terça-feira, 14 de setembro de 2010

IMAGENS, FÉ E CULTURA: UMA LEITURA DIFERENTE

1 – UMA HOMENAGEM CRIATIVA





Hoje proponho uma atividade completamente distinta. Não se trata de uma exegese, não farei observações sobre textos, mas sobre imagens. Queria falar algumas coisas sobre a imagem acima, uma expressão de fé, uma homenagem, e também uma bela obra de arte. Trata-se de um vitral de igreja, e quando o vi na foto pela primeira vez, julguei apenas que se tratava de uma imagem protestante, por retratar uma cruz sem a imagem do Cristo nela. Todavia, mais detalhes me foram sendo revelados à medida que a examinava.

Primeiro pensei melhor sobre a inscrição acima, que diz que o vitral (ou talvez a igreja inteira) foi produzido em homenagem a pessoas que entraram no mar de Santa Inês para salvar a vida de outros. A inscrição nos oferece inúmeros indícios para a leitura da imagem. A começar pelo idioma inglês, e pela referência ao mar de “Santa Inês”. Descobri então que o vitral pertence a uma pequena igreja anglicana (inglesa), que fica na ilha de Santa Inês, parte de um arquipélago do Reino Unido conhecido como “Ilhas Scilly”. Eu estava certo sobre a “veia” protestante da imagem, e já sabia localizá-la geograficamente.

Seguindo a investigação a partir da inscrição, agora com as informações precedentes, descobri que a tal igreja foi construída no norte da ilha por ocasião de um naufrágio francês, e como relatou Thomas Hall, o sino do navio está na igreja e soa para convidar os fiéis aos domingos (HALL, 2006, p. 88). Temos, portanto, uma obra cristã que foi construída para homenagear pessoas que morreram num acidente marítimo naquela localidade.

Bem, mas essa história da igreja e seu vitral não constituem-se verdadeiramente numa análise da imagem em questão. Eu queria saber por que essa imagem e não outra; por que uma cruz sem Cristo como homenagem às vítimas? A resposta foi encontrada com a ajuda de um artista e de um pesquisador. O primeiro é um amigo meu, um tatuador e estudante de arte chamado Néias. Ele, com seu olhar apurado para os detalhes, me ajudou a ver como o sentido das pinceladas do artista na imagem revelam mais sobre a imagem.

O detalhe mais visível é que o centro da cruz é também o centro do vitral. Dele emana uma espécie de luz que vai dissipando-se até as bordas da imagem. Depois, esse detalhes é fundamental, podemos ver mais abaixo que há traços horizontais em um tom de azul mais claro. O Néias imediatamente identificou o mar retratado naquele mosaico. Por fim, mais abaixo nota-se que as pinceladas são diagonais, e tons de verde e marrom tornam a base da cruz mais escura, nos levando à certeza de que temos a praia. O artista então não se limitou a pintar uma cruz que identifica sua fé cristã, em sua homenagem ele também evocou o cenário do acidente, o mar de Santa Inês.

Agora falo da ajuda de David Morgan, pesquisador da cultura visual religiosa que em seu livro “The Secred Gaze” trata de vários aspectos da imagética religiosa. Em sua abordagem, ele cita algo que é determinante em nossa análise, o uso de cruzes para demarcar os locais de tragédias nas estradas. Para a família de pessoas que se morreram em acidentes de trânsito, a colocação de uma cruz no local do acidente serve como homenagem às vítimas, lembrando tanto o local como a data do evento. Por outro lado, para os motoristas que não testemunharam o acidente e nem tampouco conheceram as vítimas e seus familiares, tais cruzes possuem outra função; serve de alerta sobre pontos possivelmente perigosos das estradas (MORGAN, 2005, p. 56).

A conclusão é obvia, o artista responsável pela imagem no vitral fixou uma cruz à beira mar para demarcar o local da morte daquelas pessoas que queria homenagear, mas fez isso através dessa bela pintura.

2 – A RELEITURA DA IMAGEM





Como já citei meu amigo Néias, é fácil para quem lê este texto supor que o que temos agora é uma tattoo que faz uma releitura da obra original. O simples fato de reproduzir a imagem de um vitral sobre a pele já merece alguma consideração; é mais do que desejar guardar consigo aquela bela imagem, é uma re-significação de toda a obra. O artista dessa segunda obra foi fiel na maioria dos detalhes: os traços continuam indicando que a cruz está à beira-mar, e que a luz emana do centro da cruz, mas a inscrição original foi substituída por outra.

O idioma já não é o inglês, mas o grego. Eis o que está escrito em grego e em seguida e sua tradução: “Pa,nta o[sa eva.n qe,lhte i[na poiw/sin u`mi/n oi` a;nqrwpoi( ou[twj kai. u`mei/j poiei/te auvtoi/j”. “Tudo o que desejais que vos façam os homens, assim também fazei vós a eles”. É um texto bíblico, Mateus 7.12 com pequenas reduções. O texto do evangelho conhecido como “regra de ouro” fala aos seus destinatários sobre a maneira ideal de se proceder para com os demais judeu-cristãos daquele mesmo grupo, mas é um mandamento eticamente tão universal que nesta releitura parece desprender-se de seu contexto original para servir como fonte de inspiração a qualquer ser-humano. Claro que o uso do grego dificulta muito o entendimento da mensagem para quem quer que veja a imagem, porém, ela não pretende ser uma propaganda ou um sermão público; no local em que está localizado, tal dito do cristianismo primitivo provavelmente representa mais uma máxima significativa para seu portador, que certamente a compreende à sua maneira. A imagem já não se encontra fixa na ilha de Santa Inês, e não traz a dedicatória original. Isso altera a funcionalidade da imagem, ainda que muitos outros detalhes permaneçam os mesmos.

