Hoje precisamos examinar o texto bíblico em busca de uma resposta mais satisfatória para alegarmos a culpa dos discípulos ao criticarem o desperdício do perfume por parte da mulher que ungiu Jesus. Há na própria história do desenvolvimento dos evangelhos canônicos diferentes interpretações desse mesmo evento, o que nos dá sinais de que há aí um problema antigo.
Como já observamos, logo após nossa perícope temos a traição de Judas, que vai aos sacerdotes com a intenção de entregar-lhes Jesus e inclusive pede uma recompensa em dinheiro por isso. Poderíamos supor daí que a ganância de Judas já influenciava sua crítica à “oferta” da mulher a Jesus? Essa hipótese não é a correta em minha opinião, mas também não é tão absurda, principalmente por vermos que no evangelho de João, que traz a história dessa unção de Jesus numa versão diferente, a história é interpretada dessa maneira. Eis aí uma ocasião propícia para compararmos Mateus e João e testificar quão distantes são estes evangelhos e porque não costumam ser analisados sinoticamente.
Lendo João 12.1-8, notamos que ali, embora a casa seja em Betânia, não pertence a Simão o leproso, mas a Lázaro, Marta e Maria; ali a mulher não é anônima como nos evangelho sinóticos, é a própria Maria quem unge Jesus, e aliás, nos pés e não na cabeça. Mas o ponto que queremos destacar é que a discussão em João não se dá com todos os discípulos como em Mateus, mas apenas com Judas (vv. 4-5), e o autor aproveita para acusar Judas de ladrão (v. 6), relacionando sua fala à sua ganância. Mas essa leitura, de que a crítica dos discípulos foi motivada pela ganância, e principalmente de Judas, embora encontre alguma razão de existir, não é a que prevalece nos evangelhos sinóticos.
Como já destaquei, a perícope em si não distingue Judas dos demais, e embora o argumento dos discípulos seja de ordem econômica, o grande problema neste caso é de fé. A mulher já estava se preparando para a morte de Jesus, ungindo seu corpo para a sepultura, mas eles, mesmo sendo os mais próximos a Jesus, ainda não entendiam a aproximação desse evento e a necessidade dele. Assim, ainda que estivessem certos quando diziam que os bens de valor dos simpatizantes deveriam servir aos pobres, neste caso específico estavam demonstrando total ignorância quanto à missão de Jesus.
Concluindo, temos que ter cuidado para não sermos influenciados pela interpretação dada ao texto pelo evangelho de João. Aquela é uma versão bem diferente de uma mesma tradição, que possui outros objetivos. Não há, por conta de todas as divergências já anotadas, como harmonizar as duas versões tentando reconstruir o que realmente aconteceu. O quarto evangelho, por essas e outras, não se inclui entre os evangelhos sinóticos, e o conselho exegético em casos como esse é, fique só com o texto de Mateus.
Após a fala dos discípulos, o leitor que porventura nunca viu tal passagem do evangelho de Mateus continua cheios de curiosidade sobre qual será o posicionamento de Jesus, agora em relação à mulher e aos discípulos. Mas o leitor já imagina que Jesus, personagem principal do evangelho, se imporá como juiz e nos revelará quem está com a razão. Neste caso, mais argumentos do evangelista seriam tempo perdido, pois não estamos mais interessados no que a mulher ou os discípulos têm a dizer, nós queremos ouvir Jesus, e o autor atende à nossa expectativa a seguir. Deixo isso para a próxima postagem.
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