Recentemente voltei a mencionar o problema da violência em textos bíblicos. Voltei a falar de textos que ninguém usa, e que quando lemos fingimos que ele não estava lá. É mais fácil assim, memorizamos e repetimos apenas textos bonitos e inspiradores, enquanto omitimos educadamente aqueles com os quais não sabemos lidar. Se você faz isso também, não se sinta culpado, eles estão em todas as Bíblias, e se ninguém os lê nas igrejas, deve ter um motivo razoável. Pode ficar com a consciência tranqüila, não é você que é ignorante e não entende a Bíblia, ou que é infiel por não obedecê-la por completo, o problema é o texto que é problemático, vamos admitir.
Se eu achasse isso possível, sugeriria a retirada de algumas páginas da Bíblia como as que veremos abaixo, mas a canonização é algo muito forte do que eu. Aprendemos que o que os antepassados disseram é sagrado, e nós temos que idolatrar a memória dos nossos pais mortos. Claro que eles matavam vacas para Deus porque pensavam que Deus gosta de cheiro de churrasco; claro que eles casavam-se com várias mulheres e ainda tinham concubinas espalhadas por aí; claro que eles tratavam os filhos com parcialidade, dando mais valor aos homens do que às mulheres; claro que eles acreditavam que havia um final de mundo depois do mar, e que os dados (urim e tumim) revelavam a vontade dos deuses... É, sabemos que eles agiam de maneira estúpida em muitos momentos, mas quando o assunto é escrever e escolher quais são os textos sagrados, eles eram infalíveis. (Desculpem a ironia).
Sem nenhuma intenção de alterar o cânon, eu gostaria de falar brevemente de duas passagens complicadas que sempre me vêem à mente quando penso em textos que geralmente não são utilizados nas igrejas. Vou tentar ser honesto com o texto, e procurarei sugerir ao leitor uma maneira de “salvá-los”, isto é, vou ensiná-los a utilizar até esses textos estranhos sem ter que distorcer o significado das palavras. Vamos lá?
Primeiro veja o que se lê no Salmo 137.8-9: “Ah! Filha da Babilônia, que vais ser assolada! Feliz aquele que te retribuir consoante nos fizeste a nós! Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras!”. Comece falando para si mesmo o que acha dessas linhas e responda: Foi Deus quem incentivou o assassinato de inocentes como uma forma de vingança àqueles que fazem o mau? Deve ser aceito o conselho do salmista para que se mate crianças nascidas de pessoas más? Se quiser, tente imaginar como ensinaria pessoas de fé a partir desse texto, e depois leia minhas sugestões.
Agora vem a minha interpretação: A Babilônia foi um grande império do mundo antigo; impérios só são impérios porque dominam os outros; o domínio sob os outros, seja ele político, econômico ou cultura, sempre é realizado com alguma forma de violência, com a imposição da vontade do mais forte sobre o mais fraco. Assim, como nação mais fraca, o reino de Judá foi dominado violentamente pela Babilônia, que certamente matou muita gente, estuprou muitas mulheres, roubou suas posses, tomou suas crianças para serviço forçado, e coisas desse tipo.
Quem escreveu esse salmo? Não precisa pesquisar em lugar nenhum para supor que trata-se de alguém que viveu ou nos dias do exílio ou pouco depois dele. É possível que ele mesmo tenha testemunhado a violência da invasão, ou que tenha ouvido sobre ela de pessoas que a vivenciaram. Esse homem marcado pela injustiça humana então escreve um salmo, que nada mais é que um cântico de louvor. Em sua canção ele deixa fluir toda a raiva que há em seu interior. Ele, uma pessoa como eu e você, ferido pela vida, tem muitos motivos para imaginar a ruína da Babilônia e desejar a desgraça dos seus opressores. Você pode até achar que tal ódio é ruim, que o desejo de vingança é reprovável, mas tem que reconhecer que são sentimentos que já eram de se esperar numa pessoa que passou por coisas assim.
