No ano 2000 a editora Loyola publicava uma obra que merece ser considerada
entre os estudos literários da Bíblia no Brasil. Trata-se de A Bíblia Pós-Moderna: Bíblia e Cultura Coletiva,
que havia sido publicada originalmente em 1995 nos Estados Unidos por uma dezena
de estudiosos da religião.
Para
introduzir o leitor ao conteúdo os autores começam colocando o básico truísmo que
justifica os estudos bíblicos na contemporaneidade: “a Bíblia tem exercido mais
influencia cultural no Ocidente que qualquer outro documento”, e como de costume,
gastam algum tempo apresentando as limitações e defasagens das abordagens bíblicas
tradicionais como a Exegese Histórico-Crítica,
que chamam de “crítica histórica” (2000, p. 11-12). Então os autores colocam sua
proposta:
[...] defendemos uma crítica
bíblica transformada, que reconhece que
nosso contexto cultura é marcado por estáticas, epistemologias e princípios políticos
muito diferentes dos que predominavam na Europa dos século XVIII e XIX, onde a erudição
bíblica tradicional está tão completamente enraizada. Também defendemos uma crítica
bíblica transformadora, que se incumba
de entender o impacto ininterrupto da Bíblia na cultura e, portanto, tire vantagem
dos generosos recursos do pensamento contemporâneo sobre linguagem, epistemologia,
método, retórica, poder, leitura, bem como das questões políticas prementes e muitas
vezes controversas da “diferença” – gênero, raça, classe, sexualidade e, naturalmente
religião – que passam a ocupar o centro do palco tanto em discursos públicos como
acadêmicos. (2000, p. 12)
Em
suma, os objetivos do livro excedem os limites de uma abordagem literária da Bíblia.
Os autores querem expor uma diversidade bem maior de possíveis abordagens pós-modernas
da Bíblia, passando pelos estudos da recepção e pela crítica narrativa, mas chegando
a tratar de abordagens psicanalíticas, feministas e ideológicas. Essa abertura é
considerada uma virtude pelos autores, que criticam, por exemplo, o famoso Guia Literário da Bíblia de Alter e Kermode,
que segundo eles se limita a trabalhar “certa forma de crítica literária canônica”
e exclui deliberadamente outras abordagens tão atuais e relevantes quanto aquela
(2000, p. 17).
Em
2008 João C. Leonel Ferreira escreveu um artigo onde apresentava algumas das publicações
nacionais sobre a abordagem literária da Bíblia, e falando de A Bíblia Pós-Moderna, lamentou dizendo: “Infelizmente
o texto é matizado por demasiadas questões contextuais norte-americanas” (Ferreira,
2008, p. 5). Lendo a obra, não demoramos muito a entender essa crítica. Para os
leitores acostumados às abordagens texto-centradas como a dos demais autores que
leem a Bíblia como literatura, essa obra causa estranheza por estar marcada por
uma ideologia pós-moderna norte-americana que vê as estratégias de leitura que propõe
como atividades políticas, como meios de “questionar as estruturas de poder e sentido
predominantes” (2000, p. 13). A posição dos autores é bem colocada nas linhas abaixo:
[...] ler a Bíblia de
maneira erudita tradicional significa com demasiada frequência lê-la, com ou sem
intenção, de maneiras que reificam e ratificam o status quo – ao permitir a subjugação das mulheres (na Igreja, nos maios
acadêmicos ou na sociedade em geral), justificar o colonialismo e a escravidão,
racionalizar a homofobia ou legitimar de outro modo o poder de classes hegemônicas.
(2000, p. 14)
O
que vemos é que os autores identificaram as leituras bíblicas tradicionais como
arcaicos mantenedores de certos valores que eles (e a sociedade pós-moderna) consideram
superados. O projeto, portanto, quer propor novas leituras que não tragam em seu
encalço os resquícios dos tempos em que o machismo, a escravidão, a homofobia e
o totalitarismo religiosos eram biblicamente legitimados. Noutras palavras, seus
objetivos excedem os limites da crítica literária, do prazer estético, e os leitores
brasileiros por vezes se veem diante de um embate de acadêmicos religiosos norte-americanos
que estão numa luta legítima contra um fundamentalismo religioso que não alcançou
tanto poder nessa parte da América.
Tentando
agir de forma coerente com seu projeto ideológico os autores produziram uma obra
coletiva. De fato, não há hierarquias nessa produção conjunta; os autores dos capítulos
não são nomeados e se comunicam sob a identidade coletiva identificada apenas por
um “nós”. Tudo isso é explicado na introdução da obra como uma tentativa de transformar
as práticas autorais e editoriais correntes, também maculadas pelos antigos valores,
pelo desejo de controlar a produção literária e seu sentido (2000, p. 25-28). Os
nomes dos autores as respectivas vinculações acadêmicas só aparecem nas “orelhas”
do livro, onde contatamos que todos estão envolvidos com os estudos bíblicos ou
religiosos nos Estados Unidos ou Canadá, o que, ao lado da publicação brasileira
pela Loyola, justifica a inclusão desse livro entre as obras que contam com uma
mediação religiosa desde a produção até a leitura.[1]
Em todo caso, vale a pena a leitura. Trata-se de uma obra atual, escrita em linguagem acessível e que, apesar dos apelos norte-americanos, pode colaborar com o amadurecimento do leitor brasileiro.
[1] Os autores serão aqui citados em
ordem alfabética a partir de seus sobrenomes, e de cada um, mencionaremos o departamento
em que trabalhava na época da produção do livro: AICHELE, George, do Departamento
de Filosofia do Adrian College. BURNETT, Fred W., do Departamento de Estudos Religiosos
da Anderson University. CASTELLI, Elizabeth A., do Departamento de Religião do Barnard
College. FOWLER, Robert M., do Departamento de Religião do Baldwin-Wallace College.
JOBLING, David., do St. Andrew’s College e Ex-presidente da Sociedade Canadense
de Estudos Bíblicos. MOORE, Stephen D., do Departamento de Religião da Wichita State
University. PHILLIPS, Gary A., do Departamento de Estudos Religiosos do College
of the Holy Cross. PIPPIN, Tina, do Departamento de Bíblia e Religião e no Programa
de Estudos da Mulher no Agnes Scott College. SCHWARTZ, Regina M., do Departamento
de Inglês da Northwestern University. WUELLNER, Wilhelm, da Pacific
School of Religion e da Graduate Theological Union.
Um comentário:
Professor, adorei seu blog.
Gostaria de pedir uma indicação bibliográfica sobre "amuletos textuais" na Idade Média (até século XI), para discutir seu uso entre a Germânia cristianizada. Anotei todas as referências disponibilizadas no seu blog, mas se puder me indicar com mais especificidade sobre esse assunto, seria de grande valia para mim. Mas uma vez, achei o blog interessantíssimo.
Abços
Kátia
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