sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O JOVEM RICO: NOVAS REFLEXÕES SOBRE MT 19.16-22

INTRODUÇÃO

Nos últimos dois anos tenho dedicado a maior parte dos meus estudos à compreensão da linguagem econômica do cristianismo primitivo; para ser mais específico, tenho me concentrado no evangelho de Mateus e em seu linguajar econômico.[1] Isso basta para justificar esse novo estudo, onde veremos a famosa passagem do “Jovem Rico”, que é um dos textos econômicos mais conhecidos do Novo Testamento, e que ainda não havíamos abordado. Assim, nas próximas páginas nos dedicaremos à sua análise procurando compreender como esse texto deve ser entendido dentro do âmbito econômico do primeiro evangelho, o que explica também porque nem todos os aspectos do texto serão considerados em nossa exegese. Ao final, arrisco algumas considerações hermenêuticas para que os cristãos de hoje também se beneficiem com o texto.

Começo, como sempre, expondo o texto através de uma tradução própria. Em geral, não há problemas de tradução nesta passagem, mas o leitor talvez note algumas poucas mudanças que fiz em relação às versões mais conhecidas, as quais serão explicadas ao longo do nosso estudo. Vamos então ler Mateus 19.16-22 e dar início ao trabalho:

16 E eis que alguém aproximando-se dele disse: "Mestre, o que faria eu para que tenha vida eterna?" 17 Então ele lhe disse: "Por que me perguntas acerca do bom? Somente um é bom. Mas se queres para a vida entrar, observa os mandamentos". 18 Ele disse: "Quais?". Então Jesus disse: "Não matarás; não adulterarás; não roubarás; não darás falso testemunho; 19 respeita o pai e a mãe; e ama teu próximo como a ti mesmo". 20 Disse-lhe o jovem: "Observo todos estes; o que me falta?" 21 Falou-lhe Jesus: "Se queres ser completo, vai, vende das tuas coisas o que há e dá aos pobres, e tu terás um tesouro no céu, e aqui segue-me". 22 Mas, ouvindo o jovem a palavra partiu entristecido; pois estava possuindo muitas propriedades.

UM TEXTO IMPESSOAL

Temos aqui um diálogo entre Jesus um jovem que nem mesmo é identificado no início do texto. Na verdade, a falta de identificação do personagem não é um problema, mas uma virtude do texto; assim, esse jovem rico sem nome e sem rosto pode ser mais facilmente visto como um exemplo aplicável a uma categoria de pessoas, e não a alguém em especial. O objetivo do texto não é contar a história de um diálogo de Jesus com alguém, mas pregar para todo ouvinte ou leitor sobre os problemas decorrentes da riqueza. O jovem é, na verdade, um exemplo aplicável a qualquer pessoa rica que está presa aos seus bens e por isso não segue Jesus.

DUAS QUESTÕES EM UMA AULA

Penso que um dos pontos mais importantes que devemos notar é que a busca por Jesus era uma busca por instrução; o jovem chama Jesus de mestre e o diálogo que se segue ficaria bem contextualizado dentro de uma sala de aula. Então, podemos enumerar as perguntas e respostas centrais com bastante clareza, destacando assim aquilo que me parece ser a “espinha dorsal” da perícope:

1) O jovem pergunta: “o que faria eu para herdar a vida eterna?” (v. 16)

2) Jesus responde: “observa os mandamentos” (v. 17b)

3) O jovem aprofunda sua pergunta dizendo: “observo todos estes; o que me falta?” (v. 20)

4) Jesus responde: “segue-me” (v. 21)

O diálogo pode, portanto, ser dividido em duas partes: a primeira fala da Lei, e a segunda aprofunda o tema acrescentando algo que os praticantes da Lei, os judeus em geral, desconheciam. Essa segunda resposta de Jesus é o cerne da passagem, como veremos a seguir.

PRIMEIRA PERGUNTA: A LEI

Primeiro, sobre a primeira parte do diálogo (ou aula), podemos notar que Jesus faz uma explanação positiva sobre os mandamentos. A Lei para Jesus (e obviamente para o autor de Mateus), não era negativa ou coisa para se descartar em virtude de uma nova religiosidade. Trata-se de um diálogo entre judeus, e não entre um cristão sem lei e um judeu limitado à antiga Lei, como poderíamos julgar. Para ambos a Lei da Torá é válida, e deve ser obedecida.

Agora, um parêntese sobre os mandamentos: Se atentarmos para os mandamentos que Jesus menciona em comparação com os mandamentos do Antigo Testamento, como os de Deuteronômio 5, por exemplo, notaremos que faltam alguns deles na passagem de Mateus. Os evangelhos excluem nesta passagem do jovem rico, o mandamento de amar a Deus acima de todas as coisas, de não ter outros deuses além de Javé e não tomar seu nome em vão; tais instruções sobre o relacionamento com a divindade estão, porém, expressos noutras formas ao longo dos evangelhos. Nosso texto também omite a ordem para se guardar o sábado, mandamento que é por Mateus interpretado de forma diferente, como uma ocasião propícia para se fazer o bem.[2] Por fim, falta também a instrução sobre não cobiçar mulher e bens alheios (Dt 5.21). Este último, todavia, parece estar presente na versão de Marcos, que diz resumidamente: “... não defraudarás...” (Mc 10.19). A expressão grega aposteréo pode ser traduzida por “defraudar”, “despojar” ou “privar”, o que me leva a crer que Marcos resumira assim a ordem para não cobiçar o que é dos outros. Curioso é que tanto Mateus quanto Lucas excluíram esta parte da Lei de suas versões.[3]

Bem, até onde vimos o jovem era um judeu “praticante”, que observava os mandamentos que segundo as palavras de Jesus, eram os decisivos para que alguém ter a vida eterna. A primeira impressão que temos é a de que a lista de mandamentos dos versículos 18 e 19 poderiam ser excluídos sem qualquer prejuízo. Todavia, a escolha de uns mandamentos e a omissão de outros não é descuido do autor; a pergunta aparentemente inocente feita pelo jovem serve exatamente para introduzir a lista de mandamentos que lemos, que foram escolhidos cuidadosamente. Então, qual é a mensagem que o texto está querendo nos transmitir nesta lista?

Julgo que a partir da lista fornecida é possível dizer que para o evangelho de Mateus os mandamentos a serem observados são aqueles cujo resultado proporciona o bom relacionamento comunitário. São todos eles meios de evitar a discórdia dentro de determinada aldeia ou família. Por outro lado, estão excluídos da lista exatamente os mandamentos de caráter religiosos, onde a preocupação é agradar a Deus e não ao próximo. Daí, concluiria de maneira provisória que é prioridade nos evangelhos manter e até restabelecer o bom convívio entre as pessoas, mas que os mesmos evangelhos são mais reformadores quando o assunto é a religião. Ainda que se ame a Deus, que se abstenha dos ídolos, e que se guarde o sábado, a maneira de praticar tais mandamentos é um problema em aberto, que gera discórdia e divisão entre as diferentes seitas do judaísmo.

