INTRODUÇÃO
Nos últimos dois anos tenho dedicado a maior parte dos meus estudos à compreensão da linguagem econômica do cristianismo primitivo; para ser mais específico, tenho me concentrado no evangelho de Mateus e em seu linguajar econômico.[1] Isso basta para justificar esse novo estudo, onde veremos a famosa passagem do “Jovem Rico”, que é um dos textos econômicos mais conhecidos do Novo Testamento, e que ainda não havíamos abordado. Assim, nas próximas páginas nos dedicaremos à sua análise procurando compreender como esse texto deve ser entendido dentro do âmbito econômico do primeiro evangelho, o que explica também porque nem todos os aspectos do texto serão considerados em nossa exegese. Ao final, arrisco algumas considerações hermenêuticas para que os cristãos de hoje também se beneficiem com o texto.
Começo, como sempre, expondo o texto através de uma tradução própria. Em geral, não há problemas de tradução nesta passagem, mas o leitor talvez note algumas poucas mudanças que fiz em relação às versões mais conhecidas, as quais serão explicadas ao longo do nosso estudo. Vamos então ler Mateus 19.16-22 e dar início ao trabalho:
16 E eis que alguém aproximando-se dele disse: "Mestre, o que faria eu para que tenha vida eterna?" 17 Então ele lhe disse: "Por que me perguntas acerca do bom? Somente um é bom. Mas se queres para a vida entrar, observa os mandamentos". 18 Ele disse: "Quais?". Então Jesus disse: "Não matarás; não adulterarás; não roubarás; não darás falso testemunho; 19 respeita o pai e a mãe; e ama teu próximo como a ti mesmo". 20 Disse-lhe o jovem: "Observo todos estes; o que me falta?" 21 Falou-lhe Jesus: "Se queres ser completo, vai, vende das tuas coisas o que há e dá aos pobres, e tu terás um tesouro no céu, e aqui segue-me". 22 Mas, ouvindo o jovem a palavra partiu entristecido; pois estava possuindo muitas propriedades.
UM TEXTO IMPESSOAL
Temos aqui um diálogo entre Jesus um jovem que nem mesmo é identificado no início do texto. Na verdade, a falta de identificação do personagem não é um problema, mas uma virtude do texto; assim, esse jovem rico sem nome e sem rosto pode ser mais facilmente visto como um exemplo aplicável a uma categoria de pessoas, e não a alguém em especial. O objetivo do texto não é contar a história de um diálogo de Jesus com alguém, mas pregar para todo ouvinte ou leitor sobre os problemas decorrentes da riqueza. O jovem é, na verdade, um exemplo aplicável a qualquer pessoa rica que está presa aos seus bens e por isso não segue Jesus.
DUAS QUESTÕES EM UMA AULA
Penso que um dos pontos mais importantes que devemos notar é que a busca por Jesus era uma busca por instrução; o jovem chama Jesus de mestre e o diálogo que se segue ficaria bem contextualizado dentro de uma sala de aula. Então, podemos enumerar as perguntas e respostas centrais com bastante clareza, destacando assim aquilo que me parece ser a “espinha dorsal” da perícope:
1) O jovem pergunta: “o que faria eu para herdar a vida eterna?” (v. 16)
2) Jesus responde: “observa os mandamentos” (v. 17b)
3) O jovem aprofunda sua pergunta dizendo: “observo todos estes; o que me falta?” (v. 20)
4) Jesus responde: “segue-me” (v. 21)
O diálogo pode, portanto, ser dividido em duas partes: a primeira fala da Lei, e a segunda aprofunda o tema acrescentando algo que os praticantes da Lei, os judeus em geral, desconheciam. Essa segunda resposta de Jesus é o cerne da passagem, como veremos a seguir.
PRIMEIRA PERGUNTA: A LEI
Primeiro, sobre a primeira parte do diálogo (ou aula), podemos notar que Jesus faz uma explanação positiva sobre os mandamentos. A Lei para Jesus (e obviamente para o autor de Mateus), não era negativa ou coisa para se descartar em virtude de uma nova religiosidade. Trata-se de um diálogo entre judeus, e não entre um cristão sem lei e um judeu limitado à antiga Lei, como poderíamos julgar. Para ambos a Lei da Torá é válida, e deve ser obedecida.
