Há algumas semanas eu li em sala de aula juntamente alguns dos meus alunos do STBI (Seminário Teológico Batista Independente) o texto da “Multiplicação dos Pães” de Mateus 14.13-21, e tive uma agradável surpresa. Confessei aos meus companheiros de leitura que eu não esperava muito dessa passagem, mas que ela me surpreendeu sobremaneira. Empolgado, meditei novamente sobre ele, repetindo as “descobertas” anteriores aos alunos do ICEC (Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos). Dei seguimento ao trabalho escrevendo sobre o texto e seu contexto próximo, num trabalho de longo prazo que venho produzindo sob o título de “Teologia do Evangelho de Mateus”. E ontem, dia 10 de Julho de 2011, voltei a falar sobre o assunto na “Comunidade Cristã Palavra e Vida”, tendo a alegria de compartilhar com outros a surpresa e o aprendizado que este texto me proporcionou. Hoje acordei com o texto em mente e pensei em compartilhar também com os leitores deste blog estas mesmas descobertas.
Não vou transcrever o texto bíblico aqui, mas sugiro que você não conte com sua memória apenas. O ideal é que o leitor vá à sua Bíblia para ver com seus próprios olhos o que estou observando no texto, pois assim seu entendimento, aprendizado e memorização, serão bem melhores. Todos já lemos e ouvimos falar desse texto, mas isso não basta, é preciso um novo olhar, e por isso gasto um parágrafo com essa preocupação didática.
Começo falando do meu método interpretativo. Eu fui influenciado nos últimos anos (graças às preciosas indicações bibliográficas do professor Paulo Nogueira da Universidade Metodista de São Paulo)[1] pela Narratologia, que é um método para a interpretação de narrativas. Neste caso, uma simples análise do “tempo narrativo” administrado pelo autor do texto é capaz de nos revelar quais são os temas mais relevantes e quais são os temas secundários da história. Em termos simples como os que utilizei aos meus amigos da “comunidade”, eu gosto de pensar que quando vamos contar uma história, qualquer que seja, fazemos uma seleção das coisas que vamos dizer, pois nem tudo é relevante para o ouvinte. O exemplo que usei foi este: se eu quero lhe contar sobre algo importante que me ocorreu no trabalho, posso resumir toda a manhã dizendo “hoje eu fui trabalhar, e chegando lá...”. Eu não preciso dizer o que comi no café da manhã, que roupa eu usava, que horas acordei, como foi meu trajeto etc. O que é importante neste caso é algo que aconteceu já no trabalho, então posso resumir todo o restante, fazendo o “tempo narrativo” passar depressa.
No texto da multiplicação, Jesus é perseguido pela multidão carente e acaba curando muita gente (Mt 14.13-14), mas isso é descrito em poucas palavras, sem grandes detalhes. Claro que todos esses milagres, nessa história, são considerados secundários. Outro ponto secundário na história é o “milagre da multiplicação”. Ele acontece de maneira oculta entre os versículos 19b e 20. Nós, leitores, continuaremos sem saber como foi que aquela multidão consegui se satisfazer com cinco pães e dois peixes. O contador da história considerou este milagre algo secundário, e nós, se formos bons leitores, entenderemos estes sinais que ele nos deixou.
Aí está uma grande novidade para os leitores da Bíblia. O milagre da multiplicação dos pães é secundário! Embora nos sermões e livros que já ouvimos e lemos ele seja central, e nossas Bíblias usem a palavra “multiplicação” no título da perícope, no texto o milagre é secundário. E o que é essencial então? O ponto mais importante do texto está na parte em que o tempo narrativo é mais lento, onde o contador da história faz o tempo passar devagar para que possamos ver os eventos com mais detalhes, e isso está exatamente no diálogo entre Jesus e os discípulos, dos versículos 15 até 19a. Neste ponto o narrador achou necessário relatar cada palavra proferida (embora isso não queira dizer que elas correspondam aos fatos “reais”), nos deixou ouvir a conversa dos bastidores entre Jesus e os discípulos, coisa que a multidão não ouviu.
