Não faz
muito tempo que surgiu na internet uma árdua discussão sobre o conceito de “horizonte
utópico”. Um vídeo do pastor Ricardo Gondim empregando o conceito foi divulgado,
e muitos foram os que se colocaram contra o que ele dizia. Eu não gostaria de
tomar partido nesse embate, mas acho que posso contribuir a meu modo com a
discussão.
O que
aconteceu era previsível. Ricardo Gondim sempre foi admirado como pregador
evangélico até que seu discurso mudou, ficando inadequado no tradicionalismo
evangélico e galgando adversários ferrenhos. Ele passou a ser chamado de “herege”.
A mudança no seu discurso é natural, ele foi estudar, fez mestrado, cresceu
como pessoa, conheceu pensadores da religião de fora do seu círculo
tradicional... Em todo processo de aprendizagem somos confrontados,
transformados, e para pessoas que como ele, falam em público com frequência,
isso é um risco. Gondim, todavia, possui uma grande virtude; mais do que um
pensador, ele é corajoso, e não se importou com o prestígio que porventura tinha,
nem com a repercussão negativa de suas novas posturas. Passou a falar o que
pensava comprometido com a verdade (que pode ser transitória neste caso), coisa
que a grande maioria dos líderes religiosos não fazem, por medo de perder o que
construíram. Então, se há uma crítica a fazer a Ricardo Gondim, talvez seja
esta: ele expôs suas ideias publicamente cedo demais, e possivelmente faria com
mais cautela se desse tempo para que tais ideias amadurecessem. Mas minha
crítica não tem tanto valor, já que faço o mesmo, recebo as críticas (não
tantas já que não sou tão conhecido na mídia), e mudo de ideia frequentemente
sem nenhum constrangimento.
No caso do “horizonte utópico”, Gondim disse (e
sempre há o risco de entendermos mal a questão quando vemos um texto ou vídeo
fora de seu contexto existencial) que o conceito se aplicava à volta de Cristo,
ou seja, que a promessa de que Jesus voltaria glorificado à terra tinha a
função de motivar, incentivar, dar esperança àqueles que creem. Segundo o
conceito, que supostamente ele herdou do teólogo Jürgen Moltamnn, essa
esperança seria utópica, permaneceria sempre no horizonte, o que, convenhamos, obviamente
suscitaria sentimentos violentos e pouco cristãos em muitas audiências. Gondim
sabe muito bem que lida com um público fundamentalista, que não sabe ler a
Bíblia a não ser de maneira literal. Ele sabia que estava comprando brigas.
Agora ele
multiplicava ainda mais o número dos seus rivais. Os fundamentalistas passaram a
demonizá-lo na internet, e no fim das contas, todo o embate mostrou-se pouco
produtivo. Primeiro, não é possível discutir essas questões com os
fundamentalistas, que citam versículos como se fossem provas históricas e
científicas de tudo o que eles creem. Os fundamentalistas não sabem ler a
Bíblia, e jamais seriam convencidos a não ser que aceitassem passar um bom
tempo sentados em salas de aula para aprender a ler. O pastor Ricardo Gondim pode
não tido a intenção, mas questionou a “confiabilidade” (equivocada) que os
evangélicos atribuem ao texto bíblico, acabou alegando que o “contrato” que há
entre Deus e os cristãos é um mero simulacro, e dessa forma deu a eles um
motivo para atacar, para expressar toda sua intolerância. Eles agora podiam
justificar sua violência como sendo uma reação aos ataques heréticos empreendidos
pelos demônios; eles podiam dizer que estavam numa “guerra santa”.
Por sua
vez, Gondim também estava errado. O conceito do “horizonte utópico” é útil, mas
não nesse caso. Assim como os fundamentalistas, ele também não fez um bom uso
do texto bíblico, que concordemos ou não, afirma a volta literal do Cristo.
Essa é a fé expressa pelo texto, é sua teologia, e por mais que o cumprimento
dessa promessa nos pareça tardio ou improvável, os leitores de fé e o próprio
texto acreditam nele. Nesse caso, temos um horizonte, um motivo para esperar e
para se inspirar, mas não poderemos esperar que os cristãos aceitem o uso do
termo “utopia” para descrevê-lo. A Bíblia nos traz outros “horizontes utópicos”,
como por exemplo, quando em 1Pedro lemos “Sede santos, porque eu sou santo”.
Nesse caso, todo leitor de fé sabe muito bem que nunca poderá ser santo igual a
Deus, mas aceita o convite para continuar procurando a santidade. Pode ser que
o alvo nunca seja atingido, e nem por isso dizemos que Deus nos fez um convite
falso; o próprio leitor sabe que o objetivo do texto é oferecer um motivo para
sermos melhores, mas não espera se tornar um deus.
Certamente
não foi o pastor Ricardo Gondim o criador das ideias pelas quais agora é
atacado; o problema com ele é especial porque antes ele havia sido um porta-voz
evangélico, e as expectativas do público evangélico são frustradas quando o “pastor”
passa a falar de coisas que não coincidem com o que eles gostam de ouvir.
Também é relevante que, embora Gondim tenha mudado, evoluído, essa nova
consciência que assumiu ainda não encontrou lugar apropriado. Embora não o
conheça bem, suponho que seu modo de vida não tenha sofrido mudanças na mesma
proporção, suponho que sua igreja continue trabalhando segundo o “antigo”
modelo evangélico, e que seu público (ideal) ainda possa ser rotulado como “evangélico”.
A partir de minha própria experiência, digo que entendo um pouco desse processo,
pelo que posso dizer que as mudanças ideológicas se sucedem primeiro, puxando
atrás de si um longo caminho de renovações que deve influenciar toda a vida, as
relações sociais, familiares, profissionais etc. Gondim está no processo, sofrendo
com ele, é verdade, mas espero que apesar dos erros e retaliações, tenha a
força para continuar o que já começou. A igreja cristã precisa disso.
Quanto
aos fundamentalistas, e provavelmente muitos dos meus leitores estão entre eles, desejo
que também enfrentem crises como essas, que aprendam, que cresçam. É
decepcionante descobrir que nossa fé estivera baseada em fantasias, eu sei, mas
não há outro caminho para aqueles que querem amadurecer na fé. Enquanto os
falsos teólogos, líderes cristãos, continuarem usando suas verdades
indiscutíveis para justificar o ódio, pouca esperança há de que essa igreja venha
a se salvar da estupidez que lhe é peculiar, e que só ela não vê.