Tenho
trabalhado com o Salmo 2 há um tempo, servindo-me dele nas minhas aulas de
exegese. Geralmente me lembro de empregá-lo quando surge a necessidade de
tratar de algumas questões técnicas relativas à literatura bíblica,
principalmente no que diz respeito às características de sua enunciação. Mas o
que me motivou a escrever sobre esse texto é seu conteúdo, que é
surpreendentemente estranho à Bíblia de um modo geral (ou pelo menos à leitura
que dela costumamos fazer).
Os
textos bíblicos, como quaisquer textos, são usados por seus leitores para
diferentes finalidades. Não é difícil encontrar leitores empregando a Bíblia
para legitimar suas próprias ideias. Mas apesar dessa autonomia interpretativa
exercida pelo leitor, a maioria deles encontram nas páginas da Bíblia conteúdos
que incentivam o amor ao próximo, a caridade, a religiosidade... O Salmo 2 me
surpreendeu justamente porque não lida com esses conteúdos mais habituais;
antes, é um texto ideologicamente maligno. Noutras palavras, é um texto
ditatorial, que justifica a violência e a opressão, e eu nunca tinha notado
isso.
No
estudo que farei empregarei a versão de João Ferreira de Almeida Revista e
Corrigida (ARA), e isso simplesmente porque estou mais acostumado a ler o Salmo
nessa versão. Farei ainda alguns comentários sobre as questões técnicas,
conjeturas sobre o contexto social e histórico, mas com brevidade, para que a
análise não se desvie de seus objetivos iniciais.
Façamos
a leitura dos primeiros versículos:
1 Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam
coisas vãs?
2 Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram
contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo:
3 “Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas
algemas”.
As
primeiras palavras nos colocam em contato com o narrador, sujeito anônimo como
geralmente acontece na Bíblia. Ele nos fala de eventos e personagens bem
específicos, que parecem nos remeter ao período monárquico em Judá, também
chamado de Reino do Sul (em oposição a Israel, Reino do Norte), antes da
invasão babilônica e do exílio. Não cheguei a empreender pesquisas
extra-textuais que me permitissem apontar com maior precisão se esse texto
condiz com algum momento histórico vivido por aquele reino, mas o que importa é
que o mundo do texto, o cenário criado, nos remete à monarquia judaíta em dias
de apogeu.
Segundo
o narrador, os gentios, que são todos os que não são de Judá, planejam
inutilmente se libertar do domínio político que este exercia sobre eles. Os
gentios supostamente clamavam por liberdade e planejavam um motim contra Judá,
o dominador. O versículo 3 deixa isso muito claro: Judá e os hebreus, que na
maior parte de sua história estiveram sujeitos a reinos e impérios,
surpreendentemente estão por cima. Daí minha estranheza frente ao contexto
sugerido pelo texto; estamos ouvindo a voz do opressor, e não do oprimido como
quase sempre acontece.
Peço
licença para falar do que o texto não diz: Normalmente, o domínio de um reino
sobre o outro era expresso de forma violenta, num controle militar rigoroso, na
expropriação de terras, na escravização das pessoas, na cobrança de taxas...
Imagino, portanto, que era desse tipo o domínio que Judá poderia estar
exercendo sobre algumas nações vizinhas, domínio sempre ditatorial que o texto
figurativiza através de expressões como laços e algemas.
Vale
destacar que o plano de liberdade dos gentios, dos reis da terra, é considerado
inútil por esse narrador porque ele acredita que o domínio de Judá é um estado
que o próprio Deus estabeleceu. Por isso, no versículo 2 ele diz que se
levantar contra Judá é lutar contra Deus. Também diz que o rei de Judá é o
“Ungido”, isto é, aquele que Deus elegeu e capacitou para exercer uma missão
especial.
A
prova de que sua confiança na manutenção do domínio judaíta está em Deus
aparece nos próximos versículos:
4 Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles.
5 Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor
os confundirá.
6 “Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte
Sião”.
Os
versículos 4 e 5 falam de Deus. Como é comum nos textos bíblicos, um narrador
onisciente e anônimo fala como quem conhece Deus, como quem entende seus
planos, ouve sua voz. A suposta rebelião dos gentios seria dissipada pela ira
de Deus, que é tão superior, são poderoso, que ri dos rebeldes e de seus
projetos libertários.