Temos, enfim, nos versículos 18 e 19 a lista dos mandamentos de fácil interpretação e aplicação, que deveriam depois de Jesus ser seguidos como sempre foram. E os mandamentos omitidos, estão entre aqueles que precisam ser discutidos com mais atenção outro momento do evangelho.

SEGUNDA PERGUNTA: A COMPLETUDE

Seguindo para a segunda parte do diálogo, vemos que o jovem era um bom vizinho e um bom filho, pois guardava os mandamentos do bom convívio comunitário. Mas ele queria mais, queria ser “completo”. Preferi traduzir o texto assim, usando o adjetivo “completo” no lugar de “perfeito” por dois motivos: o jovem depois pergunta a Jesus o que lhe “falta”, o que indica que ele é bom, mas que é incompleto, e não que é uma pessoa imperfeita, que tem algum defeito. A diferença é sutil, mas assim creio que a abordagem positiva que o texto faz da Lei é mantida. Se o jovem, ainda que praticante de todos os mandamentos, fosse imperfeito, chegaríamos à conclusão falsa (tipicamente cristã) de que a prática dos mandamentos não era essencial para os judeu-cristãos do grupo mateano.

Aqui entra o problema econômico deste texto. Jesus, ao menos neste exemplo, não condena diretamente o judaísmo de seus contemporâneos em nenhum aspecto; entretanto, ele ensina um modo de vida ainda melhor, que envolve uma nova forma de lidar com os bens materiais e com as necessidades cotidianas. O jovem judeu rico, ao praticar a Lei, já tinha a vida eterna; mas ele não poderia ser completo a menos que vivesse como Jesus. E como é essa vida que leva à completude?

Lembremos que o programa apresentado às comunidades camponesas da Galiléia pelo movimento de Jesus era uma proposta de resistir pacificamente às privações que a classe camponesa sofria sob a dominação romana. Jesus chamava os simpatizantes do Reino de Deus a abdicarem de toda suposta segurança material e a praticarem o amor sem medidas. Naqueles dias, podemos dizer que o grupo de simpatizantes de Jesus se dividia em dois sub-grupos: 1) os “pobres”, que eram pessoas que já estavam despossuídas, que perderam terra e trabalho diante da exploração imperial e viraram proclamadores itinerantes do Reino de Deus;[4] 2) e os “chefes de família”, que ainda tinham terra ou ao menos uma ocupação fixa da qual sobreviviam.[5] Jesus andava sem posses com os “pobres” do primeiro sub-grupo, e procurava ensinar os que ainda tinham alguma coisa do segundo sub-grupo de que eles também poderiam acabar sem nada se não mudassem de atitude. Vender o que tem servia para ajudar os camponeses famintos do primeiro sub-grupo, e seguir Jesus integrando-se a esses pobres era uma maneira de aceitar que Deus escolhera implantar seu Reino entre os mais fracos, e que o caminho de Deus não estava na busca pela prosperidade junto aos ricos.

Assim, os leitores do evangelho de Mateus eram, através do diálogo entre Jesus e o jovem rico, convidados a abdicar de suas atividades sedentárias para participar do movimento dos itinerantes, a deixar seus bens em favor dos mais necessitados e a viver como Jesus, pregando e confiando em Deus para a provisão necessária a cada dia (como em Mt 6.25-34 e 14.13-21). Esse era o modo de vida ideal segundo os primeiros cristãos, embora não fosse essa a opinião de todos.[6] Contudo, temos de reconhecer que o movimento itinerante dos primeiros cristãos sempre dependeu do apoio material dos simpatizantes sedentários, ou seja, sempre houve pessoas que não partiram pelo mundo como pregadores, mas que patrocinaram os mesmos.[7] Embora o itinerantismo fosse o modo de vida considerado ideal, ambos eram necessários e no fim foram as comunidades fixas que se transformaram na igreja cristã.

Mas no final do texto o jovem não segue Jesus, está preso à suas propriedades. Ele faz parte dos simpatizantes sedentários, que gostam do ensino do mestre Jesus porém não aderem ao itinerantismo. Mais que isso, diz o texto que o jovem possuía “muitas propriedades”, o que o faz ser chamado de rico pela tradição cristã. Este fazendeira tinha mais do precisava, e suas terras eram provavelmente trabalhadas por escravos ou assalariados, o que faz desse jovem temente a Deus um mantenedor da desigualdade social que levou ao surgimento do movimento sem terra de Jesus.

Se ele tivesse a coragem de abrir mão de seu status para o bem do seu próximo, e se seguisse o modo de vida proposto por Jesus, seria melhor do que já era. Agora um palpite: talvez, simplesmente por negar ajuda ao próximo enquanto acumulava terras, o jovem descumprisse o mandamento de “não defraudar” que estava em Marcos 10.19 e que foi eliminado por Mateus e Lucas. O que é certo é que o cristianismo primitivo, como movimento social e religioso que tinha no itinerantismo seus primeiros líderes, via na posse de qualquer tipo de riqueza um empecilho para o seu maior desenvolvimento. Daí Jesus contava parábolas como: “O reino dos céus é semelhante ao tesouro escondido no campo, o qual um homem encontrando escondeu, e por sua alegria vai e vende tudo o quanto tem e compra aquele campo” (Mt 13.44).

Os pobres eram, desde o século I, mais sensíveis ao chamado radical de Jesus e seus primeiros seguidores. Aí também se encaixa o dito que desde cedo foi utilizado como uma espécie de conclusão ao diálogo do jovem rico com Jesus: “Então Jesus disse aos seus discípulos: ‘Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará para o reino dos céus’” (Mt 19.23).

OS TESOUROS CELESTIAIS: INCENTIVO AOS NOVOS SEGUIDORES

Para terminar, veja a promessa condicional que é feita ao jovem no versículo 21: “...vai, vende das tuas coisas o que há e dá aos pobres, e tu terás um tesouro no céu...”. Há um “compensador” para o prejuízo financeiro caso o jovem ou qualquer leitor de posses aceitasse o desafio; o “compensador” é a promessa de recompensas celestiais. Como em Mt 6.19-21, o texto que fala dos tesouros terrenos e celestiais, aqui não se sabe o que são exatamente esses tesouros celestiais; sabe-se que toda vez que alguém abre mão de um “tesouro” terreno de boa vontade para fazer o bem ao próximo isso resulta em uma recompensa para a eternidade. Eu diria então que para ser completo, só era preciso guardar os mandamentos de boa vizinhança como os judeus já faziam, e seguir Jesus; a maneira de lidar com os bens materiais aqui indicada é um adendo. Caso algum simpatizante do Reino tivesse posses e seus cuidados lhe impedissem a vida de pregador andarilho, havia uma promessa para incentivá-lo a deixar tudo isso fazendo caridade. Seguir Jesus como pregador itinerante é o que realmente se objetiva no texto, em minha opinião.

