sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

INSPIRAÇÃO PARA OS “LIVRES”



O historiador Carlo Ginzburg escreveu na década de setenta um livro que se tornou um clássico, intitulado “O Queijo e os Vermes”. Com base em documentos da inquisição, Ginzburg reconstruiu, na medida do possível, a vida e o pensamento de um moleiro do século XVI chamado Menocchio, que foi condenado pela Igreja Católica por suas idéias heréticas.

Há algumas linhas que registram as palavras do tal moleiro herético que se tornaram, para mim, um dos momentos mais marcantes do livro, e é com base nelas que quero propor a reflexão de hoje. Diante do tribunal da inquisição, Menocchio disse certa vez:

Um grande senhor declarou seu herdeiro aquele que tivesse um certo anel precioso; aproximando-se da morte, mandou fazer outros dois anéis parecidos com o primeiro e, como tinha três filhos, deu a cada um deles um anel. Cada um deles julgava ser o herdeiro e ter o verdadeiro anel, mas, dada a semelhança, não se podia saber ao certo. Do mesmo modo, Deus possui vários filhos que ama, isto é, os cristãos, os turcos e os judeus, e a todos deu a vontade de viver dentro da própria lei e não se sabe qual seja a melhor. Mas eu disse que, tendo nascido cristão, quero continuar cristão, e se tivesse nascido turco, ia querer viver como turco [...] eu penso que cada um acha que a sua fé seja a melhor, mas não se sabe qual é a melhor; mas, porque meu avô, meu pai e os meus são cristãos, eu quero continuar cristão e acreditar que essa seja a melhor fé. (2006, p. 92)

É surpreendente o que ele teve a coragem de dizer cara a cara com os inquisidores que podiam prendê-lo pelo resto da vida ou até matá-lo. A Igreja Católica era, na época, a instituição religiosa que tinha poderes para definir qual a maneira correta de se viver o cristianismo, mas, no interior da Itália e nos dias em que a reforma protestante ganhava terreno, um homem simples ousou pensar livremente e questionar a fé pré-moldada que lhe impunham desde o nascimento. Menocchio, ecumênicos como poucos na época, fazia ruir para si mesmo os alicerces da fé ortodoxa, declarando que todas as religiões eram apenas instituições de homens que buscam a verdade.

Ao derrubar assim a autoridade e inerrância da igreja, Menocchio encontrou espaço para questionar dogmas centrais da fé católica, como por exemplo, o uso do latim pelo clero: “Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que se está dizendo e são enganados” (Ginzburg, 2006, p. 41). Ele questionou o direito exclusivo da igreja de celebrar os casamentos: “[...] antes, homens e mulheres faziam troca de promessas e isso era suficiente; depois apareceram essas invenções dos homens” (2006, p. 42). E também condenou a ordenação e a hierarquia eclesiástica, dizendo: “Acho que o Espírito Santo está em todo mundo, [...] e acho que qualquer um que tenha estudado pode ser sacerdote, sem ter que ser sagrado, porque tudo isso é mercadoria” (2006, p. 42).

A história de Menocchio é, segundo a reconstrução de Ginzburg, fascinante. Mas fazendo agora um paralelo conosco, conheço homens e mulheres que assim como Menocchio ousam questionar as religiões e seus dogmas. Desde a reforma, a autoridade absoluta da igreja foi substituída para muitos pela Bíblia, que tornou-se o grande alicerce da fé, e é supostamente com base nela que as igrejas criam seus dogmas. Mas as pessoas que mencionei, por refletires sobre o que fazem, por observarem atentamente o funcionamento das coisas, por querer sempre melhorar o lugar em que estão, e por estudarem e notarem a incompatibilidade que há nos dogmas cristãos em relação aos textos, tomam a liberdade de não fundamentar-se mais sobre a palavra dos clérigos, sejam eles de que seita forem. Eles ainda questionam as coisas que Menocchio questionou, mas também criticam os limites do cânon, que amordaçaram Deus; eles também duvidam da inerrância dos sermões e dos textos, criticam os discursos evangélicos e a busca nada bíblica por prosperidade, assim como o preconceito religioso para com os diferentes.