Agora, um parêntese sobre os mandamentos: Se atentarmos para os mandamentos que Jesus menciona em comparação com os mandamentos do Antigo Testamento, como os de Deuteronômio 5, por exemplo, notaremos que faltam alguns deles na passagem de Mateus. Os evangelhos excluem nesta passagem do jovem rico, o mandamento de amar a Deus acima de todas as coisas, de não ter outros deuses além de Javé e não tomar seu nome em vão; tais instruções sobre o relacionamento com a divindade estão, porém, expressos noutras formas ao longo dos evangelhos. Nosso texto também omite a ordem para se guardar o sábado, mandamento que é por Mateus interpretado de forma diferente, como uma ocasião propícia para se fazer o bem.[2] Por fim, falta também a instrução sobre não cobiçar mulher e bens alheios (Dt 5.21). Este último, todavia, parece estar presente na versão de Marcos, que diz resumidamente: “... não defraudarás...” (Mc 10.19). A expressão grega aposteréo pode ser traduzida por “defraudar”, “despojar” ou “privar”, o que me leva a crer que Marcos resumira assim a ordem para não cobiçar o que é dos outros. Curioso é que tanto Mateus quanto Lucas excluíram esta parte da Lei de suas versões.[3]
Bem, até onde vimos o jovem era um judeu “praticante”, que observava os mandamentos que segundo as palavras de Jesus, eram os decisivos para que alguém ter a vida eterna. A primeira impressão que temos é a de que a lista de mandamentos dos versículos 18 e 19 poderiam ser excluídos sem qualquer prejuízo. Todavia, a escolha de uns mandamentos e a omissão de outros não é descuido do autor; a pergunta aparentemente inocente feita pelo jovem serve exatamente para introduzir a lista de mandamentos que lemos, que foram escolhidos cuidadosamente. Então, qual é a mensagem que o texto está querendo nos transmitir nesta lista?
Julgo que a partir da lista fornecida é possível dizer que para o evangelho de Mateus os mandamentos a serem observados são aqueles cujo resultado proporciona o bom relacionamento comunitário. São todos eles meios de evitar a discórdia dentro de determinada aldeia ou família. Por outro lado, estão excluídos da lista exatamente os mandamentos de caráter religiosos, onde a preocupação é agradar a Deus e não ao próximo. Daí, concluiria de maneira provisória que é prioridade nos evangelhos manter e até restabelecer o bom convívio entre as pessoas, mas que os mesmos evangelhos são mais reformadores quando o assunto é a religião. Ainda que se ame a Deus, que se abstenha dos ídolos, e que se guarde o sábado, a maneira de praticar tais mandamentos é um problema em aberto, que gera discórdia e divisão entre as diferentes seitas do judaísmo.
Temos, enfim, nos versículos 18 e 19 a lista dos mandamentos de fácil interpretação e aplicação, que deveriam depois de Jesus ser seguidos como sempre foram. E os mandamentos omitidos, estão entre aqueles que precisam ser discutidos com mais atenção outro momento do evangelho.
SEGUNDA PERGUNTA: A COMPLETUDE
Seguindo para a segunda parte do diálogo, vemos que o jovem era um bom vizinho e um bom filho, pois guardava os mandamentos do bom convívio comunitário. Mas ele queria mais, queria ser “completo”. Preferi traduzir o texto assim, usando o adjetivo “completo” no lugar de “perfeito” por dois motivos: o jovem depois pergunta a Jesus o que lhe “falta”, o que indica que ele é bom, mas que é incompleto, e não que é uma pessoa imperfeita, que tem algum defeito. A diferença é sutil, mas assim creio que a abordagem positiva que o texto faz da Lei é mantida. Se o jovem, ainda que praticante de todos os mandamentos, fosse imperfeito, chegaríamos à conclusão falsa (tipicamente cristã) de que a prática dos mandamentos não era essencial para os judeu-cristãos do grupo mateano.
Aqui entra o problema econômico deste texto. Jesus, ao menos neste exemplo, não condena diretamente o judaísmo de seus contemporâneos em nenhum aspecto; entretanto, ele ensina um modo de vida ainda melhor, que envolve uma nova forma de lidar com os bens materiais e com as necessidades cotidianas. O jovem judeu rico, ao praticar a Lei, já tinha a vida eterna; mas ele não poderia ser completo a menos que vivesse como Jesus. E como é essa vida que leva à completude?