CONCLUSÃO

Enfim, a cada texto dos evangelhos que examinamos nos aproximamos um pouco mais do projeto de vida proposto pelos primeiros cristãos. Além disso, quanto mais compreendemos esse projeto, parece que mais distantes nos encontramos dele. E isso não é por acaso. Então nos perguntamos: que conclusões práticas toda essa análise pode nos dar?

O aqui aprendemos é que se alguém quer ser um bom cristão, deve ser como o jovem rico, o que em outras palavras quer dizer que não devemos fazer ao próprio aquilo que não desejamos que nos façam (Mt 7.12). Mas a verdade é que somente aqueles que não se conformam com a desigualdade social e usam tudo o que possuem para amenizar o sofrimento do seu semelhante pode ser um cristão “completo”. A riqueza continua sendo um empecilho para tal condição de completude, mas sabemos que ainda há pessoas abdicadas que merecem tesouros celestiais; são eles os verdadeiros descendentes dos pregadores itinerantes. Quanto a nós, que sejamos ao menos bons vizinhos, e procuremos a cada dia melhorar tirando de nossos corações os tesouros terrenos que nos prendem, isto é, se realmente acreditamos na vida eterna e na Bíblia.

BIBLIOGRAFIA

CROSSAN, John Dominic. O Nascimento do Cristianismo: O que Aconteceu nos Anos que se Seguiram à Execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004.

FARIA, Lair A. dos Santos. Evangelho Q: um “Turning Point” na História do Cristianismo Primitivo. In. Revista Gaia, 4ª edição, 2007, pp. 58-72. Disponível em: . Acesso em: 19/01/2010.

FERREIRA, João Cesário Leonel. E Ele Será Chamado Pelo Nome de Emanuel: o Narrador e Jesus Cristo no Evangelho de Mateus. Campinas: Universidade Estadual de Campinas (Tese de Doutorado), 2006.

GARCIA, Paulo Roberto. O Sábado do Senhor teu Deus – O Evangelho de Mateus no Espectro dos Movimentos Judaicos do Século I. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo (Tese de Doutorado), 2001.

HORSLEY, Richard A. SILBERMAN, Neil Asher. A Mensagem e o Reino: Como Jesus e Paulo Deram Início a uma Revolução e Transformaram o Mundo Antigo. São Paulo: Loyola, 2000.

MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos Sinóticos: Formação, Redação, Teologia. São Paulo: Paulinas, 2001.

THEISSEN, Gerd. O Movimento de Jesus: História Social de uma Revolução de Valores. São Paulo: Loyola, 2008.

__________. Sociología del Movimiento de Jesús: el Nacimiento del Cristianismo Primitivo. Santander: Sal Terrae, 1979.



[1] Como mestrando em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, tenho trabalhado desde 2008 em minha dissertação intitulada Acumulai Tesouros no Céu: Estudo da Linguagem Econômica do Evangelho de Mateus, a qual será finalizada ainda neste semestre. Além disso, tenho produzido vários artigos sobre o mesmo tema.

[2] Como defende Paulo R. Garcia em sua tese de doutorado onde diz:

“O evangelho, a partir do princípio de que (como costumam fazer os adversários) se deve fazer o bem a um animal que sofre em um sábado (em especial quando este animal é o único do proprietário), elabora um novo princípio geral: fazer o bem a um ser humano é sempre mais importante do que qualquer coisa [...] A verdadeira prática da misericórdia é fazer o bem a todos os que estão em situação de sofrimento. A prática de guardar o sábado, a verdadeira imitação de Deus para a comunidade mateana, é definida como fazer o bem”

Cf. GARCIA, P. R. O Sábado do Senhor teu Deus, p. 209.

[3] Assim afirmamos por estarmos de acordo com a amplamente aceita “teoria das duas fontes”, a qual defende que Marcos foi escrito primeiro, e que tanto o autor de Mateus quanto de Lucas o utilizaram posteriormente na composição de seus próprios evangelhos. Para ver mais sobre a “teoria das duas fontes” leia: CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo, pp. 145-153; 2) FERREIRA, J. C. L. E Ele Será Chamado Pelo Nome de Emanuel, pp. 27-32; 3) MARCONCINI, B. Os Evangelhos Sinóticos, pp. 65-67; e também o artigo 4) FARIA, L. A. dos S. Evangelho Q: um “Turning Point” na História do Cristianismo Primitivo.

[4] Cf. HORSLEY, R. A.; SILBERMAN, N. A. A Mensagem e o Reino. p. 71.

[5] CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. pp. 365-370

[6] THEISSEN, G. Sociologia del Movimiento de Jesus. p. 15.

[7] Cf. THEISSEN, G. O Movimento de Jesus. pp. 113-116.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O GRANDE TRUQUE: OS PECADOS DA IGREJA NA ÁREA TRABALHISTA

Para tratar do tema que tenho em mente escolhi, nesta ocasião, utilizar-me de dois personagens fictícios cujos nomes irreais serão interpretados pelo leitor facilmente. São eles Crente e Pastor. Queria que a situação narrada também fosse irreal, porém, infelizmente a vi repetidas vezes e sei que muitos dos leitores a reconhecerão. Ela desvenda o “grande” truque realizado em igrejas evangélicas em que um ato de exploração é transformado num passe de mágicas em caridade, onde um explorador fica conhecido como benfeitor, e onde um trabalhador explorado é transformado em pessoa ingrata e devedora.

Não falarei, por mais que possa parecer, de nenhum caso em especial. Também não falo disso com mágoa ou qualquer sentimento de raiva em relação a qualquer pessoa. Meu anseio é revelar um sistema injusto que leva pessoas que no fundo podem ser boas a explorar outros sem notar, acreditando que os ajudam enquanto só agem por seus próprios interesses. Desejo livrar os explorados que inocentemente acreditam que estão sendo ajudados e que se apóiam na esperança de um futuro reconhecimento e sucesso. Vamos à narrativa

I – Essas Coisas Acontecem

Numa cidade brasileira qualquer, aconteceu outra vez. Um mal comum da nossa sociedade atingiu mais uma família. Um homem de meia idade chamado Crente foi surpreendido com a notícia de que a empresa em que já trabalhava havia sete anos o estava desligando. No momento ele nem entendia o que o outro funcionário o estava dizendo, mas quando notou que devia ir embora daquele lugar para sempre, quis saber o motivo.

– Mas por que isso agora? Ninguém me avisou de nada. Fiz alguma coisa de errado?

– Não, Crente, você não está entendendo. – Respondia-lhe o funcionário com pena por notar que surpreendia seu antigo companheiro de trabalho com uma notícia horrível. – Não se trata de você, eu lhe asseguro. São questões administrativas; podia ser qualquer um.

