segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A CRIAÇÃO: UMA LEITURA MODERNA DE Gn 1.1-2.3


Há algumas semanas tenho trabalhado na produção de um novo artigo sobre a interpretação bíblica que conta com uma longa parte teórica e com alguns exercícios práticos no final. O texto está inacabado mas já é bem longo, e não poderá ser publicado aqui; então pensei em aproveitar ao menos a parte prática do artigo aqui no blog, divulgando minha leitura de alguns textos míticos que costumam ser mal aproveitados pelos leitores da Bíblia. Procurarei fazer uma abordagem didática dos textos, para ensinar o leitor sobre o que considero um bom uso da mitologia bíblica, assim como também tentarei ser prático, mostrando que aplicação estes textos podem ter para nossos dias.

Geralmente quando se fala de mitologia bíblica logo se pensa em Gênesis, dos capítulos 1 a 11, que é uma literatura claramente mítica; porém, o termo “mito” ainda é visto com resistência por grande parte dos leitores da Bíblia, que acreditam que tais textos são relatos precisos de acontecimentos passados. Não gostaria de discutir isso aqui, então vou direto ao texto de Gn 1 esperando que sua leitura já dê ao leitor alguma idéia do que entendemos por literatura mítica. Outros textos virão em próximas postagens para aprofundar o tema.

O primeiro texto da Bíblia começa dizendo: “No princípio, criou Deus os céus e a terra”. Temos aí um texto inquestionavelmente mítico, pois relata acontecimentos de um período que homem algum poderia ter testemunhado, já que não existiam. O próprio escritor obviamente não estava lá, não sabe exatamente como se deu tais eventos, e a falta de critérios para descrever tais eventos é o que nos leva a classificá-la como mitologia. A pergunta não é se o evento narrado ocorreu ou não, mas pelos critérios empregados para a composição do relato. Imaginamos, é claro, que o universo teve um início, mas quando e como esse início se deu é uma questão que não podemos responder. A criação do universo, mesmo após a narrativa de Gênesis, continua tão difícil de imaginar que não encontrei tal evento retratado por nenhum artista anterior às fotos de satélite; há inúmeras telas que nos revelam como o imaginário humano concebe a criação de Adão e sua queda, mas a falta de imagens é prova de quão inconcebível é a origem do universo. O mesmo problema da falta completa de respostas sobre as origens inquietava a humanidade quando este relato foi composto, e por isso logo imaginamos que o objetivo do texto sagrado é contar como as coisas aconteceram, revelando aquilo que só Deus mesmo poderia saber.

Como não é possível dizer como foi que tudo começou, Deus aparece como o agente da criação. Na verdade, as mitologias costumam evocar os deuses exatamente para explicar aquilo que não tem explicação, e por isso a chuva, os terremotos, a morte... são todos interpretados como ações dos deuses em todas as culturas não tecnológicas. Quando as explicações da ciência surgem e parecem coerentes, os deuses desaparecem junto com a mitologia, e adotamos a versão científica da história. Assim, quando se descobriu como se formam as tempestades, deixou-se de crer que os deuses estavam irados. O mesmo não aconteceu com a “vida após a morte”, que não possui explicação científica; neste caso a linguagem mítica e os deuses continuam servindo como respostas.

Voltando a Gênesis, além de não haver qualquer evidência de que o relato da criação diz a verdade, ainda há uma série de imperfeições que uma leitura crítica pode destacar. Por exemplo, os dias já são contados antes mesmos que existam sol e lua; a criação só fala do nosso mundo e dos astros daqui visíveis, ignorando a existências de outros planetas. Quando chega o momento da criação dos seres-humanos, eles são feitos segundo a imagem de Deus (ou deuses conforme o plural empregado no texto), deixando para nós alguns sinais de como eram “humanizados” os deuses imaginados no período. O ponto mais interessante, todavia, é o sétimo dia, em que o próprio criador descansa de seu trabalho: “E, havendo Deus acabado no dia sétimo a sua obra, que tinha feito, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra, que Deus criara e fizera” (Gn 2.2-3). Teologicamente falando, a divindade em questão, com suas características divinas e suas limitações humanas, é um ser que se cansa, coisa que não coaduna com nenhuma definição de Deus que posteriormente a Bíblia apresentará.

