Vamos direito ao ponto. A canção que estudaremos parcialmente é “Barafunda”, do disco “Chico” de 2011 (http://www.youtube.com/watch?v=ioq7DaOCU_8). No samba, o enunciador ou narrador é construído como um homem de idade avançada, que lembra fatos históricos passados e apresenta problemas com a própria memória. Nesta canção ouvimos o seguinte verso:
E salve este samba / Antes que o esquecimento
Baixe seu manto / Seu manto cinzento.
A princípio o pedido para “salvar” o samba pode parecer uma exclamação ou exaltação, mas no contexto do esquecimento ele também nos remete à necessidade de registrar o samba, num armazenamento digital de um arquivo de som, por exemplo. Ou seja, o próprio samba que está sendo cantado deve ser preservado para que não se perca em meio às falhas da memória do seu compositor. Ao ouvir esta canção, alguém que aprecie este gênero musical pode se lembrar de outro samba mais antigo chamado de “Cor de cinza” de Noel Rosa, que só foi gravado em 1955, vários anos após a morte do compositor. O caso é que este belíssimo samba já trazia o termo “cinzento” várias vezes (todo o céu ficou cinzento..., ao ver o carro cinzento..., de pelica e bem cinzento...), e conta exatamente a história de um “esquecimento” (A luva é um documento / com que provo o esquecimento / daquela que me esqueceu / A luva é um documento / de pelica e bem cinzento / que lembra quem me esqueceu). A referência ao samba de Noel Rosa não e explícita, mas como intérpretes, podemos levantar a hipótese de que exista alguma relação entre os dois sambas.
Poderíamos argumentar para defender nossa hipótese dizendo que o compositor mais recente, numa entrevista à Rádio Eldorado em 1989, quando respondeu quais são seus compositores favoritos, citou o nome de Noel Rosa em primeiro lugar, e depois disse: “Eu citava Noel no samba A Rita. Eu fiz algumas canções à maneira de Noel. Claro que Noel me marcou muito”.[1] Provavelmente Chico Buarque ainda tem na memória muitos fragmentos de Noel Rosa, e nesta canção mais recente utiliza-o novamente, embora não possamos afirmar que esta ligação tenha se dado de maneira consciente.
Este tipo de relação entre dois textos é o que chamamos de intertextualidade. Mesmo que a lembrança tenha se dado de maneira inconsciente, isso não mudaria nosso juízo sobre a relação intertextual entre as duas canções. Não sabemos se Chico Buarque, o autor-real, pensou em colocar Noel Rosa no seu novo samba, mas isso não é tão importante, pois esta pergunta nos dirige a uma instância que não é relevante para nós, intérpretes de documentos milenares. Se nosso narrador é um compositor de samba de idade muito avançada, é natural no nível literário que este personagem, o autor-implícito, tenha na sua desfocada memória reminiscências do talentoso Noel Rosa. É bem verdade que talvez não sejam muitos os ouvintes capazes de entender o jogo intertextual, o que é uma característica da intertextualidade.
Mas isso não é tudo. Na mesma canção há outro verso que podemos empregar como exemplo. Chico canta:
Foi Garrincha
Não, foi de bicicleta
Juro que vi aquela bola entrar na gaveta
Tiro de meta...
Ainda demonstrando confusões com suas lembranças, o cantor agora traz palavras que não são de conhecimento tão limitado quanto aquelas que desenterramos de um samba de Noel Rosa; elas já não se restringem a um livro ou a uma canção mais antiga, e o uso que delas é feito não pode ser compreendido simplesmente por meio de uma consulta ao dicionário. Agora, a interpretação das expressões dependem de conhecimentos externos, que estão disponíveis na cultura, na sociedade do compositor e de muitos dos possíveis destinatários dessa comunicação.
Os dicionários coletam algumas das possibilidades interpretativas para as palavras, aquelas possibilidades mais comuns, mais prováveis, mais recorrentes, mas não todas. Neste caso, é provável que a consulta a um deles não ajudasse muito para entender que “bicicleta” é, na linguagem futebolística, um tipo de chute em que o atleta acerta a bola no ar enquanto gira o corpo para que ela se projete para trás de si. Tampouco os dicionários nos ajudariam a entender que “gaveta”, na linguagem futebolística, se refere aos cantos superiores do gol, locais considerados privilegiados para um chute, pois os goleiros geralmente não são capazes de alcançá-los. Agora estamos diante de um caso de interdiscursividade.
Não fomos capazes de identificar uma fonte privilegiada para a compreensão dessas palavras como fizemos no primeiro exemplo; as significações que estão em pauta não são tão formalizadas, e por conta disso uma interpretação mais adequada só será simples para aqueles que pertencem a comunidades próximas à do autor, que compartilham desses mesmos conhecimentos acordos de linguagem socialmente desenvolvidos. Agora o personagem de Chico Buarque não se comunica com os ouvintes por meio de textos, canções, livros; não quer lançar códigos decifráveis apenas àqueles que também tiveram acesso àquelas mesmas fontes; desta vez ele se comunica através de acordos tácitos da cultura brasileira, para um público mais amplo, porém, utilizando-se de fontes informais.
Essas nossas observações sobre as canções podem não parecer simples, agora imagine se não soubéssemos nada sobre Noel Rosa e Chico Buarque, se em vez de ouvir os sambas só tivéssemos pedaços de papel com as letras, evidências que talvez nem nos permitissem saber quem se inspirava em quem. E se estivéssemos fazendo essa análise num tempo e lugar em que termos como “garrincha” são enigmáticos, e onde o futebol inexistisse. Talvez toda aquela estrofe que têm o esporte como pano de fundo permaneceria indecifrável. Antes de analisar o significado dos termos e as relações de intertextualidade, precisaríamos estudar o próprio país e tempo dos textos, e quem sabe reconstruir o futebol e seu vocabulário típico. Imagine agora quantos problemas desse tipo não existem para impedir nossa compreensão dos textos bíblicos, que foram escritos há milênios e em lugares e culturas completamente diferentes das nossas. É por essa dificuldade que para a interpretação bíblica não podemos abrir mão das análises extra-textuais, onde definimos uma “teoria literária” com hipóteses sobre o tempo e o lugar do texto, e verificamos suas relações intertextuais e interdiscursivas.
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