Tentando último recurso desesperado, Crente abriu mão do orgulho, e tentando encontrar lágrimas para os olhos dizia coisas como:

– Pode falar, há algo que eu tenha feito de errado? Posso melhorar. Será que você não pode falar com o chefe por fim?

Sinceramente decepcionado, o funcionário respondeu: – Amigo, creia-me, administradores só vêem os números no fim do mês, não há pessoas, nem famílias, nem sonhos... Infelizmente, tenho que lhe dizer que você é só o primeiro de muitos a serem cortados por esses dias. Temo que eu mesmo esteja entre esses.

Crente não podia acreditar. Estranhava voltar para casa tão cedo, num ônibus tão vazio onde ninguém notava a desolação que havia em seu interior. Ele perguntava a Deus por que aquilo lhe acontecia agora, logo quando tinha comprado um novo dormitório para sua filha que chegaria ao mundo em poucos meses. Entre clamores e cálculos, ele controlava a língua para não dizer qualquer coisa ingrata a Deus, embora não compreendesse como alguém como ele podia sofrer de tal injustiça.

– Essas coisas acontecem, nós vamos superar isso também – disse sua esposa demonstrando um equilíbrio que também lhe fortalecia. – Não tenho dúvidas de que Deus está preparando algo melhor para nós depois de tudo isso.

II – Uma Surpresa

O equilíbrio de Crente e sua esposa desapareceram quando três meses se passaram e nada de novo acontecia. Até que uma nova porta, aparentemente proporcionada por Deus, abriu-se diante de Crente.

Era já a terceira visita que Crente fazia ao seu amigo Pastor, o administrador da igreja evangélica da qual Crente e sua família faziam parte, quando uma notícia lhe foi dada:

– Estive orando e Deus me mostrou um meio de lhe ajudar – disse Pastor – Como você está parado penso que o irmão poderia substituir o antigo zelador, que nos deixou mês passado.

Crente fingiu surpresa, mas já pensara na possibilidade de trabalhar para Pastor mesmo antes de ser demitido. Ele só podia ver nisso uma ação de Deus em seu favor.

Ele quase não ouvia mais nada quando o pastor disse: – Mas o irmão sabe que não estávamos preparados para qualquer investimento no momento, e por isso não posso pagar muito pelo seu trabalho, pelo menos para começar.

Ele aceitou a proposta de receber quase um terço do salário que recebia na antiga função para servir aos irmãos em todos os horários de atividade no templo da igreja. Isso lhe pesou no coração enquanto saía da residência do seu amigo Pastor. Todavia, ergueu a cabeça e disse para si mesmo que essa oportunidade inesperada era prova de que ele podia confiar em Deus, aquele que não desampara os justos. Lembrou-se até de ocasiões em que Deus, ou melhor, um pregador falando supostamente em nome de Deus, prometera que as coisas iam se transformar de repente na vida dele. Era um novo começo.

III – Grandes Amigos

No quarto aniversário de sua filha, aquela que estava para nascer no capítulo anterior, Crente convidou alguns amigos para uma pequena comemoração. A casa ficou cheia como nunca, pois na função de zelador da igreja ele fizera muitas amizades. Mas Pastor não foi convidado, embora todos julgassem que eles fossem grandes amigos.

A festa acabou por entristecer Crente, que não pôde alimentar tantos convidados como gostaria e viu a bebida acabar sem que nenhum cristão transformasse água em refrigerante. Naquela noite, após a festa, decidiu deixar a zeladoria da igreja. Notara que a igreja tinha atividades praticamente todos os dias e o tempo todo, notara que não tivera nada mais que duas semanas de descanso após o terceiro ano de trabalho, e notara principalmente, que a má remuneração que antes era “para começar” continuava a mesma e sem qualquer reajuste depois de tanto tempo.

Naqueles dias sua mulher, revoltada com a situação, repetia suas lamúrias constantemente dizendo que Crente deveria reclamar, procurar seus direitos na justiça... Mas ele não era capaz de fazer tal coisa. Ele dera sua palavra, e a palavra de Crente deve ser honrada. Mas quando finalmente não suportou mais a pressão, simplesmente arrumou uma desculpa e deixou sua função.

Isso também não lhe trouxe paz alguma, antes, mais acusações. Ele dizia a si mesmo: – Desde que me conheço por Crente nunca contara uma mentira. Não tenho entrevista de emprego nenhuma, eu pequei.

Além dele mesmo se acusar, os seus irmãos diziam que ele havia deixado Pastor “na mão”, o que foi um gesto de ingratidão depois de tanta ajuda que recebera.

Não demorou muitos para que a esposa de Crente, mulher submissa mas que sabia tomar as atitudes quando seu marido fraquejava, se irritasse com toda essa situação. Sem que ele soubesse ela foi até a residência de Pastor para lhe dizer tudo o que pensava. Ela ensaiou as palavras pelo caminho, e lá exigiu pagamento por todas as férias não usufruídas pela família, exigiu os décimos terceiros salários não pagos, e tudo aquilo que ela achava que mereciam.

Calmamente Pastor a ouviu falar, e quando ela já não tinha mais nada para dizer, respondeu com voz branda: – Minha irmã, Eu paguei ao seu marido exatamente o que combinamos, e isso é tudo o que nossa comunidade dispunha. Ele se lembra que veio à minha casa pedir ajuda e eu lhe atendi com boa vontade. Na ocasião, nem mesmo devia aceitar novos funcionários, mas o fiz pela grande consideração que tenho por vós. Eu não tirei seu marido do emprego anterior, não fiz qualquer promessa, não lhe dei prazos... Ele vinha semanalmente à minha casa lamentar e eu lhe fiz um favor. – Agora, amada irmã, vejo que vens à minha casa cobrar-me como se eu fosse uma pessoa injusta, o que muito me entristece.

A expressão de ira da mulher se transformava a cada frase emotiva do Pastor, e logo ele chegou à conclusão de que era um erro estar ali. Da maneira mais rápida que pôde encerrou a conversa e se foi. Pediu até que Pastor orasse a Deus por eles nas próximas semanas, quando Crente procuraria por uma nova ocupação.

Enfim, Crente seguiu sua vida sem tanto envolvimento na comunidade, e encontrou uma forma de consolar-se e crer num futuro melhor: ele diariamente repetia dentro de si que não prosperara naquela função porque servira a Deus todos esses anos com um coração ambicioso. E assim, acaba nossa pequena história.

Conclusão

Agora, amigo leitor, deixa-me expressar meu ponto de vista sobre as páginas que lemos. Crente, o personagem que criei é uma pessoa simples, que deseja “servir a Deus” como dizem os evangélicos e vê na oportunidade de trabalhar na igreja uma grande ocasião. Nada há de errado nisso. As igrejas, embora sejam instituições sem fins lucrativos, precisam ser administradas como qualquer outra empresa. Elas precisam de zeladores, secretários, administradores, seguranças, faxineiros, pintores etc.