Sugiro
que o meu leitor atente para o versículo 6, e para o fato de que eu o coloquei
entre aspas. Fiz isso porque entendo que nesse ponto o narrador cita o próprio
Deus. Entenda: o narrador continua falando, mas usa a voz de Deus, seu
personagem, como um recurso literário, com propósitos estilísticos e retóricos.
O problema é que isso não está indicado no texto por nenhum sinal gráfico nem
por palavras; cabe ao leitor atento descobrir de quem é as palavras. Essa é uma
das questões técnicas às quais me referi no começo: os salmos não costumam
marcar para o leitor as transições da voz narrativa; não costumam anunciar quem
está se expressando com a clareza que vemos, por exemplo, nos evangelhos.
Seja
como for, o conteúdo que as supostas palavras divinas querem transmitir é
simples: Foi Deus quem instituiu o rei de Judá, que habita provavelmente num
palácio localizado no Monte Sião, que é Jerusalém. Isso, como vimos, já fora
dito pelo narrador, mas agora é Deus quem fala, e isso torna qualquer asserção
mais confiável para o leitor.
Seguindo
como a leitura, eu acredito que há uma nova transição não anunciada pelo
narrador. Eu diria que a partir do versículo 7 quem fala não é nem o narrador,
nem Deus, mas o próprio rei, também chamado de Ungido. Todavia, o tal Ungido
também faz como o narrador e cita supostas palavras de Deus:
7“Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse:
8 ‘Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei.
Pede-me, e eu te darei as nações por herança
e as extremidades da terra por tua possessão.
9 Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um
vaso de oleiro’”.
O
objetivo dessas linhas é anunciar um decreto divino, que elegeu este tal rei
para exercer o cargo de governante de Judá e, por meio desse cargo, das nações
das redondezas. O decreto deixa claro que ele tem o direito de dominar toda a
terra, isto é, de fundar um verdadeiro império.
O
rei ganha um novo epíteto, o de Filho de Deus, e isso tem conduzido muitos
leitores a ignorar os problemas desse texto em nome de uma leitura cristológica.
Sua proximidade para com Deus é, portanto, fator determinante para que se
aceite seu domínio como um domínio divinamente fundamentado.
Para
os leitores mais devotos, ofereço dois argumentos para defender a posição de
que esse rei não é Jesus: Primeiro, sabemos que esse império israelita ou
judaíta nunca existiu. Embora não saibamos com exatidão de que período
histórico esse texto está falando (se é que fala de algum), é fato que Judá não
exerceu um domínio tão extenso e duradouro quanto o que autor acredita que exerceria.
Segundo, o versículo 9 nos mostra que o projeto imperialista desse Ungido é
violento, ditatorial, maligno... Ele quer que Judá despedace seus dominados, e
não sei como isso pode ser lido como um projeto divino.
Enfim,
discordo do projeto ideológico do salmo; discordo de sua teologia, de sua
política, e conhecendo um pouco da história fico feliz por saber que esse judeu
não realizou seus objetivos. Mas passemos às últimas estrofes dessa poesia
ditatorial que por algum motivo desconhecido ganhou um lugar privilegiado no
cânon bíblico:
10 Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir,
juízes da terra.
11 Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor.
12 Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no
caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira.
Bem-aventurados todos os que nele se refugiam.
O
narrador retoma o controle e cala seus personagens. Depois de várias linhas
empenhado em nos fazer acreditar que esse reino é divinamente fundamentado, e
que seu governante é uma espécie de líder messiânico, ele passa ao que
realmente queria. O narrador coloca os imperativos, dá ao leitor as ordens que
queria transmitir desde o começo.
Ele
pede aos narratários, os reis da terra, que sejam prudentes, que se deixem
advertir pelo salmo, que sirvam ao Senhor com alegria e respeito, e que se
submetam ao domínio exercido pelo rei que habita em Jerusalém. Na verdade, o
salmo nada mais é que uma tentativa de suprimir a revolta dos gentios,
anunciada nos primeiros versos. Para convencer seus narratários, para levá-los
finalmente a aceitar o contrasto proposto, ele usa de vários recursos: 1) ele
usa principalmente de intimidação; ameaça-os com a ira de Deus, que segundo ele
está prestes a se irritar com os rebeldes que não aceitam servi-lo (isto é,
submeter-se ao governo de Judá); 2) ao mesmo tempo lhes oferece segurança,
refúgio àqueles que atendem a seus pedidos, que beijam o filho e passivamente
se deixam dominar; 3) e ainda provoca dizendo que seu modo de agir é
imprudente, já que seria prudente deixar-se advertir.
