Dando ainda sequência àquelas nossas reflexões sobre as mensagens mitológicas da Bíblica, agora eu gostaria de trazer à pauta a narrativa do sepultamento de Jesus em Marcos 15.42-46. À primeira vista não vemos aspectos mitológicos no texto, mas nossa análise demonstrará como um olhar exclusivamente histórico pode matar também essa famosa passagem.
O texto fala que Jesus foi sepultado num túmulo comum. Tais túmulos (típicos para os sepultamentos judaicos daqueles dias) eram esculpidos na rocha calcária. No interior deles cavava-se nichos para que os corpos fossem depositados. Após a decomposição do corpo, os ossos podiam ser depositados em urnas que chamamos de “ossários”, ou enterrados normalmente. Até aí a história parece andar junto com o texto, mas o problema está em unir esse tipo de sepultamento a uma vítima de crucificação.
Os romanos, quando usavam a crucificação como punição de alguém, pensavam não somente na morte do indivíduo, mas em sua humilhação pública. Além do sofrimento que o ato implicava, após a morte a vítima podia ficar apodrecendo ao ar livre como advertência aos vivos, ou ser lançada em um lugar qualquer para servir de alimentos a animais. A pena era terrível não somente pela morte dolorosa, mas também pela sentença ao não-sepultamento.[1] Assim, o tratamento histórico da narrativa da morte de Jesus nos conduziria à triste conclusão de que provavelmente Jesus não teve direito a um sepultamento digno e por isso seu corpo nunca mais foi visto. A consequência dessa probabilidade histórica é que a fé na ressurreição surgiu para esconder a vergonha de ter um Messias sem sepulcro. Deveras, é por isso que embora existam registros textuais de milhares de crucificações, mas nenhum cadáver para servir de evidência material. A verdade é que apenas um cadáver de um homem crucificado restou para que o estudássemos.
Esse cadáver único lança nova luz às pesquisa do Jesus histórico. Em 1968 foram escavados túmulos na parte norte de Jerusalém onde foram encontrados os restos mortais de 35 pessoas que teriam morrido também ao longo do século I. O crucificado era um homem que morrera entre os 24 e 28 anos, cujos braços não foram pregados, mas amarrados à viga transversal, e cujas pernas foram pregadas à cruz dos lados de fora da viga vertical, uma de cada lado. Sabemos que ele foi crucificado porque ainda trazia um prego atravessando-lhe o calcanhar.[2] A ciência assim nos ajuda a entender melhor a crucificação, mas o que nos intriga é o sepultamento desse homem. Como ele obteve esse direito raro ao sepultamento? É aí que o historiador cria sua própria mitologia e acaba vendendo-a como história. Podemos apenas fazer suposições dizendo que aquele homem, embora tenha cometido um crime sério, tivesse familiares influentes que o livraram da punição pós-morte; ou podemos imaginar alguém subornando um guarda para que lhe desse o direito de sepultá-lo em segredo... Em todo caso, estamos diante de uma exceção à regra dos crucificados, um caso único que não prova a veracidade do texto bíblico que afirma o sepultamento de Jesus.
As possibilidades históricas nos permitem aceitar a cruz de Jesus como fato provável, e com um pouco de boa vontade até podemos crer na chance pequena de que ele tenha ganhado o direito a um sepulcro. Mas a verdade é que a existência de cruzes e de cadáveres não prova nada sobre o texto; ele pode estar simplesmente contando-nos uma história fictícia baseada em fatos reais. Assim, não só a ressurreição permanece no campo da mitologia, como não há túmulo ou cadáver de Jesus para provar sequer a crucificação. O texto, embora apoiado por algumas possibilidades históricas, continua exigindo fé. Teremos que escolher entre uma das possibilidades: 1) A mais cética não crê na versão de que Jesus foi comido por cães e nem no seu sepultamento, pois não passam de possibilidades. Esta opção costuma estender-se à negação da ressurreição, e leva à morte do texto e da fé. 2) Um alternativa mais religiosa e não tão severa seria crer na explicação mitológica dos textos do sepultamento e da ressurreição, considerando indiferente o destino dado ao corpo de Jesus já que o importante é a fé de que ele está vivo. 3) A terceira opção é a pior de todas, seria rejeitar a ressurreição por seu caráter mitológico mas aceitar o não-sepultamento de Jesus que não passa de uma nova hipótese, isso mataria o texto e a fé, simplesmente porque esta alternativa é a que foi exposta com argumentos mais científicos.