Contudo, há uma particularidade na igreja como empresa: ela encontra com facilidade pessoas que aceitam exercer para elas atividades voluntárias. Essas pessoas fazem o que fazem para Deus, mas também servem assim a uma instituição humana. Diante dessa realidade, a igreja pode contar com um número bastante reduzido de funcionários efetivos, ou seja, que recebem para trabalhar. A igreja é, por isso, uma má empregadora.

Essa diferença gera outras particularidades. É claro que o serviço voluntário não é como o serviço pago. Quem busca excelência deve contratar alguém qualificado, selecionar currículos, mas contando com pessoas que oferecem apenas algumas horas semanais por uma ajuda não remunerada, que não possuem treinamento especializado, a igreja conta com diversas deficiências.

É aí que entre o Crente, nosso personagem. Ele preenche uma vaga que precisava de mais que um voluntário. O caso é que ele sonhava em um dia trabalhar só para Deus, e preencheu essa vaga após perder o emprego. Isso permitiu ao Pastor lhe pagar pouco, sem registro em carteira, abusando ao negar-lhe direitos trabalhistas garantidos por lei, e ainda por cima dizer que o estava ajudando. Crente é na verdade um trabalhador explorado, que, se procurasse a justiça seria devidamente defendido, mas nessa situação sujeitou-se à exploração e saiu como se devesse algo ao Pastor.

Esse é o “grande” truque. O explorador encontra quem lhe sirva por pouco e ainda saia grato. O explorador se torna um bem-feitor da humanidade, enquanto que o trabalhador que deveria ser recompensado é um eterno devedor.

Não é surpreendente que a igreja, instituição tão moralista quando o assunto é roubar a Deus nos dízimos, ou a opção homossexual de um jovem, ou o divórcio de um casal, torne-se tão cega às injustiças que comete na área trabalhista? Falando em lei, até onde eu seu você só dá ajuda financeira a qualquer instituição não lucrativa se quiser, e o dízimo é contrário a tal lei; até onde eu sei, o cidadão brasileiro tem o direito de escolher sua opção sexual livremente, direito negado pela igreja; até onde eu sei, o divórcio é um direito de todos, e o Estado reconhece novos casamentos como se fossem os primeiro, outro caso em que a igreja nega a validade da lei. Entretanto, a igreja sonega impostos ao manter funcionários sem registro em carteira, fazendo-se uma instituição criminosa.

Então a igreja admite que é contrária à lei? De modo nenhum. Seu um casal de jovens ainda não casados gera um filho, isso é motivo de grande escândalo nas igrejas, e nesse caso, o que se diz é que a lei deve ser obedecida. A igreja só reconhece um matrimônio quando há uma certidão de casamento. Mas curiosamente a mesma lei não é reconhecida nos casos que citei acima. Vai entender!

Devo dizer que condeno um mal estrutural nessa pequena narrativa, um mal sistêmico que em maior ou menor proporção, faz parte do modo de ser de diversas igrejas evangélicas do nosso país. Se alguém incluir aqui o nome de alguma igreja, eu não me responsabilizo por tal acusação direta. Também não condeno aqui ninguém de maneira pessoal, e por isso o personagem Pastor não é uma pessoa má em si mesma; ele é qualquer um que esteja integrado à instituições que alimentam esse sistema explorador.

Para distinguir melhor o problema sistêmico do pessoal, parafraseio J. D. Crossan: imagine um homem bom que trata com todo cuidado de seus escravos. Ele é um bom senhor de escravos, que não bate, não deixa-os famintos, não os desumaniza; todavia, é um senhor de escravos, que está integrado ao seu sistema social e não vê o erro que comete simplesmente por ser parte dele. Assim também trabalha nosso Pastor, destruindo famílias enquanto permite que a injustiça opere por meio de sua instituição cristã. A injustiça não foi criada por ele, mas ele segue ordens e tradições, e não é capaz de ver o mal que comete.

Na verdade estou buscando um meio de terminar esse texto e não o encontro. Então vou deixá-lo assim, meio incompleto, para que cada leitor medite e julgue sua participação em sistemas opressores como o da igreja que criei.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O COLETIVISMO COMO CHAVE DE LEITURA BÍBLICA

Introdução

Se estás entre os poucos leitores que lêem os textos que escrevo com freqüência, já deves ter notado que na maior parte do que escrevo trato das dificuldades intrínsecas à prática da interpretação bíblica.[1] Esse é o tema que me fascina, e para o qual tenho me dedicado dia após dia. É sobre ele que outra vez quero trabalhar nas próximas páginas, procurando compreender um dos vários empecilhos que conduzem os leitores modernos da Bíblia a inúmeros equívocos. O problema desta ocasião não é muito simples, pois temos que tratar de aspectos sociológicos para diferenciar a nossa cultura com sua própria maneira de pensar, daquela cultura em que estavam imersos os escritores da Bíblia. Assim, começaremos estudando as características mais marcantes dessas duas formas de sociedade a partir de Bruce J. Malina, escritor que trata do tema em O Evangelho Social de Jesus.[2]

Após essa primeira abordagem, que faremos da maneira mais sucinta possível, veremos também brevemente alguns exemplos, para que compreendamos como a imersão em um determinado tipo de sociedade pode condicionar nossa leitura e nos afastar do sentido pretendido pelo texto, fruto de uma cultura distinta. Imagino que será uma tarefa instrutiva, para ser lida pausadamente. Também creio que ao final nosso empenho terá sido gratificante, já que novos sentidos se abrirão diante dos olhos do leitor que até agora fora ignorante sobre o problema em pauta. Então, mãos à obra?

Culturas Individualista e Coletivista

Bruce J. Malina é um estudioso do Novo Testamento que faz uso abundante das ciências sociais. Neste caso, ele aproveita-se do trabalho de pesquisadores como Harry Triandis, que ele chama de “psicólogo social”, para explicar o funcionamento da cultura dos homens bíblicos. Temos assim duas formas de cultura social, a individualista, com a qual nós, brasileiros do século XXI, habitantes de ambientes urbanos como o de São Paulo, nos identificamos. Em contrapartida temos a cultura coletivista, que foi praticamente o único tipo de sociedade no mundo antigo e que predomina ainda hoje fora dos grandes centros urbanos influenciados pelos europeus e norte-americanos. Primeiro tratemos da cultura individualista, citando não todas, mas as mais significativas de suas características:

Os individualistas priorizam a pessoa e sua individualidade, dão ênfase às metas pessoais, e não às metas de seu grupo social. Como exemplo claro da transição para este tipo de cultura, temos a mudança de atitude social em relação ao casamento. Hoje as pessoas escolhem seus parceiros desconsiderando as opiniões dos pais, coisa que seria incompreensível antigamente. Como em primeiro lugar está a satisfação pessoal, as decisões são tomadas solitariamente, enquanto que a opinião dos outros é secundária. Mesmo dentro de uma família, cada indivíduo possui seu próprio senso de destino, o que se vê na religião dos individualistas, onde a salvação é uma conquista individual, e cada um dá conta de seus próprios atos.