Lido
o texto, passo a propor algumas poucas reflexões de caráter mais pragmático.
· O
texto que lemos nos mostra que a Bíblia não é unânime, não apresenta apenas um
tipo de religiosidade, não defende apenas um projeto político ou social e,
portanto, não é um simples guia para a vida cristã como muitos acreditam. A
Bíblia deve ser lida como um registro de diferentes pontos de vista, de
diferentes momentos históricos, e que não podem ser recebidos sem a devida
reflexão. A Bíblia é apenas um ponto de partida para nossas próprias
experiências, uma inspiração, cheia de bons e maus exemplos que ao cabo sempre
podem nos instruir. Assim, uma leitura fundamentalista, que pretende “viver”,
obedecer cada imperativo contido em suas páginas, só pode resultar em confusão.
· Se
o leitor concordou comigo e chegou à conclusão de que esse texto defende um
projeto ditatorial, será obrigado a admitir que o relacionamento do cristão com
a Bíblia deve ser bem mais sério do que geralmente se pratica. Os versículo 8,
por exemplo, costuma legitimar o cristianismo e ser usado por teólogos da
prosperidade, mas do meu ponto de vista ambos estão errados, estão se
aproveitando do texto ao isolar esse versículo dos demais. O versículo 9 nos
revela que não há nada do Cristo no tal Filho Ungido que o Salmo 2 nos
apresenta, e que o verso não é uma promessa universal de prosperidade, não
autoriza qualquer um a pedir, determinar e receber dádivas de Deus. Na verdade,
o que vimos é que só o tal Ungido se achava nesse direito, e mesmo assim, a
história de Israel nos prova que esse homem, se existiu, nunca recebeu as
nações por herança. Essas são questões que geralmente surgem nas aulas de
exegese.
· Na
leitura que fiz mostrei que a realidade histórica por traz do texto pode
iluminar nossa compreensão, mas não é determinante. Procurei mostrar como a
ideologia está sendo defendida, e não sabemos se as afirmações correspondem a
qualquer realidade histórica passada. Ou seja, a Bíblia pode ser lida como
ficção, útil para quem a recebe, independente de dizer a verdade ou não. Vale
dizer que não estou dizendo que as histórias bíblicas são falsas, mas que elas
podem ser e nem Sempre seremos capazes de avaliar isso; todavia, isso não é tão
importante quanto se julga por aí. O que vale numa narrativa lida não é sua
historicidade, e sim, sua mensagem.
· Também
gostaria de dizer que esse texto, se ele realmente preserva a memória de um
opressor, pode servir para desencadear uma reflexão sobre a religiosidade
humana: Os homens usam Deus, falam em seu nome, e sempre acham que estão
fazendo a coisa certa. Todo vilão é herói desde seu ponto de vista, e julga ter
Deus a seu lado, contar com sua bênção, e espera ir para o céu um dia. Nem o
mais abusivo dos ditadores admitiria servir ao Diabo, e por isso nós temos que
ser cuidadosos quando as pessoas falam em nome Deus. Como aconteceu nesse
salmo, isso pode ser apenas um truque para manipular os outros. Os líderes
religiosos, em especial, usam das mesmas estratégias que o salmista: apóiam-se
num suposto “chamado” ou “eleição”, num título religiosamente fundamentado,
ameaçam os seguidores com o inferno, e prometem que Deus vai recompensar os que
fazem o que eles querem. Pois é, a história sempre se repete.
Enfim,
certamente há mais lições para extrair desse texto e da nossa leitura, mas
penso que as acima apontadas são suficientes. Como sempre, desejo que o leitor
concorde comigo e aprenda a ler a Bíblia de um modo que considero mais maduro;
contudo, se o leitor discorda (e ele tem todo o direito), ele pode seguir lendo
como desejar, enquanto minha esperança é a de que ele tenha sido aperfeiçoado
de algum modo pelo meu trabalho. Então, sigamos refletindo, discutindo,
compartilhando, discordando... Mas resistamos aos opressores; mesmo quando eles são bíblicos.