Quem sabe o salmista já via o império Persa pronto para arrasar a Babilônia? Quem sabe ele estava feliz por ver o sangue dos opressores pelas ruas da antiga capital do mundo? Bem, o salmista certamente está equivocado ao desejar vingar a violência com mais violência, mas ele merece nosso respeito pela transparência, pela maneira honesta com que expressou seus desejos no salmo.
O salmo tem um grande valor para mim, mas o que ele está fazendo na Bíblia eu não sei. Mas já que lá está, precisamos nos perguntar como podemos usá-lo sem que sua leitura dê margem para a vingança e a violência. Minhas sugestões são essas: eu repetiria à minha audiência tudo o que acima disse sobre o contexto sócio-histórico do texto. As pessoas precisam entender o momento para que não odeiem o salmista ou o imitem. Depois, eu falaria sobre tais sentimentos reprováveis de maneira aberta, reconhecendo que todos temos tais pensamentos de vez em quando. Pediria para que eles se colocassem no lugar do salmista, que imaginassem a família morta quando chegassem do trabalho, que pensassem na filha estuprada, em si mesmos torturados... Quem não desejaria a morte dos seus agressores?
Nenhum defeito há, sinceramente, em pensar tais coisas. Elas são parte do nosso instinto de defesa, e às vezes queremos sobreviver e defender o que é nosso como qualquer animal. Finalmente, passaria para a conduta cristã, que abomina a violência, que controla os instintos por meio da razão e da fé, e que nos faria reprimir nossa violência. Enfim, eu estaria usando o salmo para que todos saibam quão cruéis podemos ser em algumas circunstâncias, mas me voltaria para Jesus como exemplo de conduta no final. Na verdade eu discordei de tudo o que o salmo disse, mas aproveitei-o sem tentar desculpar sua crueldade.
A conclusão é que as pessoas vão aprender mais sobre a Bíblia. Entenderão que nem todo texto é mandamento, que há imperativos, mas que também há meros exemplos, meras expressões humanas antiquadas que nos ensinam como não devemos agir. Eu preferiria ler um evangelho e falar sobre a não-violência de Jesus, seria bem mais fácil, mas em todo caso, é assim que se usa um texto ruim.
Vamos ao outro exemplo? Leia agora com atenção o que está escrito em Deuteronômio 13.6-11:
“Quando te incitar teu irmão, filho da tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu amor, ou teu amigo, que te é como a tua alma, dizendo-te em segredo: “Vamos e sirvamos a outros deuses que não conheceste, nem tu nem teus pais, dentre os deuses dos povos que estão em redor de vós, perto ou longe de ti, desde uma extremidade da terra até à outra extremidade”, não consentirás com ele, nem o ouvirás; nem o teu olho o poupará, nem terás piedade dele, nem o esconderás, mas certamente o matarás; a tua mão será a primeira contra ele, para o matar; e depois a mão de todo o povo. E com pedras o apedrejarás, até que morra, pois te procurou apartar do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão. Para que todo o Israel o ouça e o tema, e não se torne a fazer segundo esta coisa má no meio de ti”
Meu Deus, o que é isso?!?! Hitler adoraria pregar a partir desse texto. Em poucas palavras ele diz que se alguém discorda da opção religiosa que alguém instituiu para a nação, deve morrer. Não me diga que essa exigência foi feita por Deus, a religião aqui é imposta através do medo, e é exigido que a violência contra o “rebelde” parta da própria família. Já viu isso? Alguma mãe mata o filho que revela-se assassino?
Claro que há desculpas. Eu posso dizer que não saí do Egito, e que por isso o texto não se dirige a mim, e que só um louco acharia que deve obedecer essa lei hoje literalmente. Verdade, mas então nenhum texto é pra nós; os destinatários dos textos bíblicos morreram há milênios e nós escolhemos obedecer alguns textos por conta própria. Não sabemos se todos os leitores saberão separar as coisas. Eu também queria ver se há alguém capaz de cortar o pescoço da filha que um dia chegou em casa dizendo que está gostando de freqüentar um centro de umbanda. Um fanático desses, se existir, tem que ir pra cadeia.