Podemos dizer, então, que em nossa sociedade cada pessoa é definida por suas próprias realizações, não tendo tanta importância se somos filho de um doutor ou de um catador de lixo. Tu és para os outros o que tu fazes; o que conta são teus próprios diplomas e conquistas, e não mais as dos teus pais.

Como o que importa é a realização pessoal, nossa cultura acaba por sofrer com uma exacerbada competitividade, e geralmente temos dificuldades para nos integrarmos em grupos como igrejas, associações ou partidos políticos, dando a eles apenas uma porção limitada de nossa vida. Queremos, acima de tudo, manter nossa autonomia.

A distinção ficará mais clara a partir de agora, quando falaremos das culturas coletivistas: Neste tipo de sociedade estranha aos leitores citadinos de hoje, os objetivos do grupo a que se pertence estão acima dos objetivos individuais; o sucesso do grupo é o alvo, ainda que seus indivíduos sofram. Isso nos permite vislumbrar a razão pela qual membros de grupos islâmicos extremistas e coletivistas explodem-se a si mesmo como ato supremo de dedicação aos interesses coletivos; estes “mártires” não são loucos, antes são pessoas dedicadas ao seu grupo, e por tal ação são honrados entre eles mais do que se fossem doutores. Nessas sociedades, a integridade da família, do clã ou tribo, determinam o comportamento dos indivíduos.

Nas sociedades coletivistas, repito, não são as realização pessoais que determinam o status da pessoa, mas sim sua participação no grupo. Onde se nasceu, sua descendência e classe social, definem quem você é, e daí explica-se a ênfase bíblica em genealogias e na preocupação com a filiação tribal. Os evangelistas se preocuparam e criaram diversos mitos sobre o nascimento de Jesus simplesmente porque os judeus não podiam aceitar que o Messias fosse um carpinteiro de Nazaré; então fizeram Jesus nascer em Belem, como um novo Davi, fizeram-no vir do Egito, como um novo Moisés, etc. Hoje não haveria problemas em pregar Jesus como homem sem posses, de pai desconhecido, de uma aldeia sem importância... mas na época isso era determinando para o sucesso da missão cristã.

Dissemos que hoje vivemos sob o mal da competitividade, mas os coletivistas também competem a seu modo. Eles possuem grande dificuldade de envolver-se com membros de grupos externos, e nalguns casos, a simples filiação a um desses grupos distintos é motivo suficiente para que todos eles sejam vistos como inimigos. Mesmo hoje, islâmicos já nascem inimigos dos israelenses, e por isso, na “guerra santa” que travam incessantemente, não há mortos inocentes; todos da raça alheia são inimigos, indistintamente. Na Bíblia, temos várias proibições a respeito de casamentos entre judeus e gentios, e quando um judeu presta serviço terceirizado ao império romano coletando impostos dos seus patrícios como faziam os publicanos, é visto como um inimigo mais desprezível do que os próprios estrangeiros.

Fica fácil entender porque nas culturas coletivistas não é nenhum problema que os pais escolham os cônjuges dos filhos, sempre zelando pelos interesses do grupo acima dos interesses individuais. Uma possível fuga de um jovem para casar-se com um mulher de um grupo inimigo, como o cinema dos individualistas sempre retrata, é naquelas culturas uma traição extrema. E isso se estende a todos os aspectos da vida, sendo que a religião do grupo é a religião do indivíduo, a posição política do grupo é a posição política do indivíduo, e a condição econômica do grupo é a condição do econômica do indivíduo.

Certamente isso não é tudo o que pode ser dito sobre as distinções sobre culturas individualistas e coletivistas, mas é o suficiente para que passemos à análise de algumas passagens da Bíblia, que afinal, é o que nos importa.

Economia e Religião: o Reino de Deus é dos pobres

Começo a abordagem dos textos citando uma conhecida bem-aventurança que em sua versão em Lucas 6.20 diz:

“Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus”

Primeiro, tratando do aspecto econômico, o texto menciona os “pobres”. Não há dúvidas de que o texto se dirige ao grupo de judeu-cristãos que produziu e utilizaria o texto, o que nos leva a entender que todos eram considerados “pobres”, ou despossuídos de bens materiais. O segundo aspecto do texto é religioso, trata dos bem-aventurados (abençoados) que herdam o Reino de Deus. Então, o texto é bastante fechado por limitar a posse do Reino somente aos pobres, como se no grupo ninguém pudesse ficar rico, e como se ninguém fora dessa classe social pudesse almejar o Reino.

Leitores individualistas como nós, se estiverem dispostos a herdar o Reino de Deus, logo entendem que devem abrir mão de suas posses. Contudo, o texto é fruto de um autor coletivista, e mesmo que no cristianismo primitivo existissem algumas pessoas não tão pobres, isso não implica que eles perderiam o acesso ao Reino de Deus. Ou seja, as caracterizações são amplas, abrangentes; como a maioria deles era pobre, e como seus opositores (a elite sacerdotal ou romana) eram “ricos”, eles usam “pobre” e “rico” para se referir a grupos, e não a indivíduos. Quem herda o Reino não são os despossuídos, mas os que pertencem ao grupo que eles chamam aqui de “pobres”.

Na mentalidade bíblica, um romano, seja ele rico ou pobre, não entra no Reino de Deus, enquanto que um judeu-cristão, seja rico ou pobre, entra. A salvação na Bíblia não deve ser entendida como conquista pessoal, mas como um direito coletivo. Nos tempos bíblicos cada grupo social via-se como o povo eleito, hoje, mesmo entre os calvinistas não há mais esse tipo de eleição coletiva que depende apenas da pertença ao grupo escolhido, agora dentro de um mesmo ajuntamento há salvos e não-salvos.

Estendendo essa conclusão a outra passagem, podemos ver que quando Jesus disse: “Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas!” (Lc 18.24), o problema não estava na riqueza material em si, mas num mal sistêmico da sociedade, em que todo tipo de riqueza era fruto da exploração de outrem. Assim, os ricos, por mais distintos que fossem uns dos outros, eram vistos como um só grupo de opressores. Por sua vez, os pobres, ainda que entre eles houvessem bandidos e assassinos, são em termos gerais chamados de “justos”, posto que não compartilham da mesma vida confortável e desumanizadora da qual participam os ricos. Como escreveu J. D. Crossan, “O Deus judaico não tem opção preferencial pelos pobres; antes, o Deus judaico tem opção preferencial pela justiça”.[3] Quando os já citados publicanos passavam a trabalhar para o sistema opressor do império, automaticamente eram tratados como os ricos ou gentios, como se tivesse se desvencilhado de sua raiz e também do destino comum deles.