Uma leitura histórica desse texto, que tentaria focar os aspectos reais da narrativa, não é muito promissora. Apenas com o emprego de muita alegoria poderíamos dizer que os dias da criação coincidem com as eras que os cientistas distinguem na criação da terra. Tirar do texto seu aspecto mitológico significaria destruir o texto, fazê-lo mero conto de fadas da antiguidade. Pior ainda seria lê-lo literalmente e tentar dizer que tudo aconteceu como está narrado; é o que fazem os contrários ao evolucionismo que acham que Darwin era um inimigo da Bíblia e o criticam sem nunca tê-lo lido.

Então, o que fazer com esse texto? Eu sugiro que esqueçamos tanto a leitura histórica quanto a fundamentalista para nos atermos ao texto como é. Não devemos nos importar quanto a ser verdade ou não os fatos narrados, mas nos perguntar para que servia esse texto. Já dissemos que ele ajuda o ser-humano quando diz que o mundo nasceu por uma iniciativa de Deus; ele explica mitologicamente uma questão insolúvel e assim traz paz ao leitor. Todavia, há mais por trás do texto. Isso dizemos porque há um problema nele que é o Deus cansado que precisa repousar no sétimo dia, coisa que não estaria numa narrativa mitológica que procura apenas explicar as origens. O descanso de Deus, como problema teológico, é na verdade o centro do texto, pois evoca uma tradição bem conhecida de autores e leitores, a guarda do sábado (Êx 23.12-13).

O texto revela-se como uma narrativa que legitima a guarda do sábado. Ele diz: “Até Deus precisa descansar, e fez isso no sábado. Nós também devemos descansar, e isso deve ser feito no dia que Deus mesmo escolheu, que é o sábado”. Se este é realmente o tema central do texto, qual aplicabilidade ele possui na vida de quem o lê? Embora seja difícil precisar, tudo nos leva a crer que este relato, além de pertencer à cultura judaica, responde a um período histórico em que o descanso semanal estava ameaçado. Talvez o texto nos remeta ao período exílico (a partir de 587 a.C.), quando na Babilônia os judeus viram na guarda do sábado um sinal que os diferenciava. Pode ser que na ocasião, como povo dominado, sentiam-se pressionados a trabalharem nos sábados, e neste contexto o apelo à fidelidade à religião tradicional é também um pedido de descanso.

Meu professor, Milton Schwantes, faz uma leitura semelhante do texto num de seus livros, e vê outro aspecto que talvez esteja correto. Na narrativa, Deus cria todas as coisas, e entre elas, o sol e a lua, os luminares que eram divinizados na Babilônia.[1] Teríamos então uma reação contra as imposições culturais e religiosas estrangeiras, além de uma possível imposição física.

Agora a mensagem do texto, tirada exatamente da interpretação da mitologia judaica, pode ser resumida e depois transferia aos nossos dias. O texto ensinou, ainda que por argumentos mitológicos, a respeito da soberania de Deus sobre todas as outras supostas divindades, o que nos levaria a falar do monoteísmo. Mas não é qualquer monoteísmo que deve ser pregado, mas um monoteísmo preocupado com os direitos humanos, que defende o descanso do trabalhador, sua liberdade religiosa ainda que minoritária, que combate outra religião não porque ela é diferente, mas porque ela serve como instrumento de dominação do próximo. A mensagem do texto para hoje é: Nós acreditamos nesse Deus porque ele é um Deus mais humano, que conhece nossas necessidades e que instituiu leis para a defesa dos mais fracos.

Em resumo, é na mitologia que está a mensagem, e esta mensagem é a porção permanente e valiosa da narrativa bíblica. Não precisamos crer nos relatos fantásticos, nem priorizar somente o que se comprova cientificamente, podemos ler a mitologia, interpretá-la coerentemente, de acordo com o modo de pensar do período de sua composição, e então aplicar seu ensinamento também aos nossos dias, adequando sua linguagem ao nosso próprio modo de pensar.



[1] SCHWANTES, Milton. Projetos de Esperança. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 33-34.

7 comentários:

Anônimo disse...