Geralmente nós nos colocamos no lugar de Moisés, mais que um homem de Deus, um herói querendo purificar a nação da idolatria; entretanto nos esquecemos dos outros, que não estão tentando contaminar o mundo com o demônio, só estão crendo de forma diferente, em uma divindade tão invisível quanto a de Israel. Este texto tentou implantar um regime opressor, acabar com a liberdade religiosa que Deus deixou, e por tudo isso é muito mais difícil salvar essas palavras do que aquelas do salmo 137, pronunciadas por uma vítima, e não pelo Hitler judeu.
Mas vamos lá; o que fazer com uma página dessas? Pra começar, eu já admito que não usaria esse texto, pois não conteria minha língua e acabaria sendo deselegante. Mesmo assim, supondo que eu fosse pregar numa igreja sobre esse texto...
Difícil, eu fiquei pensando uns dez minutos e não achei formas de salvar esse manifesto do regime nazista. Porém, eu falaria a verdade nua e crua e antes que me expulsassem do altar tentaria ao menos salvar o sermão. Leria textos como João 8.3-9 (Aquele que dentre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela), onde Jesus desobedece a Torá para favorecer a vida, ensinando-nos o primeiro critério para uma boa hermenêutica. Talvez seja este um bom momento pra falar sobre porque não guardamos o sábado nem nos circuncidamos; o Antigo Testamento possui sim, ainda que não se admita, menor peso em nossa religiosidade. Falaria então do amor de Jesus e nunca mais mencionaria de novo Deuteronômio 13.
Desculpe a indelicadeza em certos momentos, é que escrevo os textos de uma vez, às vezes no calor das emoções, e depois limito-me a corrigir erros de digitação. Mais que estudos, encaro essas reflexões não exegéticas como formas de arte, onde expresso-me com transparência e improviso. Desculpe também se não consegui atingir o objetivo de ensiná-lo a usar todos os textos difíceis de maneira positiva. Espero, todavia, tê-lo ensinado que na Bíblia não é só Deus quem fala. Se a Bíblia é um livro divino, não é porque nele só há coisas boas, mas porque de alguma forma o Espírito selecionou conteúdos que podem nos ensinar. Textos como os que lemos hoje nos ensinam o que nunca fazer, e graças a Deus que temos discernimento para julgar tais coisas.
8 comentários:
Fala Anderson olha eu aqui de novo, será que o Anônimo vai aparecer por aqui, para ler este texto, bom tomara, que pelo menos ele deixe o nome.
Bom brincadeiras à parte, muito bom este texto, concordo que hoje só pregamos o que nos convém, os textos bonitos, queria muito ver uma exposição de cantares por exemplo da forma que é o livro, sem alegorais de que é a declaração do noivo (Cristo) para a sua noiva (igreja), mas os sentimentos do autor por uma mulher. Acho dificil, primeiro por que vivemos uma teologia emburrecida, que não tem sentimentos, e segundo que seguimos a teologia agostiniana que era um pensador platonico de que o espirito é o que há de mais puro no mundo e o corpo é a prisão desta alma..abração
Pr. Fábio Bezerril
Ha ha ha, cara, desse jeito vc vai escandalizar os crentes!
Legal que estão gostando do texto. Esse é bem direto né?
O meu amigo Fábio está certo ao dizer que nós só pregamos o que nos convém. Veja que embora dizemos que somos guiados por Deus e sua Palavra, na verdade nós escolhemos o que Deus deve falar. Meu objetivo aqui era exatamente mostrar que esses textos geralmente omitidos estão aí, e que nós temos de encará-los, ou para falar tudo o que a Bíblia tem pra dizer sem calá-la, ou para admitir que eles não deviam ter entrado no cânon mesmo.
