Permitam-me
iniciar este ensaio falando de seu autor: sou cientista da religião,
especialista em literatura bíblica, e atuo também como crítico literário que
estuda algo de linguística, semiótica, e lido quase sempre com textos
clássicos. Flerto ainda com a historiografia, especialmente com a teoria da
história, e na prática trado do mundo romano, do judaísmo formativo e do cristianismo
primitivo. Por fim, sou bacharel em música, embora minha prática ao violão
tenha se tornado apenas um hobbie eventual
atualmente. Não manuseio essas áreas do conhecimento de maneira
individualizada, mas por serem partes do que sou como indivíduo e pesquisador,
cada trabalho que produzo acaba refletindo simultaneamente vários desses
conhecimentos. E por qual razão era importante fazer essa apresentação?
O objetivo não é legitimar o
conteúdo do ensaio através do elogio ao seu autor (embora seja difícil negar
que isso sempre está presente), mas explicar minha antiga produção, quase
sempre voltada para o cristianismo, e justificar alguns dos argumentos que
empregarei. Por conta dessa experiência acadêmica explicitada, e de outras
experiências pessoais que aqui deixo implícitas, quase sempre disserto sobre
temas ligados à Bíblia, tecendo duras críticas às práticas religiosas da
atualidade ao expor as inadequações de seus discursos. É assim: falamos mal principalmente
daquilo que somos, dos movimentos sociais e religiosos de que somos ou fomos
parte. Mas se porventura fiz a alegria de outros ao criticar o cristianismo e
em especial os movimentos evangélicos, agora proponho um breve desvio nessa
carreira para falar do kardecismo, com o qual tive apenas algum contato
indireto.
Deixo exposta minha parcial ignorância
quanto ao tema, mas ainda assim faço questão de me expressar com liberdade,
expondo pontos de vista pessoais que, obviamente, podem ser contestados por
quem se julgar mais apto. Farei três breves refutações ao kardecismo, explicando
os principais motivos pelos quais tal escolha religiosa não me agrada. Essas
refutações (Deus me livre!) não seguirão os moldes das argumentações cristãs,
apologéticas, com citações bíblicas e afirmação de dogmas tradicionais que
classificam o diferente como herege; escolho outro caminho cuja validade e
eficácia caberá ao leitor julgar.
1 – Uma religião pseudocientífica
A primeira refutação que faço diz
respeito às pretensões do kardecismo à racionalidade, à cientificidade. Hoje,
como cientista da religião, considero toda tentativa de se empregar ciência na argumentação
religiosa inapropriada. Em geral, os dados científicos, as teses, nada
acrescentam à fé, que sempre está baseada em fatores cuja comprovação
científica é impossível. Por isso começo minhas refutações ao kardecismo desse
ponto.
Considere: os pontos mais
importantes de uma religião são sempre os não empíricos. Ninguém vai provar a
existência ou inexistência de Deus, de espíritos, de reencarnações, nem vai ter
como afirmar se Jesus ressuscitou ou não. Não é possível demonstrar que um
livro sagrado foi realmente composto sob inspiração divina, se um oráculo recebido
é real ou imaginário, e assim por diante. A lógica e a racionalidade humanas
são incompatíveis com essas experiências religiosas, pelo que quase sempre,
quando alguém emprega argumentos desse tipo na religião, está tentando
legitimar alguma coisa, impressionar os destinatários do sermão, tornar mais eficaz
o apelo do discurso. Além disso, nesse tipo de argumentação pseudocientífica
sempre há limitações; o religioso faz escolhas dentre as muitas afirmações
feitas num determinado campo do conhecimento acadêmico, e alcança a admiração dos
leigos que não notam que há muitas outras afirmações científicas contrárias à
sua religião que não entraram no sermão. Assim, os usos que as religiões fazem
das ciências são quase sempre interesseiras, limitadas; melhor seria se as
religiões se mantivessem apoiadas nas suas experiências fé naturalmente
incontestáveis, convidando as pessoas a experimentá-las apenas.
