quinta-feira, 23 de setembro de 2010

COMO LER O MITO DO DILÚVIO?

Na postagem anterior nosso objetivo foi mostrar como é através da mensagem mitológica, isto é, dos dizeres que não possuem qualquer vínculo comprovável com a realidade, que se esconde a verdadeira mensagem bíblica. É preciso deixar de dar valor excessivo à historicidade dos textos como se somente aquilo que está escrito como realmente aconteceu possuísse valor, e perder o preconceito com relação à mitologia, já que o homem antigo construía seu mundo através dos mitos e tanto as coisas reais como as imaginadas ganhavam contornos mitológicos quando narradas.

Seguiremos neste exercício, de ler superficialmente textos bíblicos para mostrar que uma leitura histórica torna a Bíblia um livro antigo e superado, enquanto que a compreensão dos seus mitos revela sua mensagem religiosa. Nossa proposta é atualizar exatamente o mito, perguntar pelo papel que ele desenvolvia na sociedade que produziu o texto, por sua ideologia, sua utopia, e propor uma leitura do mesmo mito hoje, que ainda dependerá obviamente da fé do leitor.

A narrativa do dilúvio (Gn 6-9) é a parte mais longa de toda a seção mitológica que vai de Gn 1-11. Além de muitos estudiosos já terem relatado o parentesco entre o dilúvio bíblico e outras versões mesopotâmicas, a introdução da narrativa (Gn 6.1-7) apresenta uma forma bem resumida do chamado “Mito dos Vigilantes”, que podemos ler no livro extra-canônico de 1Enoque 6-16. O mito diz que anjos sentiram-se atraídos por mulheres humanas e geraram filhos com elas: “Quando outrora aumentou o número dos filhos dos homens, nasceram-lhes filhas bonitas e amoráveis. Os Anjos, filhos do céu, ao verem-nas, desejaram-nas e disseram entre si: ‘Vamos tomar mulheres dentre as filhas dos homens e gerar filhos!’” (1En 6.1) Os filhos dos anjos com as mulheres, estes seres híbridos, eram gigantes que começaram a devorar tudo o que a terra produzia, e depois os próprios homens: Estes consumiram todas as provisões de alimentos dos demais homens. E quando as pessoas nada mais tinham para dar-lhes os gigantes voltaram-se contra elas e começaram a devorá-las(1En 7.2). Deus, indignado com tamanho absurdo, decide punir os anjos responsáveis, e destruir toda a raça humana por meio de um dilúvio. Só um homem sobreviveria com sua família, o filho de Lamech (1En 10.1).

O começo da narrativa do dilúvio, que dá o motivo para tal ação radical de Deus, foi herdada da mítica narrativa de 1Enoque. Ignorando toda a literatura extra-canônica e lutando por explicar de maneira racional o texto bíblico, os leitores conservadores desdobram-se para fugir à mitologia, mas tal exercício é vão. Mas o dilúvio em si, porção textual que na Bíblia ganhou novos contornos e se tornou o centro da narrativa não deixa de ser também mitológico. Esta narrativa responde também a uma das grandes questões do mundo antigo, que é sobre o perigo de um dilúvio fatal.

O homem antigo não tinha recursos para explicar as chuvas, não conhecia os limites dos mares e não sabia como era possível haver água abaixo da terra quando cavavam um poço. Ele sentia-se cercado por água e imaginava que diante da ira divina o mundo poderia a qualquer momento ficar submerso. A narrativa do dilúvio transmite-nos a esperança de que mesmo diante da maior de todas as catástrofes os fiéis podem ser preservados. Noé serve-nos como exemplo de fidelidade e perseverança quando tudo lhe é contrário, e acaba sobrevivendo ao quase fim do mundo. Apesar da resistência contra a cultura babilônica na narrativa da criação, Gn 6-9 é a prova de que a cultura estrangeira também foi sendo assimilada pelos judeus.

Há mais um aspecto desta narrativa que gostaríamos de mencionar. Mostra que a releitura judaica foi ainda relida e que o texto final, o que temos em nossas Bíblias, já atente a propósitos diferentes dos originais. Primeiro vejamos o que está escrito em Gn 6.18-19: “Mas contigo estabelecerei o meu pacto; e entrarás na arca, tu e os teus filhos, e a tua mulher, e as mulheres de teus filhos contigo. E de tudo o que vive, de toda carne, dois de cada espécie meterás na arca, para os conservares vivos contigo; macho e fêmea serão”. O tema em pauta é a preservação do justo, dos que ele preza, e dos animais de todas as espécies; a criação de Deus é preservada pela fidelidade de um único homem. Um casal de cada espécie é suficiente para tal propósito, mas isso muda ao longo do texto. Em Gn 7.2 lemos a ordem para a reunião dos animais na arca com uma diferença importante: “De todo animal limpo tomarás para ti sete e sete: o macho e sua fêmea; mas dos animais que não são limpos, dois: o macho e sua fêmea”. Agora há distinção entre animais puros e impuros, e para os puros a ordem é de que se preserve sete casais. Por quê? A resposta vem mais adiante, quando o dilúvio acaba e Noé sai da arca: “E edificou Noé um altar ao SENHOR; e tomou de todo animal limpo e de toda ave limpa e ofereceu holocaustos sobre o altar. E o SENHOR cheirou o suave cheiro e disse o SENHOR em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice; nem tornarei mais a ferir todo vivente, como fiz” (Gn 8.20-21).