No entanto, esses novos “hereges”, ou “homens livres”, não deixam suas igrejas por conta disso. Como Menocchio, eles não acham que indo para outro lugar encontrarão a “verdade”. Por que criariam novas seitas que não fariam mais do que dar novos palpites humanos sobre Deus? Eles continuam nas antigas igrejas levando consigo suas idéias nada convencionais, encontrando opositores, arrumando conflitos de vez em quando, e libertando alguns das grades da religião quando podem. Enfim, eles ainda querem que sua religião seja a correta, mas não estão certos disso, motivo pelo qual é melhor não criar religiões nem arruinar as alheias.

Quis falar de Menocchio porque ele é uma inspiração para os “novos hereges”, cujo credo Menocchio definiu há séculos quando, diante da inquisição, disse:

Gostaria que se acreditasse na majestade de Deus, que fôssemos homens de bem e que se fizesse como Jesus Cristo recomendou, respondendo àqueles judeus que lhe perguntaram que lei se deveria seguir. Ele respondeu: ‘amar a Deus e ao próximo’ [...] Bastariam só quatro palavras para a Sagrada Escritura [...] (2006, p. 41, 44)

Referências Bibliográficas

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A GENEALOGIA DE JOSÉ, O PADRASTO ELEITO: MATEUS 1.1-17


Até o capítulo 4 do evangelho de Mateus há uma grande concentração de textos exclusivos deste evangelho, textos que não encontram paralelos noutras fontes do cristianismo primitivo, e que por isso mesmo parecem atender de maneira mais direta aos interesses do evangelista. Isso vemos desde a genealogia de Mateus 1.1-17, que não pode ser comparada à genealogia presente no evangelho de Lucas. Certamente a genealogia procura legitimar algum personagem ligando-o a grandes nomes do passado de Israel, como Abraão e Davi. Em Mateus, surpreende-nos o fato de que o personagem que está sendo legitimado é José, e não Jesus. O evangelho admite que Jesus não é filho legítimo de José, fazendo toda uma lista de nomes que não possuem necessariamente nenhum vínculo sanguíneo com o próprio Jesus. Veremos nos textos seguintes que José é a figura decisiva da narrativa até o final do capítulo 3, sendo muito mais importante do que Maria em Mateus; é por isso que o evangelho começa dando-lhe tal ênfase.


O uso de uma genealogia de José para abrir o evangelho já é suficientemente surpreendente. Mas esta perícope inicial vai mais longe. Nela encontramos os nomes de cinco mulheres, quatro delas com reputação duvidosa, mas que se tornaram heroínas na tradição de Israel (Chevitarese, 2006, p. 48-50). Só pra lembrar, temos Tamar, que se fingiu de prostituta para engravidar do próprio sogro (Gn 38.1-30); temos a prostituta Raabe (Js 2.1-21); temos Rute, que tomou uma iniciativa imprópria para uma mulher quando se deitou de noite “aos pés” de Boas e o levou ao matrimônio (Rt 3.1-18); e temos a mulher de Urias, que está envolvida numa das mais famosas histórias de adultério e assassinato da Bíblia (2Sm 11.2-27). A quinta mulher mencionada é Maria, a mãe de Jesus, que será apresentada como a mulher de José em breve.


Assim, o evangelho constrói José como um homem que possui entre seus ancestrais mulheres que foram mal vistas pela sociedade, mas que se tornaram grandes personalidades. A genealogia liga, em torno do nome de José, as quatro mulheres de tradição duvidosa a Maria, e isso indica que está implícita a acusação de que Maria possa ser também uma dessas mulheres. Em torno dos círculos cristãos do primeiro século, é bem provável que alguém insistisse que Jesus era um filho bastardo, e o cristianismo se defende disso ao afirmar a paternidade divina de Jesus. Claro que o evangelho não acredita que Maria tenha engravidado de qualquer outro homem, mas do Espírito Santo, como veremos a partir do versículo 18; no entanto, como o foco está em José, parece-nos que ele é retratado como o homem certo para receber a virgem grávida do Messias. Por sua história familiar, José seria capaz de não condenar a menina mesmo sem saber que nela Deus operava um milagre.