Vou começar o comentário dizendo um titulo de uma postagem sua: Estudar provoca crise de fé. E que crise eu passei e tantas outras estão chegando RS. Quando você chega numa conclusão que é um mito, vem uma enxurrada de perguntas: como encaixaríamos os animais pré-históricos? E os homens da caverna? E a Teoria do Big Bang? RS

As coisas que estão na bíblia são muito fáceis de entender, claro, quando estudamos! É esquecer a parte do “OBA OBA CRISTÃO” e estudar um pouco sobre os Judeus. (isso me ajudou muito, muito mesmo). A primeira coisa que se deve ter em mente é que os judeus não quiseram escrever um livro que fosse científico e explicasse a origem de tudo e de todos. A intenção era apresentar um Deus de uma maneira maravilhosa, perfeito e agradável através de contos, lendas...

O que nós esquecemos é que quando uma pessoa escreve uma história, ela pode usar vários recursos literários para comunicar o que quer. Nós fazemos isso a todo instante, uma de nossas ferramentas nesse exato momento é esse blog. Eu posso postar um artigo e trazer a interpretação que eu quero e dar ênfase para o que quero. Um grande exemplo dessas várias figuras de linguagem que estamos cansados de ouvir é do Hino Nacional: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...” As margens plácidas agora tem ouvidos para ouvir? RS São Gentes?kkk. Então chamamos de Linguagem figurada. Acreditar em Paraíso, em serpente que fala, em arvore do bem e do mal, tudo isso são características literárias de lendas. É até uma ousadia minha dizer isso aqui, mas como já falei anteriormente esse blog me deixa muito a vontade de expor exatamente o que quero sem mascaras e sem política. Para mim, se Adão e Eva tivesse realmente existido então poderíamos dizer que o HOMEM frustrou os Planos de Deus, acabou com o sonho de Deus!

Eu acredito da seguinte forma, se eu estiver errada, por favor, Professor me corrija: Acredito que a Palavra Adão inicialmente não era nome de Gente. (Porque se eles fossem os primeiros, o que vamos fazer com os Chineses?). Acredito que seja algo figurativo há humanidade, humano.. Mas não um homem só compreende? Eva tbm acho que não significa apenas uma mulher, mas a Mãe dos viventes... Algo relacionado a viver...

Bom Enfim.. para mim, Adão e Eva é uma lenda. Mas não uma lenda como essas de hoje, historinhas para crianças dormir, parábolas, mas nos transmite verdades de fé muito profundas.

Confesso que me senti muito estranha quando comecei estudar a Bíblia, sua cabeça dá um nó terrível e algumas coisas você não tem mais respostas, argumentos, as pesquisas se limitam muito e cada um expõe sua forma de pensar que automaticamente é confundida pelo tamanho da sua fé.

Mas quer saber a real? Deus foi perfeito! Porque você quebra todos os paradigmas pré-existentes e passa acreditar em Deus só pelo que Ele é e não pelo o que Ele fez, escreveu, falou, etc.. Quando conhecemos a verdade da bíblia nos decepcionamos, mas em seguida conhecemos Deus! É como se trocasse de religião! Você não serve mais porque ELE FEZ GRANDES COISAS, você serve porque você AMA e ponto. E amor não se discute nem interpreta, VIVE!

Nossa, eu sempre escrevo uma bíblia rsrs... vou parar por aqui.

Parabéns Professor! Adoraram! Ano que vem estarei por ai.

Abs
Thalyta Ingryt

Anderson de Oliveira Lima disse...

Thalyta, pode escrever que eu gosto de ler, e gosto de escrever também.

Enquanto lia seu comentário pensava em responder, explicar, aprofundar... é o hábito de professor. Mas vou deixar que leia no blog outros exemplos como este que aos poucos devem esclarecer as coisas. Também posso lhe enviar o texto original assim que o terminar, pois vai entender os motivos de minha abordagem.

Obrigado pelo comentário e atenção, volte em breve para ver as críticas, que acredito que aparecerão.

Leonardo Pessoa disse...