O
kardecismo se apresenta exatamente como uma religião moderna, racional, crítica,
que supera algumas limitações da linguagem religiosa antiga, considerada
simplória, cheia de mitos e superstições. Que as religiões antigas são cheias
de mitos e superstições é verdade, mas que o kardecismo é racional e moderno,
isso já não é mais verdade. O kardecismo é uma religião nova, nasceu na França na
primeira metade do século XIX, justamente no centro mundial do iluminismo e de
expoentes filosóficos como Diderot (1713-1784) e Voltaire (1694-1778), e como
era de se esperar, produziu um discurso adequado à mentalidade daquele mesmo
ambiente que com poucas exceções, ainda exaltava as virtudes do conhecimento
como se ele fosse a saída para a construção de um mundo ideal. Essa linguagem
iluminista era inevitável, e até necessária para uma nova religião que
precisava se firmar num mundo cujas convicções filosóficas construíam sujeitos avessos
às religiões de modo geral.
Para
os nossos dias, essa linguagem pseudocientífica, pseudorracional, comum aos
textos do kardecismo originário, pode até agradar a uma classe média que lê Superinteressante, assiste ao Fantástico, e se considera “antenada”
quanto aos avanços das ciências, mas é difícil que verdadeiros cientistas ainda
se iludam com essas pretensões antiquadas. Julgo que o kardecista de hoje
precisa renunciar a essa linguagem e se prender a seus contatos mediúnicos se
quiser ser levado a sério. A estratégia de sobrevivência do kardecismo
originário se tornou um problema para o kardecismo do século XXI, mas se ainda
impressiona a alguns, é porque nas sociedades humanas ainda existem resquícios
daquele iluminismo superado há mais de dois séculos, que sobrevive na ambição
cientificista daqueles que não são cientistas.
2 – O sincretismo religioso no
kardecismo
Além de ter nascido num período
imediatamente pós-iluminista, de ter produzido um discurso que parecesse
atraente aos racionais daquele tempo,
temos que levar em conta que o kardecismo nasceu numa França cristã. Se o
ateísmo era uma boa opção (do tipo religiosa) para alguns, outros seguiam mantendo
suas tradições católicas romanas ou protestantes calvinistas (esses últimos chamados
de huguenotes na França). Como toda
religião que nasce, o kardecismo naturalmente também se ocupou de se fazer
atraente aos religiosos, produzindo um tipo de sincretismo particular entre cristianismo
e espiritismo.
Para falar mais desse tipo de
sincretismo observável no nascedouro das religiões, lembremos que o
cristianismo nasceu como uma forma de judaísmo, e em vez de criar uma ruptura
brusca e radical, fê-lo de maneira gradual e sincrética. Isto é, o cristianismo
tentou ser o novo judaísmo, adotou suas tradições e memórias, seus livros
sagrados por mais que destoassem dos ensinos de Jesus, e só se tornou uma nova
religião quando o próprio judaísmo o rejeitou. O mesmo fez o islamismo: o
profeta Maomé escrevia em Árabe e no século VI, mas fez questão de se incluir
numa tradição literária e religiosa judaico-cristã, dando em sua própria
religião um lugar para os patriarcas hebreus, para Moisés, para os profetas do
Antigo Testamento, para Jesus, e para os textos sagrados deles todos eles.
Certamente é possível dizer algo parecido sobre o protestantismo em relação ao
catolicismo, sobre os movimentos evangélicos em relação aos protestantes
históricos etc.
Deveras, se uma nova religião nascesse
numa França cristã como aquela do século XIX e simplesmente afirmasse que tudo
o que o cristianismo já dissera era mentira, sofreria ataques e poucas chances
teria de subsistir. Novamente, notamos que o kardecismo tomou o caminho certo,
porém, esse mesmo caminho é sua fraqueza para o observador de hoje. Tenho em
mente a obra de Allan Kardec chamada “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, publicada
em Paris em 1864. Essa obra dá conta desse sincretismo, trata dos evangelhos
canônicos do Novo Testamento sob a ótica da doutrina espírita, mas comete
inúmeros equívocos que justificam minha refutação.
Falando agora como especialista no
Novo Testamento, é fácil notar que o autor, mesmo que afirme escrever sob orientação
dos espíritos, não conhece o Novo Testamento grego. Ele deve ter lido a Bíblia
que tinha em mãos, em língua francesa, e adota várias teorias sobre autoria dos
livros bíblicos que a crítica moderna desacreditou. Se o conteúdo da obra de
Kardec é realmente um produto espiritual, diríamos que pouco conhecimento
bíblico possuíam os tais espíritos. Se nalgum ponto algum personagem célebre
das narrativas bíblicas se expressa por meios mediúnicos (um apóstolo falando
do evangelho que traz seu nome, por exemplo), temos que reconhecer a falsidade
da autoria, posto que há muito se sabe que o tal apóstolo não escreveu aquele
texto canônico, nem tampouco dera ao seu primeiro texto o sentido que agora é
sugerido na obra espírita.