Diríamos, depois disso, que Maria não está sendo acusada de pecado. Não é este o propósito da genealogia. Antes, ela quer apresentar José como um homem escolhido, alguém capaz de suportar o peso da responsabilidade que receberia ao ser o pai adotivo do Messias, e o marido de uma mulher que engravidou antes dele a tocar.



Referência Bibliográfica


CHEVITARESE, André Leonardo. Maria, Menino Jesus e a Ilegitimidade Física do Filho de Deus. O uso do Modelo Iconográfico de Tipo Universal (Mãe/Filho) pelos Cristãos. In. Jesus de Nazaré: Uma Outra História. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006, p. 43-59.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

ORTODOXOS E GNÓSTICOS DISCUTEM A RESSURREIÇÃO

Este texto, assim como o anterior, são breves estudos que preparei para servir como material para sala de aula neste semestre. Em certo sentido, este dá continuidade ao anterior, falando sobre o processo de institucionalização na igreja cristã primitiva. Outra vez, achei que algumas informações podem ser de interesse geral, e por isso divulgo aqui esta versão resumida do estudo.

Depois da crucificação de Jesus, além dos doze apóstolos e outros que fixaram residência em Jerusalém, outros muitos discípulos que ouviram na Galiléia a respeito do Reino de Deus continuaram a missão de Jesus de maneira independente. O próprio Paulo é um exemplo de cristão que aderiu ao cristianismo de maneira independente dos doze apóstolos, e deu seguimento ao seu próprio modo de entender a mensagem de Jesus. É impossível enumerar quantas formas de cristianismo existiram desde as primeiras décadas, mas sabemos que eram várias, algumas completamente independentes da influência de Pedro. As igrejas de Paulo, por exemplo, já seguiam numa direção diferente daquela seguida por Tiago em Jerusalém; a igreja de Mateus também é bastante diferente daquela igreja que o evangelho de João testemunha, e há ainda textos como o evangelho de Tomé, que revelam a existência de vertentes completamente distintas do cristianismo primitivo. Isso está claro, e no meio de tanta diversidade surgiu um debate a respeito da ressurreição de Jesus.

Os textos bíblicos, como sabemos, narram que Jesus ressuscitou de forma corpórea, que andou, ensinou e comeu com os discípulos depois de voltar à vida. Conta também que ele comissionou os discípulos, e depois subiu ao céu. Depois disso, a igreja não teve mais contato com o Jesus em carne, mas com o Espírito Santo. A autoridade eclesiástica estava sobre aqueles que conheceram Jesus, sobre os doze, e depois deles, sobre aquele que descenderam da mesma linha apostólica. Essa é a versão bíblica da história (pele menos é a versão de Atos dos Apóstolos), a versão aprovada pelo cânon, a que testifica a autoridade da igreja. A igreja de Roma sempre apoiou-se nisso para afirmar sua autoridade e predominância. Segundo a tradição, Pedro, o principal apóstolo, havia delegado aos bispos de Roma a liderança da igreja, e por isso o Papa deve ser reconhecido como o “cabeça” da igreja sempre. Quer dizer que não podem haver outros líderes acima dele? Não, isso seria passar por cima da autoridade apostólica, seria desviar-se dos mandamentos deixados pelos primeiros cristãos.

Nisso, vemos que, por mais que se negue, o contato ou relacionamento do cristão com o Espírito Santo é inferior ao relacionamento direto com o Cristo. Aqueles que Jesus em carne comissionou serão sempre os cabeças. O Espírito não possui essa autoridade, não pode mudar a palavra do Jesus em carne e osso, e por isso, é claro que a ressurreição corpórea de Cristo e sua permanência na terra por algum tempo serve como legitimadores da autoridade da igreja de linha ortodoxa. Nas palavras de Elaine Pagels:

[...] quando examinamos o efeito prático que a doutrina da ressurreição corporal teve no movimento cristão, constatamos que, paradoxalmente, ela serve também uma função política essencial, legitimando a autoridade de certos homens que pretendem exercer liderança exclusiva sobre as igrejas enquanto sucessores do apóstolo Pedro. A partir do século segundo, esta doutrina serviu para validar a sucessão apostólica dos bispos, a qual tem constituído até ao presente a base da autoridade papal. (Pagels, 2006, p. 38)

