Continuando nossa análise literária, trataremos agora do diálogo em si, notando nos versos 8 e 9 que o autor coloca as palavras na boca dos discípulos sem nomear quem falava ou quem permanecera calado dentre o grupo, certamente para demonstrar ser esta a voz unânime dos doze: “(8)E vendo os discípulos indignaram-se dizendo: ‘Para que este desperdício? (9) Pois poder-se-ia vendê-lo por muito e ser dado aos pobres’”.
Pela maneira como o texto foi construído, podemos afirmar que todos os discípulos estavam de acordo neste comentário, onde acusavam a mulher de desperdiçar valores. Se nunca tivéssemos lido a passagem antes, provavelmente até suspeitaríamos que os discípulos tinham razão em sua indignação, pois o movimento de Jesus fora formado por pessoas miseráveis, e os itinerantes como esses primeiros discípulos deviam receber com gratidão ofertas como um caro perfume daqueles. A iniciativa de investir suas posses no movimento do Reino de Deus era aceitável, mas na ótica deles, a mulher desperdiçou uma possível oferta para o movimento e para os simpatizantes carentes que eles alcançavam pelo caminho entre aldeias da Galiléia. Não parece essa reclamação dos discípulos condizente com, por exemplo, o convite de Jesus ao jovem rico para que vendesse tudo o que tinha, desse o valor aos pobres e depois o seguisse (Mt 19.16-22)? Bem poderíamos também julgar que a palavra dos discípulos representavam a voz do mestre, mas o texto foi construído de forma que o leitor já sente que esses discípulos são os vilões da história. Isso é sentido pela construção da fala dos discípulos: Eles estavam indignados, enquanto a mulher parece agradecida, devotada, ou possuidora de alguma motivação mais “nobre” do que a deles. Também parece-nos que uma ação repreensível da mulher ou de quem quer que fosse seria questionada diretamente por Jesus no evangelho, e não por porta-vozes como aqui acontece.
Por certo vemos o texto começando a qualificar os discípulos de Jesus como contrários aos acontecimentos. Já no começo do relato da paixão há o destaque para uma figura feminina, que dá os primeiros sinais da fidelidade das mulheres no desenrolar dos acontecimentos (Mt 27.55; 28.1-10). Em contrapartida, os discípulos (homens) vão se tornando cada vez mais vexatórios, e veremos em seguida Judas traindo Jesus (Mt 26.14-16, 47-50), todos fugindo quando Jesus é preso (Mt 26.56), e Pedro negando conhecê-lo (Mt 26.69-75).
Até aqui, a culpabilidade dos discípulos ainda parece um palpite meu, que bem poderia ser uma conclusão influenciada por leituras anteriores. Na próxima seção seguiremos investigando essa suposta culpa dos discípulos.
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