Xico, legal que achou o blog e já comentou meu texto. Que ele vai escandalizar alguns eu sei, veja os comentários ao texto anterior, ou de um texto de fevereiro chamado "como usar a Bíblia para o mal". Eu tenho inimigos crentes pode?
Mas eu me preocupo é com bons argumentos, informações que demonstram nossos erros, e isso até agora os meus inimigos não possuem. Então convido você a também falar a verdade escancaradamente no seu blog (lero-leroeteologia.blogspot.com). E indiquemos os bons trabalhos uns dos outros pra mudar a mentalidade daqueles que querem servir a Deus honestamente.
olá mestre,
" É muito bom não esquecer que as Escrituras possuem pasagens escuras e ambiguidades no texto sagrado. Não temos necessidades de apagá-las nem de rechaçá-las, mas sim de reconhecê-las para evitar leituras radicais ou falsas. O melhor antídoto ante o fundamentalismo radical e violento é reconhecer as limitações da própria tradição religiosas e até seus perigos. Esse reconhecimento nos vacina contra a arrogância de uma tradição religiosas sobre as demais e nos impulsiona a moderar nosso sentimento e não relaxar a vigilância crítica. Ajuda-nos também a ter uma atitude cuidadosa, reservada e crítica, contrária ao literalismo, em relação ao texto e às imagens hostis que cada religião forjou em relação às outras.
Poxa, quando eu crescer quero fazer sermoes que nem os seus kkkk.
Parabéns pelo seu blog. Sou sua nova fiel seguidora e comentarista de seus estudos!
Perfeito Anderson (meu xará). Tenho comentado pouco por aqui mas leio todos os seus textos. Acho sempre o máximo. Este então, Magnífico. É do "automático" humano dizer sempre o que convém. Eu mesmo nunca havia pensado nisso que acabo de ler! Me fez refletir bastante e entra para os meus favoritos! Muito bom.
Abraços,
Anderson Lima (também)
Vocês fazem a alegria do escritor quando lêem seus textos e comentam. Muito obrigado.
O comentário do João foi muito útil, completou minhas palavras. Fiquei pensando se deixei a impressão de que acredito que deveríamos alterar o cânon bíblico. Na verdade, como estudiosos dessa literatura, eu queria mais textos no cânon. Incluiria na minha Bíblia textos de Qumran e de Nag Hammadi, e outros não canônicos que valem a pena. Mas a igreja não precisa ler tudo isso não acham? Deixemos as coisas como estão... eles vão continuar não lendo e não explicando os textos obscuros.
A Thalyta também foi muito gentil. Gostei principalmente dos seus comentários ao texto anterior, que foram inteligentes e eficazes. Como soube do meu blog?
Mas Thalyta, eu queria lhe dizer que raramente eu "prego" nalguma igreja. Mas pode acreditar que quando eu falo da Bíblia eu não meço as palavras pra ficar bem com todos. Digo o que penso como aqui no blog.
E esse "xará" então!?!? Coincidência. Parece que mora no rio não é? Valeu por acessar meu blog espero ajudar-lhe com meu trabalho. São polêmicos e geram inimizades, mas estão atingindo o objetivo.
Um grande abraço a todos. Sempre imagino como seria conhecer leitores como vocês e poder discutir nossas idéias em conjunto. Mas se isso não acontecer pessoalmente, que a internet nos dê tal oportunidade.
Oi Anderson, conheci o seu blog no sabado a noite, com uma visita de um amigo meu. ELe está cursando Teologia e as mensagens dele está cada vez melhor, entao sugeri que ele fizesse um Blog, então ele comentou sobre o seu blog: Compartilhando no Blog. Acho que você é professor dele, ou já foi uma coisa assim, nao me lembro de direito rs. Ele estuda na Betesda. Foi mais ou menos assim que te conheci rs.
Obrigada pela visita no meu blog, e por responder meu comentario :)
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