Eis aí a fonte de muitos equívocos em nossas interpretações da Bíblia, nós vemos as distinções de classes, as opções religiosas, e o destino eterno de maneira individual, enquanto que na verdade, todas elas eram aplicadas de maneira coletiva.

Família e Política

Seguindo em nosso estudo, voltamo-nos agora para outro texto que nos dará a ocasião para falar de outros dois aspectos sociais que são tratados de maneira coletivista na Bíblia. O texto é Marcos 6.17-18, e diz o seguinte:

“Porque o mesmo Herodes, por causa de Herodias, mulher de seu irmão Filipe (porquanto Herodes se casara com ela), mandara prender a João e atá-lo no cárcere. Pois João lhe dizia: Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão.”

O texto fala da prisão de João Batista. O ocorrido foi o seguinte: Herodes Antipas governava a Galiléia e casara-se com Herodíades, que antes fora a mulher de seu irmão Herodes Filipe. O profeta João criticara publicamente o ato de Antipas, dizendo que isso não era lícito, o que levou o tetrarca a prendê-lo e depois matá-lo. Nós, da cultura individualista, não tardamos a relacionar a morte de João Batista com o pecado de Antipas, que forçara o divórcio da mulher para levá-la a um segundo casamento (Lv 18.16). Nós, à primeira vista, só vemos Antipas agindo por um interesse pessoal, como um homem moderno que se apaixona e comete erros em virtude dessa paixão irracional. Todavia, o problema é maior ainda.

Antipas não casara-se com Herodíades simplesmente por interesse pessoal, ele tinha também um interesse político. Antipas estava com sua popularidade em baixa, pois havia construído uma nova cidade em estilo helenístico para ser sua nova capital; ele até chamou-a de Tiberíades, em homenagem ao imperador Tibério. Além disso, a cidade foi edificada sobre um antigo cemitério, o que segundo a lei judaica a tornava permanentemente impura. Com efeito, sofrendo oposição popular por ir contra os interesses coletivos do povo, Antipas decide desposar Herodíades, que era descendente da antiga e ainda reverenciada linhagem asmonéia.[4] Como já foi dito acima, o vínculo familiar possuía grande relevância em termos de aceitação coletiva, e tudo isso nos leva a crer que o casamento de Antipas com Herodíades tinha o propósito de torná-lo um governante mais legitimamente judaico, mais aceito, culturalmente e coletivamente falando.[5]

A crítica de João Batista pode, portanto, ser vista pelos dois ângulos, mas o problema coletivo sem dúvida é mais relevante do que o individual. O Batista pode até ter criticado Antipas por somar mais um pecado pessoal à sua já extensa coleção, entretanto, era-lhe mais importante as ofensas à tradição judaica que esse tetrarca estava praticando; essa era a ofensa que atingia João e todo o povo. Tanto a atividade profética de João quanto sua prisão se explicam melhor a partir desse embate político do que numa mera discussão doutrinária. A voz de João estava destruindo os planos políticos de Antipas, ameaçando a estabilidade do seu governo, denegrindo sua já abalada imagem pública... Por isso Antipas, o tetrarca, se incomodou com o pregador e teve de calá-lo.

Outra vez vemos que os objetivos coletivos predominam sobre os individuais. Antipas, a exemplo de tantos outros líderes políticos, fazia casamentos por interesses políticas, e não por buscar a felicidade pessoal. Curioso é que não existe nenhuma menção à opinião do irmão de Antipas, Herodes Filipe, que perdera a esposa nessa transação, o que também pode nos servir para confirmar que tudo não passava de um acordo feito a partir dos interesses da família, e não de um caso de amor irresponsável como geralmente julgamos. Da mesma forma interpretamos a ação do profeta João Batista, que estava mais preocupado com a forma culturalmente inaceitável com que Antipas conduzia a nação do que com a salvação da alma do tetrarca.

Conclusão

É verdade que vimos apenas dois exemplos bíblicos com um pouco mais de detalhes, o que é uma amostragem irrisória diante da extensão da Bíblia. Mesmo assim, já ultrapassamos o número de páginas que esperávamos e penso que o nosso objetivo com esse texto já foi alcançado. Tivemos uma introdução à leitura que distingue os conceitos próprios da cultura coletivista enraizados a cada página da Bíblia dos nossos conceitos individualistas. O leitor certamente poderá, se assim desejar, continuar a ler a Bíblia por conta própria a partir desses novos conceitos, e poderá testar o que temos dito por si mesmo. Veja, por exemplo, o valor que tem a coragem de Davi ao enfrentar Golias em favor do seu povo; veja como é admirável a misericórdia de José que perdoa os irmãos que tiveram a coragem de trair seu próprio sangue; veja como é nobre a atitude de Jesus, que compartilha o pouco pão que tinha com a multidão, por considerá-los seus próximos...

Enfim, demos mais um passo em direção à leitura consciente da literatura bíblica, o que é nosso alvo individual e também coletivo.



[1] Veja outros textos do mesmo autor em “www.compartilhandonoblog.blogspot.com”.

[2] MALINA, B. J. O Evangelho Social de Jesus: O Reino de Deus em Perspectiva Mediterrânea. São Paulo: Paulus, 2004, pp. 322-330.

[3] CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo: O que Aconteceu nos Anos que se Seguiram à Execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 362.

[4] Os asmoneus foram líderes político-religiosos da Palestina anterior a Jesus. Eles descendiam dos antigos libertadores populares conhecidos como Macabeus, que tomaram a liderança da nação da mão dos dominadores selêucidas em 162 a.C.

[5] CROSSAN, J. D. Texto e Contexto na Metodologia dos Estudos Sobre o Jesus Histórico. In. Jesus de Nazaré: Uma Outra História. Vários Autores. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006, pp. 165-192.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

OUTRA VEZ ESSA DE PROSPERIDADE

“Entenda quão inúteis são seus sacrifícios

De Deus você só desejou seus benefícios

Despoje-se do egoísmo todo seu

Misericórdia é o que eu quero fariseu”

Refrão da canção “Fariseu”, de Anderson de O. Lima

No último fim de semana fiz algo que já não fazia havia muito tempo; fiz tocar enquanto limpava a casa com minha esposa um CD de música evangélica. Geralmente ouvimos outro tipo de música brasileira, e não me agrada ouvir “louvores” fora de seu próprio “lugar vivencial”, que é o culto. Para mim (e isso é uma opinião muito pessoal), ouvir pessoas adorando fora do culto é como cantar “parabéns pra você” fora de uma festa de aniversário, trata-se de um texto sem contexto. Mas, sei lá o que me deu, decidi ressuscitar um CD da chamada “gospel music” que mal tinha ouvido.

