Sabemos
que os textos que hoje compõem a Bíblia são todos anteriores ao cristianismo como
religião independente. Os mais recentes deles datam das primeiras décadas do
segundo século, período em que pretensos discípulos de Jesus ainda estabeleciam
as fronteiras identitárias que enfim distinguiriam os cristãos dos judeus.
Embora os judeus já possuíssem sua coleção de textos sagrados e tenham sido os
verdadeiros autores desses textos, a Bíblia que hoje lemos é o resultado de um
processo de escolha, canonização e divulgação que se deu pelas mãos dos
cristãos. Assim, ainda que os textos em questão sejam mais antigos que o
cristianismo, e que os judeus também tenham desenvolvido suas próprias
tradições interpretativas desses livros, pode-se dizer que o estabelecimento do
cânon bíblico que o ocidente ainda respeita se deu paralelamente à instituição
do cristianismo como religião institucionalizada. O estabelecimento de um cânon
bíblico não era o início, mas o final de um período de elaboração e uso de
textos que em geral são selecionados pelo gosto popular e pela voz de certas
“autoridades” até receberem o selo da instituição. E se essa instituição em
determinado momento da história adquiriu o poder de determinar quais textos
eram os sagrados e quais os profanos, não causa nenhuma surpresa que ela também
tenha adquirido o poder de mediar a leitura desses mesmos textos entre os
“leigos” que como vimos, eram quase sempre analfabetos.
A
leitura bíblica veio a desempenhar um novo papel relevante na história da leitura
desde a Idade Média, estabelecendo a leitura silenciosa como uma prática comum.
Ainda que os textos continuassem sendo conhecidos pelos leigos através da mediação
de leitores nos cerimoniais litúrgicos, sermões e proclamações públicas, no interior
das igrejas, na vida monástica, a Bíblia e outros textos religiosos eram lidos silenciosamente,
murmurados e meditados cuidadosa e repetidamente.
A leitura e a cópia dos textos sagrados se transformam em exercícios religiosos
como a oração ou o jejum, mas o uso da Bíblia nesses séculos de devoção religiosa
vai além das práticas de leitura, pelo que os livros em sua materialidade ganham
novo status. O livro religioso passa a valer por si, como objeto sagrado, amuleto
cuja posse é desejável mesmo entre aqueles que não a podiam ler por inaptidão com
o latim com a escrita em si. Essa estima em relação à própria materialidade dos
textos bíblicos é um fenômeno que ainda testemunhamos no mundo contemporâneo, e
que possui grande relevância como forma de mediação religiosa da leitura. Queremos
dizer que desde o momento que um leitor toma uma Bíblia em suas mãos, a presença
de instituições religiosas se faz notar e busca condicionar a leitura. Voltaremos
a essa questão outras vezes, mas pensemos provisoriamente no impacto que capas de couro
com belas letras douradas que anunciam a sacralidade do texto, e a legitimação dada pelo nome de alguma "autoridade", desempenham previamente
sobre um leitor iniciante.
Voltando
à Idade Média, homens letrados e influentes ligados às instituições religiosas manusearam
a Bíblia com frequência e elaboraram leituras condizentes com suas respectivas realidades,
além de desenvolverem métodos de análise e interpretações que influenciariam
povos e gerações diversas na posteridade. Já por volta do século III, pensadores
como Clemente e Orígenes em Alexandria, tornaram-se célebres entre os “pais da
igreja” afirmando que nos textos bíblicos havia mais do que aquilo que chamavam
de “sentido literal”, e insistiram na necessidade de se buscar um sentido místico ou alegórico das escrituras. Entre fins do século IV e início do V, o
influente Agostinho faria da interpretação alegórica um modelo para a leitura
bíblica medieval, assim como ajudaria a estabelecer o valor normativo da
tradição eclesiástica na interpretação. Deveras,
durante a Idade Média a Bíblia se tornou um documento misterioso, e seus aspectos
literários estiveram em segundo plano, sufocados pelos acentos místicos cujo acesso
estava limitado a apenas poucos privilegiados, membros do clero capazes de
lidar com a Vulgata em língua latina.
É
bom ressaltar de antemão que essa interpretação alegórica da Bíblia não
desapareceu por completo com o nascimento de abordagens críticas, pelo
contrário, ela continua presente em grande parte das leituras feitas por leigos
e até por líderes religiosos mais desvinculados dos pressupostos acadêmicos de
leitura. Acontece que a leitura do tipo “literal”, que procura pelo significado
consensual presente nas palavras e frases, ou por seu sentido imediato,
histórico, pretendido pelo autor, torna
o texto inútil para as comunidades leitoras que se reuniram em torno de um
texto em busca de mensagens religiosas. Por um lado essas comunidades de fé já
recebem o texto por intermédio das instituições religiosas, que atestam a
sacralidade de cada palavra nele contida, pelo que rejeitar o texto deixa de
ser uma possibilidade. Por outro lado o texto divino precisa ter algum valor
pragmático, precisa servir à comunidade leitora que requer dele mensagens úteis
em seu próprio mundo. Por conta disso, segue existindo o impulso pela produção
de leituras “mais que literais” do texto bíblico, cujos resultados podem ser
questionados pelos críticos literários que a considerariam más leituras, mas
que servem aos interesses da comunidade leitora e acabam por dar maior
legitimidade ao texto, que lhes parece mesmo divinamente criado e capaz de
falar com leitores de todas as gerações e em quaisquer circunstâncias. Vejamos como John B. Gabel e Charles B. Wheeler
constataram esse mesmo fenômeno de leitura nos primórdios do catolicismo romano,
quando as memórias literárias de um tipo de judaísmo marginal formado por
camponeses passavam a ser lidas sob novas condições sociais, políticas,
econômicas e religiosas:
Como poderiam os
ensinamentos de Jesus, dirigidos aos seus simples seguidores galileus, ou o
conselho de Paulo, dado a tênues comunidades cristãs espalhadas aqui e ali no
mundo antigo, ser aplicados a uma Igreja altamente organizada, opulenta e
poderosa, cujo centro era Roma? Mais uma vez, era preciso interpretar a Bíblia
com extrema liberdade para que a estrutura eclesiástica – tão diferente da
Igreja primitiva descrita nos Atos – encontrasse sua garantia na palavra de
Deus. (2003, p. 236)