Porém, a partir de textos encontrados na chamada “Biblioteca Gnóstica de Nag Hammadi”,[1] Pagels estudou o pensamento de cristãos primitivos que defendiam a ressurreição de Cristo, mas não de forma corpórea. A volta de Cristo, neste caso, era espiritual e permanente, e acreditavam que o relacionamento com Jesus estava disponível para todos em todas as gerações. Todo cristão era incentivado a buscar tal contato com Jesus, o que se dava por meio de experiências extáticas, de revelações. Só depois que esse contato se dava, é que alguém poderia se considerar um discípulo, alguém iniciado no evangelho pelo próprio Jesus. Esse conhecimento misterioso, incontrolável, e sempre novo, que se constituía no objetivo desse tipo de cristão, é o que fez com que fossem chamados de “gnósticos” (gnose é conhecimento em grego).

Se um cristão gnóstico baseava sua vida religiosa nesta experiência pessoal, é óbvio que o ensino dos mais antigos perde parte de seu valor. Para eles, todos podem ter a mesma experiência que Pedro teve, e por isso não há razões para haver hierarquias na igreja. Para os “católicos”, dos quais nós hoje descendemos, a autoridade apostólica é essencial; a Bíblia registra (é como se crê) o pensamento dos apóstolos, e não há como Deus dizer nada que modifique ou contradiga a mensagem apostólica. Tudo o que for dito, que nalgum ponto seja diferente dessa primeira revelação, é considerado heresia. Para os gnósticos essa revelação apostólica é apenas uma das possíveis revelações. Deus não se limitou aos apóstolos ou ao Novo Testamento, mas continua sempre falando com homens e mulheres que dele se aproximam por meio da fé em Jesus.

A divergência entre essas duas formas de crer não se baseia em fatos. Nenhum dos autores do Novo Testamento ou dos textos gnósticos sabia como se deu a ressurreição de Jesus. A briga entre ressurreição espiritual ou corpórea na verdade era alimentada por uma disputa de autoridade. Para os ortodoxos, a igreja precisava de limites, e escolher os textos canônicos e limitar a autoridade aos bispos como herdeiros da tradição apostólica, era um meio de impedir que as invenções posteriores desviassem a igreja de suas origens. Para os gnósticos, os ortodoxos, que tinham a pretensão de estruturar uma igreja universal (católica), queriam apenas controlar os homens, enquanto que Deus não se pode controlar. Eles incentivavam a busca pelo conhecimento direto de Deus, mesmo sabendo que isso impedia hierarquias e doutrinas. As coisas, para os gnósticos, deveriam correr soltas, sob a direção do próprio Deus, mesmo que isso trouxesse riscos, como o de que alguém, inspirado não por Deus, divulgasse algum tipo de mentira (Pagels, 2006, p. 52-53).

No evangelho de João 20.26-29 há uma passagem que ganha sentido a partir da discussão que estamos desenvolvendo. Jesus apresenta-se aos discípulos em forma corpórea, o que já nos revela que trata-se de um texto defensor da tradição apostólica e não gnóstica. O interessante é que o incrédulo Tomé é quem duvida de que Jesus tenha ressuscitado no corpo, e é quem acaba tendo que reconhecer o próprio erro, ao tocar o corpo já crucificado de Jesus. Não é coincidência de que exista um evangelho gnóstico que chamamos de Evangelho de Tomé.

Se Tomé, o discípulo incrédulo, é um dos nomes que marcam a tradição gnóstica, Pedro é o grande representante da tradição católica. Obviamente não estamos falando das opiniões dos próprios apóstolos, mas das disputas entre igrejas que se dizem discípulas de um ou de outro. Assim como em Marcos 8.27-30 Pedro ganha prestígio por ser o único que conhece a essência messiânica de Jesus, em Tomé 13 é este outro apóstolo que se destaca, superando Pedro e Mateus:

