segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

OUTRA VEZ ESSA DE PROSPERIDADE

“Entenda quão inúteis são seus sacrifícios

De Deus você só desejou seus benefícios

Despoje-se do egoísmo todo seu

Misericórdia é o que eu quero fariseu”

Refrão da canção “Fariseu”, de Anderson de O. Lima

No último fim de semana fiz algo que já não fazia havia muito tempo; fiz tocar enquanto limpava a casa com minha esposa um CD de música evangélica. Geralmente ouvimos outro tipo de música brasileira, e não me agrada ouvir “louvores” fora de seu próprio “lugar vivencial”, que é o culto. Para mim (e isso é uma opinião muito pessoal), ouvir pessoas adorando fora do culto é como cantar “parabéns pra você” fora de uma festa de aniversário, trata-se de um texto sem contexto. Mas, sei lá o que me deu, decidi ressuscitar um CD da chamada “gospel music” que mal tinha ouvido.

O que me levou a escrever esse texto hoje é que a decisão de ouvir esse CD antes esquecido trouxe-me tristeza, e até mesmo certa irritação. Lamentei por não tê-lo deixado apodrecer no fundo daquela gaveta, lugar que ele nem mesmo merecia. Vou explicar meu descontentamento a seguir, mas deixe-me adiantar que essa explicação não se aplicará somente às músicas que ouvi, mas à linguagem evangélica contemporânea que de maneira geral, está bem representada por aquelas pobres canções.

Bem, o caso é que praticamente todas as canções do CD se referiam de alguma forma à suposta promessa de que Deus prosperaria os evangélicos. São incontáveis as ocorrências de verbos como prosperar, abençoar, transbordar, fluir, abundar, fartar... sempre empregados como parte de uma promessa divina. Enquanto ouvia as inumeráveis repetições dos refrões maçantes cujo objetivo são nos levar a crer nessas “promessas”, estive meditando sobre como hoje é obvio para mim que tudo isso parte de uma leitura equivocada da Bíblia. Primeiro, o leitor crente parece que nunca teve um romance em mãos, e por isso não sabe interpretar elementos textuais fundamentais. Vamos ver um exemplo? Vou citar abaixo um texto bíblico e mostrar como ele pode ser lido erroneamente, depois voltamos ao CD:

“Não se aparte da tua boca o livro desta Lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer conforme tudo quanto nele está escrito; porque, então, farás prosperar o teu caminho e, então, prudentemente te conduzirás. Não to mandei eu? Esforça-te e tem bom ânimo; não pasmes, nem te espantes, porque o SENHOR, teu Deus, é contigo, por onde quer que andares” (Josué 1.8-9)

Bem, por uma questão didática vou enumerar alguns dos problemas que podem surgir da leitura dessa passagem, mas não me dedicarei muito a esta tarefa, para que este não se torne um texto técnico.

1) O primeiro erro está na identificação do narrador. O leitor crente de imediato dirá que é Deus quem fala, e que estamos, portanto, diante de uma palavra de Deus. Realmente é Deus quem fala, no entanto, Deus é neste caso um personagem, cujas palavras foram criadas pelo verdadeiro autor do texto, que não se identifica em parte alguma. Ou seja, há um homem escrevendo as palavras de Deus, e não o próprio Deus falando diretamente através de um médium que psicografa suas palavras. Se estivéssemos lendo Dom Casmurro, não haveria problema algum, pois todos concordariam que o narrador é Bentinho, o personagem que está narrando sua infância; mas quando se trata da Bíblia, a visão fundamentalista de “inspiração” serve como base à má interpretação. Tanto a interpretação errônea, como o conceito fundamentalista de inspiração, são resultantes do desejo ardente por ouvir um oráculo aprazível; por isso ordens sobre circuncisões não são tão inspiradas quanto estas.

2) O segundo problema é semelhante ao primeiro, o leitor crente não sabe identificar a quem o personagem “Deus” se dirige no texto, e lê tudo o que está em segunda pessoa como se fosse escrito para ele próprio. Assim, logo vê-se que o crente pode acreditar que deve meditar na lei do Senhor e obedecê-la, condição para que seja abençoado em seus próprios caminhos. Ora, as promessas do texto são bem mais restritas; dirigem-se a Josué, que estava na narrativa a ponto de invadir terras alheias e conquistá-las para fazer delas território israelita. Não há nada no texto em si que nos faça crer que tais promessas se apliquem também a qualquer leitor do texto.

3) Outro problema já mencionado superficialmente é o contextual. Neste exemplo é comum que o leitor crente imagine que deve se devotar ao estudo dos textos bíblicos, e toma isso como mandamento. No entanto, tal prática não existia nas culturas antigas a não ser entre uma minoria de religiosos letrados, que não existiam entre esses supostos nômades e dos quais Josué não faria parte se existissem. Quando esse texto foi escrito, os textos sagrados eram lidos coletivamente em assembléias, e o povo essencialmente analfabeto, memorizava algumas passagens e meditava nelas. Não existiam livros como hoje temos, e os poucos rolos de papiro que privilegiados escribas tinham custavam caro. Além do mais, ainda que o texto incentivasse a leitura e o estudo dos textos sagrados, só a Torá está sendo mencionada, e não seria necessário ler os profetas, os escritos e muito menos o Novo Testamento. A complexidade desse item já é evidência suficiente de que o leitor crente, por melhor que sejam suas intenções, raramente pratica a religiosidade proposta na Bíblia.