O que me levou a escrever esse texto hoje é que a decisão de ouvir esse CD antes esquecido trouxe-me tristeza, e até mesmo certa irritação. Lamentei por não tê-lo deixado apodrecer no fundo daquela gaveta, lugar que ele nem mesmo merecia. Vou explicar meu descontentamento a seguir, mas deixe-me adiantar que essa explicação não se aplicará somente às músicas que ouvi, mas à linguagem evangélica contemporânea que de maneira geral, está bem representada por aquelas pobres canções.

Bem, o caso é que praticamente todas as canções do CD se referiam de alguma forma à suposta promessa de que Deus prosperaria os evangélicos. São incontáveis as ocorrências de verbos como prosperar, abençoar, transbordar, fluir, abundar, fartar... sempre empregados como parte de uma promessa divina. Enquanto ouvia as inumeráveis repetições dos refrões maçantes cujo objetivo são nos levar a crer nessas “promessas”, estive meditando sobre como hoje é obvio para mim que tudo isso parte de uma leitura equivocada da Bíblia. Primeiro, o leitor crente parece que nunca teve um romance em mãos, e por isso não sabe interpretar elementos textuais fundamentais. Vamos ver um exemplo? Vou citar abaixo um texto bíblico e mostrar como ele pode ser lido erroneamente, depois voltamos ao CD:

“Não se aparte da tua boca o livro desta Lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer conforme tudo quanto nele está escrito; porque, então, farás prosperar o teu caminho e, então, prudentemente te conduzirás. Não to mandei eu? Esforça-te e tem bom ânimo; não pasmes, nem te espantes, porque o SENHOR, teu Deus, é contigo, por onde quer que andares” (Josué 1.8-9)

Bem, por uma questão didática vou enumerar alguns dos problemas que podem surgir da leitura dessa passagem, mas não me dedicarei muito a esta tarefa, para que este não se torne um texto técnico.

1) O primeiro erro está na identificação do narrador. O leitor crente de imediato dirá que é Deus quem fala, e que estamos, portanto, diante de uma palavra de Deus. Realmente é Deus quem fala, no entanto, Deus é neste caso um personagem, cujas palavras foram criadas pelo verdadeiro autor do texto, que não se identifica em parte alguma. Ou seja, há um homem escrevendo as palavras de Deus, e não o próprio Deus falando diretamente através de um médium que psicografa suas palavras. Se estivéssemos lendo Dom Casmurro, não haveria problema algum, pois todos concordariam que o narrador é Bentinho, o personagem que está narrando sua infância; mas quando se trata da Bíblia, a visão fundamentalista de “inspiração” serve como base à má interpretação. Tanto a interpretação errônea, como o conceito fundamentalista de inspiração, são resultantes do desejo ardente por ouvir um oráculo aprazível; por isso ordens sobre circuncisões não são tão inspiradas quanto estas.

2) O segundo problema é semelhante ao primeiro, o leitor crente não sabe identificar a quem o personagem “Deus” se dirige no texto, e lê tudo o que está em segunda pessoa como se fosse escrito para ele próprio. Assim, logo vê-se que o crente pode acreditar que deve meditar na lei do Senhor e obedecê-la, condição para que seja abençoado em seus próprios caminhos. Ora, as promessas do texto são bem mais restritas; dirigem-se a Josué, que estava na narrativa a ponto de invadir terras alheias e conquistá-las para fazer delas território israelita. Não há nada no texto em si que nos faça crer que tais promessas se apliquem também a qualquer leitor do texto.

3) Outro problema já mencionado superficialmente é o contextual. Neste exemplo é comum que o leitor crente imagine que deve se devotar ao estudo dos textos bíblicos, e toma isso como mandamento. No entanto, tal prática não existia nas culturas antigas a não ser entre uma minoria de religiosos letrados, que não existiam entre esses supostos nômades e dos quais Josué não faria parte se existissem. Quando esse texto foi escrito, os textos sagrados eram lidos coletivamente em assembléias, e o povo essencialmente analfabeto, memorizava algumas passagens e meditava nelas. Não existiam livros como hoje temos, e os poucos rolos de papiro que privilegiados escribas tinham custavam caro. Além do mais, ainda que o texto incentivasse a leitura e o estudo dos textos sagrados, só a Torá está sendo mencionada, e não seria necessário ler os profetas, os escritos e muito menos o Novo Testamento. A complexidade desse item já é evidência suficiente de que o leitor crente, por melhor que sejam suas intenções, raramente pratica a religiosidade proposta na Bíblia.

Se julgo que a interpretação que os leitores evangélicos fazem dos textos bíblicos está assim equivocada, naturalmente suponho que todas aquelas canções que lembram promessas de prosperidade não passam de falsa religiosidade. De nada adianta cantar a toda voz que você crê numa promessa que Deus nunca fez. No entanto, pode-se ignorar os argumentos que acima apresentei e dizer que independente disso essa fé funciona. Será?

Duvido que a prática confirme esta crença. Sei que há semanalmente nas igrejas e até no rádio e na TV muitas pessoas testemunhando a respeito das bênçãos alcançadas. Ouvimos muitas pessoas falando sobre seu sucesso profissional e financeiro, mas isso não me convence por um motivo simples: se Deus realmente abençoa quem crê, quem é fiel à Bíblia ou coisa assim, deveríamos ver alguma mudança na classe social dos membros das igrejas evangélicas, coisa que não é possível constatar. Quero dizer que se realmente os crentes fossem alvos de promessas especiais de bênçãos, as igrejas testemunhariam mudanças significativas, e uma porcentagem razoável dos membros pobres chegariam à classe média, por exemplo.

Infelizmente as igrejas da periferia continuam pobres como antes. O número de crentes desempregados é o mesmo, e o número de famílias que carecem de assistência é o mesmo, com pequenas variações de ano para ano. Enquanto no microfone alguns bem-aventurados contam sobre seus sucessos, nos bancos há outros que faliram, que perderam o emprego, que foram roubados... Quer dizer que independente de como se lê o texto bíblico esse evangelho da prosperidade não funciona. Como haveria de funcionar, se ele é uma invenção de leitores incompetentes da Bíblia? Ou para ser mais brando, ele é uma invenção de almas carentes que encontraram na fé em um Deus doador de bens materiais que não existe uma maneira de alimentar sua esperança e continuar vivendo.

Antes de terminar, devo confessar que nem sempre pude avaliar a leitura que alguém faz de um texto bíblico como fiz aqui. Mas afirmo com segurança que tenho crescido nessa ciência que é a interpretação bíblica, e é por já ter evoluído um pouco que anseio também pela evolução de meu leitor, razão pela qual lhes escrevi um texto tão ofensivo para muitos. Eu disse que tudo começou com tristeza e irritação, não poderia esse texto ser diferente.

Espero que o texto tenha lhe acrescentado alguma coisa, pois o CD que ouvi e o exemplo que dei não são exceções, mas são uma pequena amostra da religiosidade evangélica brasileira que sofre e que no futuro sofrerá ainda mais com a deplorável atitude de seus líderes, esses sim, pessoas cada vez mais prósperas.