Jesus disse aos seus discípulos: “Comparem-me: digam-me a quem me assemelho”. Simão Pedro disse-lhe: “Tu te assemelhas a anjo justo”. Mateus lhe disse: “Tu te assemelhas a filósofo prudente”. Tomé lhe disse: “Mestre, minha boca não aceitará de modo algum dizer a quem te assemelhas”. Disse-lhe Jesus: “Eu não sou teu Mestre, porque tu bebeste, tu te embriagaste na fonte borbulhante que eu fiz brotar (ou ‘espalhar’)”. E, pegando-o, se retira e lhe diz três palavras. Ora, quando Tomé voltou para junto de seus companheiros, eles lhe perguntaram: “O que te disse Jesus?” E Tomé respondeu: “Se eu vos disser uma só das palavras que ele me disse, vós pegareis pedras e as lançareis sobre mim e fogo brotará das pedras e vos queimará”.

Obviamente, nenhuma das confissões é histórica. Ambas são defesas de igrejas em conflito, são textos que unem a tradição com a necessidade de legitimação. Cada igreja neste caso tenta defender sua opinião apoiando-se sobre a autoridade de algum apóstolo já falecido.

Vejamos ainda Tomé 114, um texto muito curioso, como último exemplo. Outra vez, é Pedro quem se dirige a Jesus sem qualquer sabedoria. Ele é corrigido, como lemos:

Simão Pedro lhes disse: “Que Maria saia de nosso meio, pois as mulheres não são dignas da Vida”. Jesus disse: “Eis que vou guiá-la para fazê-la macho, para que ela se torne também espírito vivo semelhante a vós, machos. Pois toda mu­lher que se fizer macho entrará no Reino dos céus”.

Deixando de lado o machismo que era uma questão cultural, chamamos a atenção para o fato de que Pedro não vê salvação para as mulheres, e quer tirar do meio dos discípulos Maria Madalena, outro nome representativo para a tradição gnóstica. Porém, neste texto, Jesus defende Maria, quer fazê-la discípula com os mesmos privilégios que os homens, mesmo que para isso ela tenha que se tornar como um homem. Não está implícita na fala de Pedro a crítica da igreja de tradição ortodoxa ao evangelho de Maria? E não está o autor do texto dizendo que a tradição que se denomina petrina não possui qualquer superioridade às demais? E não há também nesta igreja cristã gnóstica a permissão para que mulheres assumam papéis de destaque, coisa proibida desde o século II nas igrejas de tradição apostólica?

Por fim, o caminho ortodoxo, que se dizia apostólico, foi adotado pelo catolicismo romano e prevaleceu. A institucionalização, negativa por amarrar a liberdade religiosa, é positiva por impedir que as diferenças ponham fim à igreja. Esta igreja institucional, presa à vontade de seus líderes, venceu a batalha contra os cristãos gnósticos dos séculos II e III. Quando Lutero rebelou-se contra a autoridade papal e exigiu para todo cristão o direito de ler a Bíblia, estava em certo sentido retornando aos argumentos gnósticos, porém, sua tradição cristã o impedia de libertar-se também do cânon (que é uma das bases da instituição católica) e das estruturas hierárquicas. A reforma foi uma luta interna por liberdade, nada que nos fez sair dos limites já estabelecidos pela tradição apostólica. Hoje, se queremos dar outros passos em direção à liberdade, precisaremos ousar mais. Teremos que negar outra vez a existência de hierarquias, e a prioridade da revelação dada a uns poucos homens sobre a dos demais. E, para os mais ousados, é necessário ultrapassar os limites do cânon, buscar a Palavra de Deus em textos bíblicos e também fora deles, como a Didaqué, por exemplo, ou o Evangelho de Tomé, ou em livros modernos e em profetas dos nossos dias, que estão por aí criticando os abusos das instituições e tentando implantar um Reino onde só Deus é Senhor.

Referência Bibliográfica

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Porto: Via Óptima, 2006.



[1] Trata-se de uma extensa coleção de textos cristãos que traduziam originais gregos para o idioma copta, datados a maioria do século IV E.C., e que foi descoberta no Egito em 1945.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A DIDAQUÉ: O CATECISMO DAS PRIMEIRAS IGREJAS CRISTÃS

A postagem de hoje vai servir para informar e levar à reflexão. Vamos ver alguns pontos da Didaqué, um manual de disciplina comunitária que teria sido escrito no mais tardar no início do século II. Acredito que a leitura vai causar grande fascínio aos leitores interessados, que conhecerão a riqueza do cristianismo primitivo a partir de uma ótica não canônica.