Atentando então para esse clímax da narrativa, temos: 1) Os discípulos se preocupam com a fome das pessoas que seguem Jesus; 2) Eles tinham pouca provisão, que provavelmente era suficiente apenas para o grupo dos doze e Jesus comerem aquela noite; 3) Jesus pede que eles dêem de comer à multidão, ou seja, pede que eles dividam o pouco que possuem; 4) Jesus mesmo toma o alimento, agradece a Deus por ele, e o reparte. Esquecendo por hora o milagre, que como eu já disse é um elemento secundário, o que fica ao leitor é a sugestão para se preocupe com os famintos, e que divida com eles o que Deus lhe deu, ainda que seja pouco. Essa é a parte que devemos guardar, obedecer, viver como discípulos de Jesus.
E o milagre? O milagre, insisto, é secundário. Deus, neste caso, multiplicou o alimento e ninguém teve fome, mas só fez isso porque alguém obedeceu a ordem de repartir. Sem esta atitude, nada de milagres. Deus só cumpriu a promessa feita, de que e buscássemos primeiro o Reino e sua justiça, se não guardássemos tesouros na terra, se não nos preocupássemos com o que vamos comer, beber ou vestir (veja Mateus 6 inteiro), e ele nos daria o necessário. Lemos que Jesus e os discípulos seguiram essas instruções, e Deus cumpriu sua promessa e não deixou faltar pão. Portanto, se há algo para guardar a partir desse texto, guarde isso: Deus não deixa faltar aos que dividem, aos que fazem caridade, aos que não se conformam com a fome alheia.
Porém, antes de encerrar, deixe-me vos alertar para um fato importante. O texto diz que Deus alimenta os discípulos que dividem seu pão. Ele multiplica pães para os caridosos, para que eles tenham o que comer. Por favor, não use este texto bíblico tão bonito para falar que Deus multiplica qualquer outra coisa. O texto não diz que Deus multiplica dinheiro na conta bancária, nem milagres, nem carros, casas, clientes, saúde, emprego, namorados ou qualquer outra coisa. Deus promete que não deixa faltar pão na sua mesa, e é só o que o texto diz. Não caia na conversa das pessoas que “grifam” o milagre colocando seus interesses acima da Palavra da Deus, e negligenciam o mais importante, que é a ordem para que aprendamos a dividir o que pão de cada dia que Deus nos dá. A multiplicação anunciada não é motivo para esperar prosperidade, mas para confiar num Deus que conhece suas necessidades e, caso você esteja trabalhando pelo Reino, o ajuda a receber a cada dia o que você precisa para viver. Não peça a Deus mais do que o necessário, não colha mais maná do que você precisa, pois o compromisso de Deus com os seus é o de suprimento básico, de “um denário” pelo seu dia de trabalho (Mt 20.1-16), e nada mais.
Em suma, é isso o que eu tinha para dizer. Lhes ofereço assim uma parte igual do “pão” que Deus me deu para hoje. Divido com vocês minha dádiva. Ele tem me alimentado a cada dia, e realmente nunca me faltou nada. E mesmo de um texto como esse, que para mim parecia uma “panela vazia”, talvez uns poucos pães e peixes se o espremêssemos, o Senhor proporciona alimento que pode suprir momentaneamente a fome de multidões. Agora, me ajude a ser a Deus, me ajude a alimentar o mundo, compartilhe esse texto com os famintos deste tipo de alimento que você conhece.
[1] Aos interessados no método, há muitos livros principalmente em inglês, que você pode encontrar no site “library.nu”, mas eu sugiro que procurem pelo livro Para ler as Narrativas Bíblicas: Introdução à Análise Narrativa, publicado no Brasil em 2009, de Daniel Marguerat e Yvan Bourquin.
8 comentários:
Oh amado irmão obrigado por tal reflexão, não pude estar na comunidade no dia em que vc troxe este ensino, mas agora lendo pude aprender e ter como confirmação algumas coisas que venho pensando, e nem pensava neste texto, obrigado pelo ensino e compartilhamento....
No amor de Cristo,seu irmão em Cristo Marcio Santos.