É
por notar limitações dessa espécie que eu digo que o sincretismo é uma fraqueza do
kardecismo. Se Kardec tivesse nos escrito sobre suas experiências com espíritos
desencarnados, sobre sua crença na reencarnação, nada teríamos a fazer, a não
ser aceitar ou rejeitar suas ideias e imperativos. No entanto, como ele falou
sobre o cristianismo, colocou-se nas mãos dos estudiosos do cristianismo e da
literatura bíblica, que hoje encontram as imprecisões de seus argumentos
vendo-o como um leitor da Bíblia em harmonia com os conceitos e tradições
cristãs conhecidos por qualquer leigo de meados do século XIX. Esses estudiosos
têm, a partir daí, motivos para levantar dúvidas sobre a credibilidade até
mesmo das afirmações de caráter religioso e não verificáveis que o mesmo autor
deixou. Pior ainda seria se os tais estudiosos, teólogos no caso, aceitando a
possibilidade de que tais equívocos sejam mesmo frutos de uma experiência mediúnica,
questionar a competência dos espíritos que aconselharam Kardec, o que colocaria
em dúvida tudo o que o autor produziu.
Isso
nos leva à minha terceira refutação, que não é tão complexa quanto as duas
primeiras
3 – A inaptidão artística dos
espíritos
Entra em pauta minha sensibilidade
artística, decorrente da minha formação como música. Me desprendo agora do
cientista da religião e também de Allan Kardec, para expressar em termos bem
pessoais, minha opinião sobre as produções artísticas espíritas, aquelas cuja
autoria é atribuída a espíritos que atuaram por meio de médiuns (ativos).
Reconheço que é difícil discutir a
fonte de algumas manifestações espirituais tais como a psicografia. Não podemos
simplesmente dizer que sempre são fraudes. Porém, ainda que se não se possa
desmentir a própria mediunidade, a intervenção espiritual na criação de textos,
quadros, músicas etc, ainda é possível avaliar o resultado, do mesmo modo como
avaliei o uso que o “O Evangelho Segundo o Espiritismo” fez do Novo Testamento
e das tradições cristãs. Nesses casos, a suposta espiritualidade ganha
materialidade, e nessa forma pode ser examinada.
Sempre
fiz questão de dar atenção a tais manifestações, porém, senti falta da surpresa,
da admiração que as grandes obras de arte costumam nos proporcionar. As cartas
mediúnicas e os romances espíritas geralmente atuam emocionalmente sobre seus
receptores, todavia, ainda não tenho conhecimento de um crítico literário
renomado que tenha reconhecido o valor literário de uma dessas obras a ponto de
dar-lhe lugar entre os “clássicos” canônicos. Isso me decepciona, pois, se há
realmente um espírito por trás do livro, tudo me leva a crer que infelizmente
ele não é artisticamente superior a Shakespeare, a Dostoievski, a Pessoa, e até
a Paulo Coelho. Até onde eu sei nenhum especialista em artes plásticas
reconheceu os traços típicos de um grande artista desencarnado numa pintura
mediúnica, e pior, pela falta de atenção dada pelos críticos a tais obras,
imagino que nenhum médium legou à humanidade pinturas tão primorosas quanto a
de um Caravaggio, de um van Gogh, Blake, Monet...
Outra
vez, só duas conclusões me parecem possíveis, embora eu gostaria de conhecer
outras: Primeiro, pode-se supor que tais experiências são falsas, que não há
verdadeiros espíritos por trás dessas ações. Que psicólogos e psiquiatras
assumam a partir daqui a tarefa de explicar como podem os homens produzir espontaneamente
essas obras para as quais afirmam ser inaptos através de seus estados alterados
de consciência. Segundo, pode-se tentar manter a ideia de que há espíritos por
trás dessas criações, mas nesse caso, volto a dizer que tais espíritos não
exibem habilidades e inteligências tão admiráveis quanto pretendem os próprios
espíritas, pelo contam com as mesmas limitações humanas. Se essa segunda
conclusão é a correta, será que se deve dar tanto crédito ao que tais espíritos
dizem? Ao que parece, os mais sábios ou evoluídos deles não costumam dar-se a
tais exibições.
