O historiador Carlo Ginzburg escreveu na década de setenta um livro que se tornou um clássico, intitulado “O Queijo e os Vermes”. Com base em documentos da inquisição, Ginzburg reconstruiu, na medida do possível, a vida e o pensamento de um moleiro do século XVI chamado Menocchio, que foi condenado pela Igreja Católica por suas idéias heréticas.
Há algumas linhas que registram as palavras do tal moleiro herético que se tornaram, para mim, um dos momentos mais marcantes do livro, e é com base nelas que quero propor a reflexão de hoje. Diante do tribunal da inquisição, Menocchio disse certa vez:
Um grande senhor declarou seu herdeiro aquele que tivesse um certo anel precioso; aproximando-se da morte, mandou fazer outros dois anéis parecidos com o primeiro e, como tinha três filhos, deu a cada um deles um anel. Cada um deles julgava ser o herdeiro e ter o verdadeiro anel, mas, dada a semelhança, não se podia saber ao certo. Do mesmo modo, Deus possui vários filhos que ama, isto é, os cristãos, os turcos e os judeus, e a todos deu a vontade de viver dentro da própria lei e não se sabe qual seja a melhor. Mas eu disse que, tendo nascido cristão, quero continuar cristão, e se tivesse nascido turco, ia querer viver como turco [...] eu penso que cada um acha que a sua fé seja a melhor, mas não se sabe qual é a melhor; mas, porque meu avô, meu pai e os meus são cristãos, eu quero continuar cristão e acreditar que essa seja a melhor fé. (2006, p. 92)
É surpreendente o que ele teve a coragem de dizer cara a cara com os inquisidores que podiam prendê-lo pelo resto da vida ou até matá-lo. A Igreja Católica era, na época, a instituição religiosa que tinha poderes para definir qual a maneira correta de se viver o cristianismo, mas, no interior da Itália e nos dias em que a reforma protestante ganhava terreno, um homem simples ousou pensar livremente e questionar a fé pré-moldada que lhe impunham desde o nascimento. Menocchio, ecumênicos como poucos na época, fazia ruir para si mesmo os alicerces da fé ortodoxa, declarando que todas as religiões eram apenas instituições de homens que buscam a verdade.
Ao derrubar assim a autoridade e inerrância da igreja, Menocchio encontrou espaço para questionar dogmas centrais da fé católica, como por exemplo, o uso do latim pelo clero: “Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que se está dizendo e são enganados” (Ginzburg, 2006, p. 41). Ele questionou o direito exclusivo da igreja de celebrar os casamentos: “[...] antes, homens e mulheres faziam troca de promessas e isso era suficiente; depois apareceram essas invenções dos homens” (2006, p. 42). E também condenou a ordenação e a hierarquia eclesiástica, dizendo: “Acho que o Espírito Santo está em todo mundo, [...] e acho que qualquer um que tenha estudado pode ser sacerdote, sem ter que ser sagrado, porque tudo isso é mercadoria” (2006, p. 42).
A história de Menocchio é, segundo a reconstrução de Ginzburg, fascinante. Mas fazendo agora um paralelo conosco, conheço homens e mulheres que assim como Menocchio ousam questionar as religiões e seus dogmas. Desde a reforma, a autoridade absoluta da igreja foi substituída para muitos pela Bíblia, que tornou-se o grande alicerce da fé, e é supostamente com base nela que as igrejas criam seus dogmas. Mas as pessoas que mencionei, por refletires sobre o que fazem, por observarem atentamente o funcionamento das coisas, por querer sempre melhorar o lugar em que estão, e por estudarem e notarem a incompatibilidade que há nos dogmas cristãos em relação aos textos, tomam a liberdade de não fundamentar-se mais sobre a palavra dos clérigos, sejam eles de que seita forem. Eles ainda questionam as coisas que Menocchio questionou, mas também criticam os limites do cânon, que amordaçaram Deus; eles também duvidam da inerrância dos sermões e dos textos, criticam os discursos evangélicos e a busca nada bíblica por prosperidade, assim como o preconceito religioso para com os diferentes.
No entanto, esses novos “hereges”, ou “homens livres”, não deixam suas igrejas por conta disso. Como Menocchio, eles não acham que indo para outro lugar encontrarão a “verdade”. Por que criariam novas seitas que não fariam mais do que dar novos palpites humanos sobre Deus? Eles continuam nas antigas igrejas levando consigo suas idéias nada convencionais, encontrando opositores, arrumando conflitos de vez em quando, e libertando alguns das grades da religião quando podem. Enfim, eles ainda querem que sua religião seja a correta, mas não estão certos disso, motivo pelo qual é melhor não criar religiões nem arruinar as alheias.
Quis falar de Menocchio porque ele é uma inspiração para os “novos hereges”, cujo credo Menocchio definiu há séculos quando, diante da inquisição, disse:
Gostaria que se acreditasse na majestade de Deus, que fôssemos homens de bem e que se fizesse como Jesus Cristo recomendou, respondendo àqueles judeus que lhe perguntaram que lei se deveria seguir. Ele respondeu: ‘amar a Deus e ao próximo’ [...] Bastariam só quatro palavras para a Sagrada Escritura [...] (2006, p. 41, 44)
Referências Bibliográficas
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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