Lembremos que o programa apresentado às comunidades camponesas da Galiléia pelo movimento de Jesus era uma proposta de resistir pacificamente às privações que a classe camponesa sofria sob a dominação romana. Jesus chamava os simpatizantes do Reino de Deus a abdicarem de toda suposta segurança material e a praticarem o amor sem medidas. Naqueles dias, podemos dizer que o grupo de simpatizantes de Jesus se dividia em dois sub-grupos: 1) os “pobres”, que eram pessoas que já estavam despossuídas, que perderam terra e trabalho diante da exploração imperial e viraram proclamadores itinerantes do Reino de Deus;[4] 2) e os “chefes de família”, que ainda tinham terra ou ao menos uma ocupação fixa da qual sobreviviam.[5] Jesus andava sem posses com os “pobres” do primeiro sub-grupo, e procurava ensinar os que ainda tinham alguma coisa do segundo sub-grupo de que eles também poderiam acabar sem nada se não mudassem de atitude. Vender o que tem servia para ajudar os camponeses famintos do primeiro sub-grupo, e seguir Jesus integrando-se a esses pobres era uma maneira de aceitar que Deus escolhera implantar seu Reino entre os mais fracos, e que o caminho de Deus não estava na busca pela prosperidade junto aos ricos.
Assim, os leitores do evangelho de Mateus eram, através do diálogo entre Jesus e o jovem rico, convidados a abdicar de suas atividades sedentárias para participar do movimento dos itinerantes, a deixar seus bens em favor dos mais necessitados e a viver como Jesus, pregando e confiando em Deus para a provisão necessária a cada dia (como em Mt 6.25-34 e 14.13-21). Esse era o modo de vida ideal segundo os primeiros cristãos, embora não fosse essa a opinião de todos.[6] Contudo, temos de reconhecer que o movimento itinerante dos primeiros cristãos sempre dependeu do apoio material dos simpatizantes sedentários, ou seja, sempre houve pessoas que não partiram pelo mundo como pregadores, mas que patrocinaram os mesmos.[7] Embora o itinerantismo fosse o modo de vida considerado ideal, ambos eram necessários e no fim foram as comunidades fixas que se transformaram na igreja cristã.
Mas no final do texto o jovem não segue Jesus, está preso à suas propriedades. Ele faz parte dos simpatizantes sedentários, que gostam do ensino do mestre Jesus porém não aderem ao itinerantismo. Mais que isso, diz o texto que o jovem possuía “muitas propriedades”, o que o faz ser chamado de rico pela tradição cristã. Este fazendeira tinha mais do precisava, e suas terras eram provavelmente trabalhadas por escravos ou assalariados, o que faz desse jovem temente a Deus um mantenedor da desigualdade social que levou ao surgimento do movimento sem terra de Jesus.
Se ele tivesse a coragem de abrir mão de seu status para o bem do seu próximo, e se seguisse o modo de vida proposto por Jesus, seria melhor do que já era. Agora um palpite: talvez, simplesmente por negar ajuda ao próximo enquanto acumulava terras, o jovem descumprisse o mandamento de “não defraudar” que estava em Marcos 10.19 e que foi eliminado por Mateus e Lucas. O que é certo é que o cristianismo primitivo, como movimento social e religioso que tinha no itinerantismo seus primeiros líderes, via na posse de qualquer tipo de riqueza um empecilho para o seu maior desenvolvimento. Daí Jesus contava parábolas como: “O reino dos céus é semelhante ao tesouro escondido no campo, o qual um homem encontrando escondeu, e por sua alegria vai e vende tudo o quanto tem e compra aquele campo” (Mt 13.44).
Os pobres eram, desde o século I, mais sensíveis ao chamado radical de Jesus e seus primeiros seguidores. Aí também se encaixa o dito que desde cedo foi utilizado como uma espécie de conclusão ao diálogo do jovem rico com Jesus: “Então Jesus disse aos seus discípulos: ‘Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará para o reino dos céus’” (Mt 19.23).
OS TESOUROS CELESTIAIS: INCENTIVO AOS NOVOS SEGUIDORES
Para terminar, veja a promessa condicional que é feita ao jovem no versículo 21: “...vai, vende das tuas coisas o que há e dá aos pobres, e tu terás um tesouro no céu...”. Há um “compensador” para o prejuízo financeiro caso o jovem ou qualquer leitor de posses aceitasse o desafio; o “compensador” é a promessa de recompensas celestiais. Como em Mt 6.19-21, o texto que fala dos tesouros terrenos e celestiais, aqui não se sabe o que são exatamente esses tesouros celestiais; sabe-se que toda vez que alguém abre mão de um “tesouro” terreno de boa vontade para fazer o bem ao próximo isso resulta em uma recompensa para a eternidade. Eu diria então que para ser completo, só era preciso guardar os mandamentos de boa vizinhança como os judeus já faziam, e seguir Jesus; a maneira de lidar com os bens materiais aqui indicada é um adendo. Caso algum simpatizante do Reino tivesse posses e seus cuidados lhe impedissem a vida de pregador andarilho, havia uma promessa para incentivá-lo a deixar tudo isso fazendo caridade. Seguir Jesus como pregador itinerante é o que realmente se objetiva no texto, em minha opinião.