Esse documento não está em nossas Bíblias, mas é um valioso escrito das igrejas primitivas que vale a pena conhecer. Ele nos dá um valioso vislumbre da vida dos cristãos primitivos sob a ótica das primeiras igrejas sedentários, isto é, que não priorizam como no princípio, o ministério itinerante, apostólico, ou missionário. Por isso, veremos que a Didaqué dedica várias passagens ao controle da autoridade dos itinerantes em atividade, tomando o poder dos apóstolos sem lar e delegando-o aos bispos ou líderes locais. Veremos que os itinerantes não eram os líderes das comunidades locais, antes, agora eram por elas julgados e até expulsos se não fossem considerados dignos.

A Didaqué fala de três tipos distintos de pregadores itinerantes: os mestres, os apóstolos e os profetas. Começaremos lendo o que ela diz sobre os mestres, cujo ensino deveria limitar-se àquilo que já fora estabelecido pelo grupo:

Se vier alguém até você e ensinar tudo o que foi dito anteriormente, deve ser acolhido. Mas se aquele que ensina é perverso e ensinar outra doutrina para te destruir, não lhe dê atenção. No entanto, se ele ensina para estabelecer a justiça e conhecimento do Senhor, você deve acolhê-lo como se fosse o Senhor. (Did. XI.1-2)

Quanto aos apóstolos, que por definição eram cristãos itinerantes enviados para estabelecer novos grupos alhures, a exigência era para que sendo eles apóstolos, não ficassem sendo assistidos junto à comunidade por muitos dias:

Todo apóstolo que vem até você deve ser recebido como o próprio Senhor. Ele não deve ficar mais que um dia ou, se necessário, mais outro. Se ficar três dias é um falso profeta. Ao partir, o apóstolo não deve levar nada a não ser o pão necessário para chegar ao lugar onde deve parar. Se pedir dinheiro é um falso profeta (Did. XI.4-6)

E por último, também há sanções aos profetas, que na Didaqué são cristãos que falam sob inspiração divina com autoridade e liberdade nas reuniões (Did. X.7). O texto exige, para essa atividade, não somente a inspiração, mas também um comportamento digno (Did. XI.7-8a), e controla todas as supostas palavras inspiradas a fim de que os profetas não se aproveitem de tal “dom” para benefício próprio:

É desse modo que você reconhece o falso e o verdadeiro profeta. Todo profeta que, sob inspiração, manda preparar a mesa não deve comer dela. Caso contrário, é um falso profeta. [...] Se alguém disser sob inspiração: "Dê-me dinheiro" ou qualquer outra coisa, não o escutem. Porém, se ele pedir para dar a outros necessitados, então ninguém o julgue. (Did. XI.8b-9,12)

As porções selecionadas nos dão um retrato de uma comunidade cristã que luta para conciliar a tradição itinerante do cristianismo originário, com as novas necessidades de um cristianismo estável, que vai se tornando igreja, elegendo líderes, estabelecendo hierarquias, e regulando o modo de crer e de ser dos participantes por meio da doutrina. Eles tinham que aceitar os profetas itinerantes, afinal, Jesus havia sido um deles, e também o apóstolo Paulo; entretanto, o documento nos diz nas entrelinhas que com o tempo alguns desses missionários passaram a abusar do ministério para aproveitar-se das comunidades locais; alguns também causavam divergências quando vindo de outras regiões compartilhavam doutrinas diferentes. Os primeiros bispos, viram-se obrigados a definir um dogma, e a colocá-lo acima das palavras dos pregadores itinerantes.