Nossos antepassados quando identificavam algo poderoso tendiam adorar essa fonte de poder. Para um a cultura não tecnológica o poder é tanto uma benção como uma maldição, a chuva pode ser aquela que da vigor ao que foi semeado, mas pode ser também a tempestade que destrói não apenas o campo semeado mais toda possibilidade de colheita.

Por isso adoravam, queriam que este poder lhes fosse favorável.

Infelizmente muitos ainda crêem que Deus é um poder aleatório com a capacidade de abençoar e amaldiçoar. Sua postagem nos dá uma real percepção de quem é Deus. Vendo que até no mito ele está embutido e imbuído a um principio de justiça.

Parabéns pela postagem, como a Thainty tenho muitas perguntas sobre este tema mais creio que meus anseios atraves das proximas postagens serão saciamos como foi este.

Anderson de Oliveira Lima disse...

Oi Leonardo, que bom que gostou do texto.

Acho que você está certo. Na Bíblia, a teologia, ou seja, a idéia que se tem de Deus vai modificando-se, evoluindo. Esse conceito de que de Deus não provém o mal é coisa relativamente nova nos textos bíblicos. Veja Amós 7.1-3, ou o famoso Malaquias 3.1-12, e veja como Deus cria as pragas e envia a maldição.

O que me impressionou mais nesse texto foi o Deus humano, que se parece conosco e que se cansa. Essa idéia é usada para defender os direitos dos trabalhadores por seu descanso, e a mensagem, quando lida assim, é fantástica. Se nos prendermos aos detalhes da mitologia vamos perder a riqueza do texto.

Eu posso lhe oferecer, como fiz à Thalita, um artigo que acabei de completar sobre a teoria da mitologia e história na leitura bíblica. Basta escrever seu e-mail numa postagem, ou me escrever no e-mail que está no final do blog que eu lhe envio.

Muito obrigado pela postagem.

Voz de denúncia disse...

A muita dificuldade na igreja, nos religiosos, ou naqueles que se aventuram a leitura biblica.
Lidar com o mito talves por causa do conceito de verdade, as pessoas tenha o mito como mentira, não era assim necessariamente o mito entendido pelos judeus. O livro do Milton Projetos de esperança Genesis de 1 a 12 aborda legal o setimo dia e o diluvio, foi fantastico como ele abordou o assunto, e vc como sempre e muito sutil em suas palavras, fico feliz por vc estar tambem exercendo a Hermeneutica pastoral.

Unknown disse...

A paz Prof. Anderson,
Olha meu nome é Gabriel, sou irmão do seu aluno Rodrigo Pacheco, e também tenho um grande anseio de estar estudando e compreendendo a historicidade, as mitologia, e os conteúdos bíblicos de uma forma mais adequada.
Bem vi esse seu artigo, o qual é muito bom, não só esse mais todos que vi, e se fosse possivel você me mandar esse seu artigo completo no meu e-mail (bielpb@hotmail.com), ficaria muito grato.
Como a thalita mesmo disse, Adão tem um significado de humanidade, e Eva como Mãe dos seres viventes, isso eu pude ver em alguns livros, que falam da mitologia da criação. Pois bem professor, queria por gentileza pedir a você umas indicações de livros sobre esse tema, ou até mesmo alguns artigos.
Ah e claro, vendo outras postagens suas, vi muita coisa sobre Paulo tenho estudado a uns cinco meses as cartas paulinas, sou apaixonado por essas cartas maravilhosas. Será que você poderia me dar umas dicas sobre essas cartas?
Tem um tópico que também se refere a criação, a qual Paulo faz essa citaçãó. Lá em Romanos 5.12-21. Qual é a sua visão sobre o que ele diz? Pois Paulo diz que foi por um só homem que o pecado entrou, e etc. No original a tradução é essa mesma?
Muito obrigado professor Anderson. Parabéns mesmo por esse blog, que tem sido uma grande luminária pra mim, para que futuramente eu possa contruir através dela um grande farol.
Fica com Deus.

Catedral da Alma disse...

professor Anderson, boa noite.
gostaria de receber seu artigo completo para leitura. Fui seu aluno no ICEC SP. Estou um pouco atrasado você escreveu isto em 2010 e hoje Maio de 2017 estou lendo.
Abaixo segue meu email:
adilson@arlrepr.com.br