CONCLUSÃO
Enfim, a cada texto dos evangelhos que examinamos nos aproximamos um pouco mais do projeto de vida proposto pelos primeiros cristãos. Além disso, quanto mais compreendemos esse projeto, parece que mais distantes nos encontramos dele. E isso não é por acaso. Então nos perguntamos: que conclusões práticas toda essa análise pode nos dar?
O aqui aprendemos é que se alguém quer ser um bom cristão, deve ser como o jovem rico, o que em outras palavras quer dizer que não devemos fazer ao próprio aquilo que não desejamos que nos façam (Mt 7.12). Mas a verdade é que somente aqueles que não se conformam com a desigualdade social e usam tudo o que possuem para amenizar o sofrimento do seu semelhante pode ser um cristão “completo”. A riqueza continua sendo um empecilho para tal condição de completude, mas sabemos que ainda há pessoas abdicadas que merecem tesouros celestiais; são eles os verdadeiros descendentes dos pregadores itinerantes. Quanto a nós, que sejamos ao menos bons vizinhos, e procuremos a cada dia melhorar tirando de nossos corações os tesouros terrenos que nos prendem, isto é, se realmente acreditamos na vida eterna e na Bíblia.
BIBLIOGRAFIA
CROSSAN, John Dominic. O Nascimento do Cristianismo: O que Aconteceu nos Anos que se Seguiram à Execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004.
FARIA, Lair A. dos Santos. Evangelho Q: um “Turning Point” na História do Cristianismo Primitivo. In. Revista Gaia, 4ª edição, 2007, pp. 58-72. Disponível em:
FERREIRA, João Cesário Leonel. E Ele Será Chamado Pelo Nome de Emanuel: o Narrador e Jesus Cristo no Evangelho de Mateus. Campinas: Universidade Estadual de Campinas (Tese de Doutorado), 2006.
GARCIA, Paulo Roberto. O Sábado do Senhor teu Deus – O Evangelho de Mateus no Espectro dos Movimentos Judaicos do Século I. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo (Tese de Doutorado), 2001.
HORSLEY, Richard A. SILBERMAN, Neil Asher. A Mensagem e o Reino: Como Jesus e Paulo Deram Início a uma Revolução e Transformaram o Mundo Antigo. São Paulo: Loyola, 2000.
MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos Sinóticos: Formação, Redação, Teologia.
THEISSEN, Gerd. O Movimento de Jesus: História Social de uma Revolução de Valores. São Paulo: Loyola, 2008.
__________. Sociología del Movimiento de Jesús: el Nacimiento del Cristianismo Primitivo. Santander: Sal Terrae, 1979.
[1] Como mestrando em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, tenho trabalhado desde 2008 em minha dissertação intitulada Acumulai Tesouros no Céu: Estudo da Linguagem Econômica do Evangelho de Mateus, a qual será finalizada ainda neste semestre. Além disso, tenho produzido vários artigos sobre o mesmo tema.
[2] Como defende Paulo R. Garcia em sua tese de doutorado onde diz:
“O evangelho, a partir do princípio de que (como costumam fazer os adversários) se deve fazer o bem a um animal que sofre em um sábado (em especial quando este animal é o único do proprietário), elabora um novo princípio geral: fazer o bem a um ser humano é sempre mais importante do que qualquer coisa [...] A verdadeira prática da misericórdia é fazer o bem a todos os que estão em situação de sofrimento. A prática de guardar o sábado, a verdadeira imitação de Deus para a comunidade mateana, é definida como fazer o bem”
Cf. GARCIA, P. R. O Sábado do Senhor teu Deus, p. 209.
[4] Cf. HORSLEY, R. A.; SILBERMAN, N. A. A Mensagem e o Reino. p. 71.
[5] CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. pp. 365-370
[6] THEISSEN, G. Sociologia del Movimiento de Jesus. p. 15.
[7] Cf. THEISSEN, G. O Movimento de Jesus. pp. 113-116.