Novamente enfatizamos que o texto não precisa ser confrontado com as análises históricas. Aprendemos da ciência, mas deixemos o texto vivo, com Jesus no túmulo e ressurreto; nos inspiremos pela mensagem do homem simples que falava as palavras de Deus, foi morto por isso, mas até venceu a morte para nos motivar também a não temer os que matam o corpo e continuar o trabalho de pregar o Reino de Deus. A mitológica é ainda a versão mais fascinante, difícil apenas àqueles que acreditam que as coisas só têm valor quando há provas.
[1] CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. p. 574-575.
[2] CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. p. 576-577.
6 comentários:
Esta semana terminei de ler o Livro do J.M Mardones, que tem por titulo Matar nossos deuses, no final ele fala sobre a linguagem mitoligica, de que uma realidade que não conhecemos so conseguiremos falar por linguagem sinbolica, pois essa mesma realidade não pode ser absolutizada, em fim e mais ou menos isso, srsrrs.
Mas quando se aborda a fé desta maneira, nos da a sensação de que cremos mas temos duvidas, sei que nunca consegui ler e entender os relatos da ressurreição, sei que alguma coisa inezplicavel aconteceu, que nem mesmo os discipulos entenderam, sei tambem que uma relato de um discipulo e muito parcial e coveniente, mas Paulo ainda continua me intrigando ele teve uma esperiencia com Jesus ressucitado, sei que os discipulos não compreenderam o que aconteceu, mas o esforço foi valido pois se continua exigindo de quem quer se aprocimar de Deus um pouco de fé rsrsr
Keiker, acho que vai concordar comigo quando digo que quanto mais estudamos religião, mas nos damos conta de que não conhecemos muito sobre Deus. Como você disse, a impressão que fica é que nem mesmo os escritores da Bíblia entendiam essas coisas.
Podemos ver isso negativamente, perdendo a fé ao desacreditar os textos e os homens do passado, ou podemos sentir que somos como eles, pessoas de fé que usam o recursos que possuem para procurar alguma aproximação com a divindade.
A ressurreição não pode ser provada pelos textos, a experiência dos discípulo e depois de Paulo podem ser explicadas psicologicamente, mas o cristão tem todo o direito de crer que ela foi real, e esperar um contato direto com Jesus hoje também. Isso é fé, crer naquilo que não se pode provar.
Crucificação: com "C", acho que assim fica melhor! SEGUNDO O DICIONÁRIO.
No final, o texto foi bom sem deixar de ser perturbador.
Um abração fraternal!
MáRCIA ARAÚJO
Poxa, desculpa Márcia, costumo errar isso mesmo. Mas dá pra passar de ano, acerte 7 e errei 2...
Abraço.
Grande Mestre Anderson.
Puxa, que texto complexo! Você literalmente obriga as pessoas a pensarem rsrsrs... Acho isso muito fantastico rs. Coisa de professor mesmo.
Realmente, estudar provoca Crise de fé! QUanto mais leio a Biblia, mais falo pra mim mesma: ESTÁ TUDO ERRADO kkkk
É bom saber que existem outros ET'S COMO EU RS..
Mais uma vez, paarabens!
Abs
Thalyta Ingryt
Depois de Alguns meses longe da internet (PC quebrado). Estou lendo tudo o que vc postou durante esses meses que estive fora e já no primeiro texto me deparo com um texto desses... PUXA!
Não tenho essas sensações desde 2001 quando vi o filme "O CORPO" no filme foi descoberto o corpo e Jesus, ou seja, ele não ressuscitou.
No seu texto tenho a informação que ele pode nem ter sido sepultado, cara... obrigado!
Sou fruto de uma teologia muito tradicional e profundamente espiritualista, nem sei dizer quantas vezes pedi perdão a “Deus” por acreditar que Jesus poderia não ter ressuscitado.
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