Uma última observação: ao retirar a imagem do vitral, foi necessário substituir também sua moldura original por outra que lhe tornasse independente e mais completa fora das paredes da igreja. A escolha pode ser vista na foto acima, é uma moldura estilizada, um “fileteado porteño”, ainda inacabado no momento da foto. Essa também é outra característica desta releitura, que tomou a imagem original e moldou-a com liberdade para que se adequasse à sua nova localização e propósito.

Esta análise, mais que apresentar uma interpretação das imagens, procura destacar como a arte, a fé e a vida de maneira geral estão se relacionando através dessas imagens. A cruz, o principal símbolo do cristianismo, é usada por artistas diferentes, por meio de expressão distintos, e para representar coisas também diferentes. Além da fé em Jesus Cristo que é evidente em ambas as imagens, também temos representados a dor e o respeito pelos mortos num naufrágio, a decoração de uma igreja, e o uso dela como moldura de uma máxima ética de origem distinta.

REFERÊNCIAS

HALL, Thomas. The T.W. Lawson: the fate of the world’s only seven-masted schooner. United Kingdon: The History Press, 2006.

MORGAN, David. The Sacred Gaze: Religious Visual Culture in Theory and Practice. California: University of California Press: 2005.

7 comentários:

Evangelho Maltrapilho disse...

muito interessante, nunca eu perceberia tal comunicação através da imagem....

Fabio Bezerril disse...

Acho que devemos prestar mais atenção na arte, é uma forma de expressar o evangelho, estou lendo um livro atualmente chamado "As almas do Purgatótrio" do historiador Michel Vovelle, e é interessante que ele faz toda a rescontituição histórica do purgatório através de obras de arte espalhadas pelo mundo. Como teologos devemos estar ligados no que as imagens antigas do cristianismo nos dizem, através delas podemos descobrir tradições antiguissimas, até mesmo que vivemos hoje em dia e não sabemos de como elas surgiram.

abraços.

Anderson de Oliveira Lima disse...

Pois é amigos, que bom que acharam interessante essa nova proposta. Não vou deixar de trabalhar os textos, mas de vez em quando esses exercícios diferentes nos enriquecem.

A percepção do olhar do artista por parte de quem admira a imagem não é fácil, exige também prática, tempo, atenção, sensibilidade... Nestas imagens acho que estou no caminho.

Mas vejam o que ando pensando e opinem se quiserem: Nós, os cristãos, privilegiamos uma única forma de expressão que é a produção literária, e achamos que Deus escolheu se comunicar principalmente através dessa linguagem. Temos um cânon, um certo limite para as palavras de Deus, e negligenciamos não somente outros textos como também outras formas de expressão. Por que não dizer que Deus pode também ter se comunicado através de um pintor, escultor, compositor, cineasta...? Por que só escritores são inspirados?

A mim parece que trata-se de preconceito. Nós limitamos a voz de Deus, ou melhor, só identificamos que é o Criador falando quando essa voz está enquadrada nos limites das duas capas da Bíblia. Deus deve falar o que queremos, deve falar da maneira que gostamos. Que cosa triste! (rsrsrs)

Paulo disse...

Anderson.

Gostei muito desta linha de trabalho.
Principalmente porque estou agora estudando a Teologia da Arte de Paul Tillich, por enquanto através de Carlos Eduardo Calvani, gostei do assunto e pretendo me aprofundar assim que tiver oportunidade, indo beber diretamente da fonte em Tillich.

Só lamento ter começado a ler seu texto antes de prestar mais atenção ao vitral. Para ter minha primeira impressão e assim sentir a experiência com ela para depois me aprofundar em seu texto.

Parabéns.

francisco Junior disse...

Belo texto. Bela arte!

Anderson de Oliveira Lima disse...

Valeu Júnior pelo constante apoio. Está na hora de começar a transmitir seus próprios pensamentos para o papel (mesmo que seja papel virtual).

Paulo, confesso que nem sabia que Tillich tinha trabalhado esse tema. Na Univ. Metodista há um grupo de estudo especializado no pensamento de Paul Tillich, e se você se interessar, poderia aparecer nos encontros deles pra ouvir, e quem sabe um dia ingresse num mestrado lá para desenvolver essa área artística do teólogo. O autor que citei, David Morgan, possui livros bons também para quem quer se iniciar no assunto. Sou iniciante e achei dois na internet. Depois posso lhe passar.

Um comentário geral: que bom que até agora não apareceu nenhum tipo de preconceito em relação à tattoo! Queria saber se alguém seria capaz de dizer que essa forma de arte não possui o mesmo valor que as pinturas convencionais.

Anônimo disse...

Olha só que legal! Adorei!

Vou tentar usar seus argumentos para convencer meu pai deixar eu escrever YESHUA no meu braço rsrs (brincadeira).

Mas muito interessante.

Gostei!