A postagem de hoje vai servir para informar e levar à reflexão. Vamos ver alguns pontos da Didaqué, um manual de disciplina comunitária que teria sido escrito no mais tardar no início do século II. Acredito que a leitura vai causar grande fascínio aos leitores interessados, que conhecerão a riqueza do cristianismo primitivo a partir de uma ótica não canônica.
Esse documento não está em nossas Bíblias, mas é um valioso escrito das igrejas primitivas que vale a pena conhecer. Ele nos dá um valioso vislumbre da vida dos cristãos primitivos sob a ótica das primeiras igrejas sedentários, isto é, que não priorizam como no princípio, o ministério itinerante, apostólico, ou missionário. Por isso, veremos que a Didaqué dedica várias passagens ao controle da autoridade dos itinerantes em atividade, tomando o poder dos apóstolos sem lar e delegando-o aos bispos ou líderes locais. Veremos que os itinerantes não eram os líderes das comunidades locais, antes, agora eram por elas julgados e até expulsos se não fossem considerados dignos.
A Didaqué fala de três tipos distintos de pregadores itinerantes: os mestres, os apóstolos e os profetas. Começaremos lendo o que ela diz sobre os mestres, cujo ensino deveria limitar-se àquilo que já fora estabelecido pelo grupo:
Se vier alguém até você e ensinar tudo o que foi dito anteriormente, deve ser acolhido. Mas se aquele que ensina é perverso e ensinar outra doutrina para te destruir, não lhe dê atenção. No entanto, se ele ensina para estabelecer a justiça e conhecimento do Senhor, você deve acolhê-lo como se fosse o Senhor. (Did. XI.1-2)
Quanto aos apóstolos, que por definição eram cristãos itinerantes enviados para estabelecer novos grupos alhures, a exigência era para que sendo eles apóstolos, não ficassem sendo assistidos junto à comunidade por muitos dias:
Todo apóstolo que vem até você deve ser recebido como o próprio Senhor. Ele não deve ficar mais que um dia ou, se necessário, mais outro. Se ficar três dias é um falso profeta. Ao partir, o apóstolo não deve levar nada a não ser o pão necessário para chegar ao lugar onde deve parar. Se pedir dinheiro é um falso profeta (Did. XI.4-6)
E por último, também há sanções aos profetas, que na Didaqué são cristãos que falam sob inspiração divina com autoridade e liberdade nas reuniões (Did. X.7). O texto exige, para essa atividade, não somente a inspiração, mas também um comportamento digno (Did. XI.7-8a), e controla todas as supostas palavras inspiradas a fim de que os profetas não se aproveitem de tal “dom” para benefício próprio:
É desse modo que você reconhece o falso e o verdadeiro profeta. Todo profeta que, sob inspiração, manda preparar a mesa não deve comer dela. Caso contrário, é um falso profeta. [...] Se alguém disser sob inspiração: "Dê-me dinheiro" ou qualquer outra coisa, não o escutem. Porém, se ele pedir para dar a outros necessitados, então ninguém o julgue. (Did. XI.8b-9,12)
As porções selecionadas nos dão um retrato de uma comunidade cristã que luta para conciliar a tradição itinerante do cristianismo originário, com as novas necessidades de um cristianismo estável, que vai se tornando igreja, elegendo líderes, estabelecendo hierarquias, e regulando o modo de crer e de ser dos participantes por meio da doutrina. Eles tinham que aceitar os profetas itinerantes, afinal, Jesus havia sido um deles, e também o apóstolo Paulo; entretanto, o documento nos diz nas entrelinhas que com o tempo alguns desses missionários passaram a abusar do ministério para aproveitar-se das comunidades locais; alguns também causavam divergências quando vindo de outras regiões compartilhavam doutrinas diferentes. Os primeiros bispos, viram-se obrigados a definir um dogma, e a colocá-lo acima das palavras dos pregadores itinerantes.
Estamos falando de uma só porção de cristianismo, é claro, mas este exemplo fornece uma bela imagem da institucionalização acontecendo. Se no começo o cristianismo era definido pela atuação dos itinerantes, agora passa para as mãos dos “pastores”, e o que por um lado é uma tentativa de sobrevivência, também viria a revelar-se como “algemas” para o próprio Espírito Santo, que deveria agir dentro dos limites estabelecidos pela igreja cristã. A partir de limites como esses, a igreja chegaria a determinar qual a interpretação deveríamos dar aos textos sagrados, chegaria a dizer que não há salvação fora da igreja, e diria que Deus não pode falar a não ser por meio da Bíblia e pela boca dos clérigos. Esses crimes contra a liberdade humana e também divina, são conseqüências do desenvolvimento natural da igreja como instituição. Por isso é que viver na igreja sempre implica em obediência; é por isso que uma das palavras mais bem vistas nas instituições religiosas é “submissão”, e é por isso que não me deixo aprisionar novamente. Como todos dizem, se conheceres a verdade, ela o libertará; mas nos libertar de quê se não é das grades da religião?
3 comentários:
Anderson, parabéns pelo artigo. Meu nome é Rogerio Tesser, da TBCJ. Tive a oportunidade de ouvir suas ministrações algumas vezes e te considero uma pessoa muito inteligente e formadora de opinião. Sempre fui questionador das doutrinas das denominações e, é claro, nem sempre bem visto. Um dos meus questionamentos é a respeito da submissão. Até a aceito, desde que não seja por motivos contrários às escrituras. Mas bem sabemos (você sabe até mais do que eu) que diversas vezes testemunhamos o protecionismo e a conveniência em prol de uma posição de destaque na denominação, e como você relatou no artigo, isto se torna como cadeias da religiosidade. Gostei muito do blog e novamente parabéns.
Oi Rogério, lembro muito bem de você. Que bom que leu e gostou do texto e do blog. O tema agrada pessoas questionadoras como você, mas que não temem os opositores que surgirão nas igrejas.
Quando puder, dê uma olhada nos títulos dos textos de 2010. Você vai encontrar alguns bem questionadores e acho que vai gostar. Atualmente estou numa fase mais técnica, para quem quer aprender.
Continue em contato. Abraço.
bem colocado Anderson, quantas vezes nós temos visto lideres se utilizarem da palavra submissão para se imporem sobre aqueles com menos conhecimento e violar a nossa liberdade em Cristo. Acredito na submissão, mas há lideres que querem que sejamos submissos aquilo que eles acreditam e não a ao que a bíblia ensina.
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