Por
essas razões ainda prefiro ouvir os conselhos humanos que os dos espíritos, prefiro
ler os clássicos que os romances espíritas, visitar as exposições dos grandes
artistas do que ter quadros produzidos mediunicamente, e confiaria minha saúde
a um cirurgião diplomado nalguma universidade humana em vez de me submeter a
uma cirurgia espírita. Essas sãos as minhas escolhas atuais; entende-as como
resultados das minhas reflexões, e não como convites aos meus leitores. Sobre
as cirurgias realizadas através de experiências mediúnicas prefiro não me
estender. Deixo aos médicos a tarefa de as criticar, embora acredite que nalguns
aspectos essas intervenções espirituais na matéria se assemelhem àquelas artísticas
que acima critiquei.
Considerações Finais
Espero que tenha ficado claro que
não estou me colocando contra a religiosidade espírita, mas refutando alguns
dos argumentos que o kardecismo emprega para se legitimar nas sociedades
humanas até hoje. Como tentei dizer desde o começo, faço isso constantemente
quando falo do cristianismo, e nem por isso qualquer dos meus argumentos levam
as pessoas a abandonar suas igrejas e sua fé em Jesus. Do mesmo modo, os
kardecistas que porventura se depararam com esse texto devem saber que não
procuro os conduzir à conversão. Seria
bom que, se alguma das minhas refutações parece razoável ao leitor kardecista, ele
a desenvolvesse no seio da sua religião, para eliminar tais limitações que nos
dias atuais são contraproducentes à experiência religiosa e aos ensinamentos
morais espíritas que, sem dúvida, têm o seu valor.
5 comentários:
Onde estão as referencias bíblicas? Sou pastor evangélico e lhe digo que para qualquer refutação é necessário estar pautado na palavra de Deus. Isso é fato!
Olá caro leitor!
Desculpe, não entendi muito bem sua observação. Não vejo porque deveríamos citar a Bíblia nesse caso. Meu texto não quer ser uma apologética cristã, como aquela estudada em certas instituições religiosas mais conservadoras. Uma pessoa sem religião também pode refutar as afirmações alheias sem nunca ter lido a Bíblia, ou não?
Procurei demonstrar que há incoerências internas à lógica da religiosidade kardecista. Minha posição é bem pessoal. Também não quis dizer que o kardecismo é falso e a Bíblia verdadeira; esse não é o meu tema, mas parece que é o que o caro leitor procurava.
Em todo caso, me desculpe, mas o que você disse não é um fato. Mesmo assim, agradeço sua atenção e espero voltar a conversar noutros comentários.
Anderson.
Olá Anderson!
Gostei muito do texto!
Sou Kardecista e venho comentar sobre alguns pontos que discordo.
A primeira refutação é pouco considerável se formos analisar que todas as religiões agregam a fé ou algum outro tipo de raciocínio não cientificamente comprovado.
E em relação ao lado científico kardecista acho a única coisa que o sustenta. Pôs acreditar em uma religião na qual relata supostos fatos que são impossíveis na visão científica. É a mesma coisa que dizer que vai pra esquerda e pra direita ao mesmo tempo sobre uma única perspectiva.
Na segunda, gostaria de conhecer esses equívocos que embasam sua refutação diante da análise kardecista sobre o Novo Testamento.
E a terceira concordo completamente.
Amigo, nunca, impossível, lógica?!! Paradigmas. Os grandes passos foram dados por sonhadores, questionadores!muitos tidos como loucos hereges. Iestein foi ridicularizado no início. E cem anos depois 95% não tem a menor ideia do que foi provado. E apenas uma 5℅ sente como verdade. Enfim, boa viagem amigo
Amigo, nunca, impossível, lógica?!! Paradigmas. Os grandes passos foram dados por sonhadores, questionadores!muitos tidos como loucos hereges. Iestein foi ridicularizado no início. E cem anos depois 95% não tem a menor ideia do que foi provado. E apenas uma 5℅ sente como verdade. Enfim, boa viagem amigo
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