Estamos falando de uma só porção de cristianismo, é claro, mas este exemplo fornece uma bela imagem da institucionalização acontecendo. Se no começo o cristianismo era definido pela atuação dos itinerantes, agora passa para as mãos dos “pastores”, e o que por um lado é uma tentativa de sobrevivência, também viria a revelar-se como “algemas” para o próprio Espírito Santo, que deveria agir dentro dos limites estabelecidos pela igreja cristã. A partir de limites como esses, a igreja chegaria a determinar qual a interpretação deveríamos dar aos textos sagrados, chegaria a dizer que não há salvação fora da igreja, e diria que Deus não pode falar a não ser por meio da Bíblia e pela boca dos clérigos. Esses crimes contra a liberdade humana e também divina, são conseqüências do desenvolvimento natural da igreja como instituição. Por isso é que viver na igreja sempre implica em obediência; é por isso que uma das palavras mais bem vistas nas instituições religiosas é “submissão”, e é por isso que não me deixo aprisionar novamente. Como todos dizem, se conheceres a verdade, ela o libertará; mas nos libertar de quê se não é das grades da religião?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

LER A BÍBLICA É UMA ARTE OU UMA CIÊNCIA?


Enquanto eu respondia a um comentário deixado no blog, escrevi que quando dedico postagens a temas mais técnicos a “audiência” do blog fica bastante reduzida. A verdade é que as pessoas gostam de polêmicas, gostam quando escrevo sobre a igreja, quando critico dogmas, quando exponho erros de interpretação da igreja... Mas é a metodologia, a ciência aplicada à leitura, que nos permite fazer tais críticas, e por isso aconselho todos a se dedicarem ao menos um pouco à exegese. Caso contrário, ganha a discussão quem escreve de maneira mais elaborada, quem é convincente na argumentação, e não quem está com a razão.

Bom, mas não é por isso que eu quis escrever este texto. Após tantas postagens falando sobre interpretação bíblica, resolvi meditar publicamente sobre outro ponto da exegese, que é a porção artística de sua produção. Pois é, exegese não é apenas ciências, é também uma arte.

Quando fazemos exegese buscamos interpretar o texto bíblico com todos os instrumentos possíveis, tudo em busca de desvendar seu sentido. Queremos que o texto fale ao leitor de hoje como falava nos seus primeiros dias, ou como o autor pretendia que ele falasse. Contudo, por mais rigorosos que possamos ser na aplicação da metodologia científica de análise, o resultado final de nossas exegeses ainda guarda uma boa porção de criatividade, e é isso o que me faz caracterizá-la como arte. É difícil de aceitar, mas nossa ciência acaba sendo também pessoal, inventiva, e isso não é sinônimo de “falsa”.

Antigamente os manuais de exegese diziam que nós estudávamos o texto em busca de seu sentido original, em busca do autor real do texto ou coisa assim. Só que quando lemos as interpretações dos mais diferentes intérpretes percebemos como elas são contraditórias. A história nos deixou tantas e tão variadas leituras da Bíblia, que acreditar que a nossa leitura é a correta tornou-se sinal de ignorância. Hoje, somos menos pretensiosos, e reconhecemos que o sentido original ou o autor real são inatingíveis, e que nós poderemos no máximo nos aproximar disso. Falei disso nas postagens anteriores, mas queria enfatizar que essa parte criativa da exegese não é ruim.

Não somente na interpretação da Bíblia, mas em quase tudo o que fazemos, deixamos nosso toque pessoal, uma parte de nós mesmos, e isso torna nosso trabalho humano. Ainda que seja duro reconhecer que somos só intérpretes arriscando mais uma leitura (que pode até ganhar aceitação e tornar-se uma leitura “oficial” para muita gente), se não fosse assim a Bíblia estaria esgotada. Alguém acharia o seu sentido correto, e perderia o sentido nossa leitura; bastaria ler o que o tal intérprete escreveu, e a exegese estaria morta. Felizmente a Bíblia é um instrumento de fé e criatividade, que alimenta-nos não somente com a divulgação da verdade, mas também com o exercício de nossas vocações.

Se o artista é alguém que possui um dom, que interpreta o mundo e o descreve através de sua arte (seja pela música, escultura, pintura, teatro etc...), nossa maneira de ler a Bíblia também deve ser artística, expressando por meio da exegese, de maneira consciente ou não, a nossa própria maneira de ver o mundo. Difícil é conciliar a ciência, a metodologia, com essa criatividade. Os limites entre erros metodológicos e invenções possíveis são difíceis de notar, mas sempre vale tentar.