dogmas como sendo a única verdade, e principalmente, queremos nos referir ao modo ingênuo de ler Bíblia e outros documentos religiosos, como se fossem janelas abertas para o passado. Noutros termos, os evangélicos de maneira geral adotam certos documentos escritos (como a Bíblia e os livros com as interpretações dos seus líderes, por exemplo) e lhes atribuem autoridade normativa por meio de argumentos religiosos, depois, lêem tais documentos acriticamente e procuram se guiar a partir dessas leituras. Isso é muito importante neste trabalho que vamos apresentar, porque o que procuraremos demonstrar é exatamente como evangélicos brasileiros de hoje se apropriam de certas ideias religiosas destes documentos. Vamos nos dedicar especialmente à recepção dessas tradições religiosas que tratam do Diabo e dos demônios, aproveitando o ensejo para impulsionar algumas reflexões sobre essa hermenêutica fundamentalista.
Tentando empregar um método coerente com nosso objeto, nossos exemplos partem especialmente de comunicações midiáticas atuais. As novas gerações das igrejas evangélicas brasileiras são formadas mais pela mídia do que pelo ensino religioso em escolas dominicais, como acontecia às gerações anteriores. Diante do amplo acesso que os membros têm à informação, é cada vez mais difícil estabelecer um dogma sem que se note grande influência de outras demonimações. Hoje, igrejas pentecostais lêem livros de escritores metodistas, neo-pentecostais frequentam seminários teológicos batistas, presbiterianos cantam canções tiradas de discos produzidos por novas igrejas evangélicas... Por tudo isso, julgamos que para falar da formação de uma imagem personificada do mal neste meio, mais do que estudar as tradições dos fundadores dessas igrejas, temos que nos voltar para a transmissão dessas imagens nos meios de comunicação próprios dos evangélicos. Daí nossa escolha por tratar de filmes, músicas e livros que exerceram ou exercem influência na formação identitária desses novos evangélicos.
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