Temos o texto em duas edições, uma mais antiga, com a preocupação de proteger a vida do justo e dos animais, e outro posterior com uma preocupação sacerdotal, onde não basta ser fiel às palavras de Deus, é também necessário sacrificar. A teologia sacerdotal viu que um casal de cada espécie seria pouco para agradar a Deus, e incluiu um número maior de animais puros para que Noé, após o dilúvio, pudesse também sacrificar. A leitura história, a princípio, não aproveitaria muita coisa desta longa narrativa. O método histórico-crítico traria a responsabilidade de distinguir as duas versões, e acabaria por desprestigiar os retoques sacerdotais, que evidentemente são posteriores. Uma leitura historicista também teria que reconhecer o valor do sacrifício de animais no texto, e sua aplicação tornar-se-ia impossível. Outra tentativa é fazer relações do dilúvio bíblico com achados arqueológicos que talvez confirmam a existência de um antigo dilúvio, mas que não ajudaria muito para comprovar a teologia do texto.

Nós, todavia, não nos importamos com as contradições e nem com a historicidade dos fatos, mas com a mensagem do texto e nada mais, que pretende tanto ensinar sobre a proteção divina sobre aqueles que o agradam, como incentivar a fidelidade litúrgica, que naquele caso aconteceu através do sacrifício. Não pediríamos que ninguém imitasse Noé sacrificando animais para agradar um Deus que gosta de cheiro de churrasco, mas exporíamos o texto como é, admitindo que sua teologia está superada. Mostraríamos que o personagem procura fazer o melhor para seu Deus de acordo com seu tempo e cultura, que é fiel em meio há uma sociedade condenada, e que por isso é salvo pela ação conjunta de Deus e de seu trabalho. Noé também mostra-se grato quando vê-se livre das ameaças que transtornam todo o mundo. Tais coisas podem ser facilmente transpostas para os nossos dias, onde as pessoas devoram-se e não se importam com o fim da vida; a ameaça de um dilúvio talvez não assuste o leitor de hoje, mas a mensagem de que o homem de fé, que trabalha a partir da Palavra de Deus, é capaz de livrar sua família e também a criação da destruição, é algo bastante atual. O chefe de família guiado por Deus é capaz de salvar toda a família, e há ainda um apelo ecológico no texto, e um incentivo à gratidão litúrgica. Novamente, a única coisa que importa ao leitor comum é a mensagem mitológica, e não a histórica.

Imagem: The Flood, de Masséot Abaquesne.

3 comentários:

Anônimo disse...

Deus que gosta de cheiro de churrasco foi muito boa rsrs.

É engraçado nosso Mundo Cristão, tem que ser exatamente aquilo que está na Bíblia ao pé da letra! A visão é limitada, não conseguem ver além das escrituras porque acham que a unica fonte verdadeira é a Bíblia. Nem mesmo conseguem entender que tipo de "Luz" Deus está falando em Genesis 1:3.

O seu texto nos traz um ensinamento muito grande por detraz do véu do diluvio.

Infelizmente textos como esses é rejeitado pela igreja e com certeza vão te chamar de herege rs. As fontes Cristãs desprezam qualquer idioma em que a Bíblia foi escrita e além disso, ensinamento milenar judaico que transcede o tempo e é o mesmo até hoje.

Quando o assunto é forçoso d+ para se transformar em fato, entao se extrai a mensagem do texto. Para umas coisas se bate o pé firme em querer afirmar que é assim e assado e não tem outra forma enquanto para outros, se utiliza apenas a mensagem do texto.

Converse com qualquer arquitéto naval, pergunte se é possivel uma arca dessa magnetude realmente sobreviver á águas turbulentas, ou então, ser viavel a navegação? Com toda a ciência lhe responderão que não.

As nossas igrejas precisam estudar mais sobre paleontologia e geologia. Vão entender muito BEM esse tipo de assunto.

Não é necessario existir um diluvio para me mostrar o quanto Deus é poderoso. Não tenho essa necessidade em meu coração. Quanto mais nos apegamos a letra sem buscar o seu verdadeiro sentido, mais longe estaremos da verdade. As mensagens estão além do que lemos, como o Professor mesmo nos trouxe em sua postagem.

Parabens Anderson, e continue nos abençoando com seus conhecimentos!

Abs
Thalyta Ingryt

Anderson de Oliveira Lima disse...

Confesso que o "cheiro de churrasco" não é coisa totalmente minha. Acho que involuntariamente fiz uso da linguagem do Dr. Milton Schwantes, meu professor na Univ. Metodista. Mas que o Deus do Antigo Testamento geralmente gosta disso não podemos negar.

Acho que após esse segundo exemplo já deu pra entender melhor como é que esses textos devem ser lidos, pelo menos em minha opinião. Mas vou continuar com isso mais um tempo. Aguarde.

Obrigado pelo comentário mais uma vez.

Leonardo Pessoa disse...

O chefe de família guiado por Deus é capaz de salvar toda a família, que visão fantástica.

Parabéns pelo texto!