Se julgo que a interpretação que os leitores evangélicos fazem dos textos bíblicos está assim equivocada, naturalmente suponho que todas aquelas canções que lembram promessas de prosperidade não passam de falsa religiosidade. De nada adianta cantar a toda voz que você crê numa promessa que Deus nunca fez. No entanto, pode-se ignorar os argumentos que acima apresentei e dizer que independente disso essa fé funciona. Será?

Duvido que a prática confirme esta crença. Sei que há semanalmente nas igrejas e até no rádio e na TV muitas pessoas testemunhando a respeito das bênçãos alcançadas. Ouvimos muitas pessoas falando sobre seu sucesso profissional e financeiro, mas isso não me convence por um motivo simples: se Deus realmente abençoa quem crê, quem é fiel à Bíblia ou coisa assim, deveríamos ver alguma mudança na classe social dos membros das igrejas evangélicas, coisa que não é possível constatar. Quero dizer que se realmente os crentes fossem alvos de promessas especiais de bênçãos, as igrejas testemunhariam mudanças significativas, e uma porcentagem razoável dos membros pobres chegariam à classe média, por exemplo.

Infelizmente as igrejas da periferia continuam pobres como antes. O número de crentes desempregados é o mesmo, e o número de famílias que carecem de assistência é o mesmo, com pequenas variações de ano para ano. Enquanto no microfone alguns bem-aventurados contam sobre seus sucessos, nos bancos há outros que faliram, que perderam o emprego, que foram roubados... Quer dizer que independente de como se lê o texto bíblico esse evangelho da prosperidade não funciona. Como haveria de funcionar, se ele é uma invenção de leitores incompetentes da Bíblia? Ou para ser mais brando, ele é uma invenção de almas carentes que encontraram na fé em um Deus doador de bens materiais que não existe uma maneira de alimentar sua esperança e continuar vivendo.

Antes de terminar, devo confessar que nem sempre pude avaliar a leitura que alguém faz de um texto bíblico como fiz aqui. Mas afirmo com segurança que tenho crescido nessa ciência que é a interpretação bíblica, e é por já ter evoluído um pouco que anseio também pela evolução de meu leitor, razão pela qual lhes escrevi um texto tão ofensivo para muitos. Eu disse que tudo começou com tristeza e irritação, não poderia esse texto ser diferente.

Espero que o texto tenha lhe acrescentado alguma coisa, pois o CD que ouvi e o exemplo que dei não são exceções, mas são uma pequena amostra da religiosidade evangélica brasileira que sofre e que no futuro sofrerá ainda mais com a deplorável atitude de seus líderes, esses sim, pessoas cada vez mais prósperas.

4 comentários:

Francisco Junior disse...

Belo refrão da canção. É, começamos o ano muito bem com este texto. Precisamos repensar a fé e as nossas praticas. Infelizmente o crente não lê a Bíblia. E quando lê não entende porque como você disse: "... não tira as lentes do fundamentalismo...". Você me fez lembrar que os crentes fazem teologia com as canções " evangelicas". Você pode perceber repetições de refrão de hinos em pregações, orações, visitas e textos devocionias. Gostei deste texto, me fez pensar.

Francisco Junior disse...

Belo refrão da canção. É, começamos o ano muito bem com este texto. Precisamos repensar a fé e as nossas praticas. Infelizmente o crente não lê a Bíblia. E quando lê não entende porque como você disse: "... não tira as lentes do fundamentalismo...". Você me fez lembrar que os crentes fazem teologia com as canções " evangelicas". Você pode perceber repetições de refrão de hinos em pregações, orações, visitas e textos devocionias. Gostei deste texto, me fez pensar.

Anônimo disse...

SUGESTÃO!
Voce poderia gravar vídeos com as suas canções, e postar aqui. Porque eu sei que além de pesquisador, voce é um grande músico e compositor também.

Anônimo disse...

Que tal ajudar os pobres?
Essa doutrina da prosperidade, essa fé cega de que quanto mais voce der mais voce recebe é furada, só deixa os pseudo líderes cada vez mais prósperos.
Não fosse assim, já não haveria pobres nas Igrejas. Enquanto uns arrotam abundância "que Deus deu" muitos outros estão falidos de tanto pagar o dízimo.
Deus não dá bens materiais. Ele nos empresta o Universo e tudo que nele há, e tudo podemos conseguir, mas não é doando dinheiro para as Igrejas, é trabalhando para o progresso de todos.
O que traz dignidade e felicidade ao homem é a transformação moral, a caridade e a compreensão do AMAI-VOS UNS AOS OUTROS. É dando que se recebe? Sim, mas não é ao Pastor que se deve doar e sim ao seu próximo mais necessitado.
A sorte dessas Igrejas é que o povo não lê a Biblia, e quando lê não entende e aceita a explicação do pregador.
Um pregador devia seguir o exemplo de Jesus, que andava descalço e jamais aceitou ou deixou seus discípulos aceitarem donativos que não fosse alimento, e mesmo assim o necessário para o momento, nunca fez reserva para o dia seguinte. Jesus não revogou o dízimo, nem qualquer Lei existente nos seus dias, mas nunca aceitou pagamento pelos seus milagres e nunca cobrou ingresso para as suas palestras.
Se tens o dom de evangelizar, lembre-se que esse dom veio de Deus e nada foi lhe cobrado por isso. Dai de graça aquilo que recebeste de graça. Pensem nisso evangélicos.