Rapaz, como vc está "crente" nesse texto!
Carríssimo prof.
O tema abordado nesta interpretação é sempre presente.
Hoje tavez, mais que nunca.
Neste modelo de sociedade, onde busca-se a realização humana no consumo, que por sua vez, é apenas uma ferramenta do sistema onde o capital é deus.
Em nome de um suposto desenvolvimento, que em tese, levaria prosperidade e bem estar a todos, destruimos o ambiente e exploramos os desfavorecidos, em escala nunca antes vista neste mundo (Lula, desculpe o plágio).
E os acidentes de percurso do capital, são sempre resolvidos pela socialização das perdas.
Sim, a humanidade precisa muito ouvir estas palavras.
Parabéns.
Não vejo a hora desta passagem cair no calendário liturgico.
Parabéns Prof. Anderson muito bom o texto. Com reflexões assim que nós iremos melhorar os nossos conceitos em relação ao cristianismo.
Prof. tenho um dúvida...O sr. disse que temos que aprender nesse texto que Deus supre e não prospera.
Pois bem, sendo assim tem algo que fica em minha mente...Se Deus supre e dá só o necessário, por que tantas pessoas passam fome? Deus não poderia suprir essas pessoas? Numa sociedade tão desigual em que vivemos, por que isso insiste em acontecer? Se for possível professor me ajude nessa minha grande dúvida. Me envie no e-mail bielpb@hotmail.com.
Brigadão. Abraço
Gabriel Pacheco Barroso
valeu Anderson,como dizia o Paulo Galdino shou de bola,quantas vezes não somos tentados a sermos egoístas num mundo que nos incentiva a consumir cada vez mais com coisas superfluas, um texto como esse nos mostra que o evangelho pregado por Jesus e seus discípulos nos chama a repartir o pouco que temos com os desfavorecidos,alias os pregares da prosperidade precisam ler esse texto.
Olá amigos! Que satisfação receber suas mensagens de apoio. Muito obrigado.
Vou direto à dúvida do Gabriel, do blog "Evangelho Maltrapilho". Primeiro, eu não afirmo nada, só tento repetir o que o texto bíblico diz, e esse texto, em particular (isso quer dizer que outros podem não confirmar essa mesma teologia)diz que Deus supre as necessidades básicas. Há muito para dizer, mas vou resumir em três pontos:
1) A promessa feita em Mateus é a de que Deus supre a necessidade dos seus seguidores. Só daqueles que deixam as expectativas do mundo para trás e colocam toda a confiança em Deus quando decidem entrar no Reino de verdade. Assim, o mundo vai continuar faminto, pois confiam no trabalho, na carreira, na herança, na poupança etc. Eles não estão incluídos na promessa, e na verdade, nem a grande maioria dos cristãos, pois não abandonam nada pelo Reino hoje em dia (me incluo nessa).
2)Vemos no texto também, que o suprimento não é simplesmente milagroso. Primeiro, você deve fazer caridade. É o pão da caridade que se multiplica. Quem divide, não vai ter falta, e por isso, é das mãos dos irmãos que Deus espera suprir a fome. O milagre é uma excessão, quando os recursos dos caridosos realmente não são suficientes, aí ele faz milagres.
3)Quando eu escrevo sobre um texto biblico, tenho medo de fazer com que as pessoas "construam" uma imagem de Deus baseada na minha interpretação. Ou seja, eu analiso a teologia de Mateus, mas não sei muito sobre Deus. Em Mateus Deus é assim, supridor, caridoso, igualitário, às vezes milagroso... mas não podemos com isso dizer quem Deus realmente é. Não peguem minha exegese para afirmar nada sobre Deus, use como fonte reflexão e de esperança, mas se Deus não cumprir as promessas que o texto diz que ele fez, então o texto e o exegeta estavam errados.
Olá mestre, como vai???
muito boa essa reflexão...
ainda bem que muita gente, não leu e nem irá ler essa reflexão, porque seria uma página a menos na bíblia deles.
Tem muita gente por ai, preocupadas mais com o milagre do que com o significado do milagre.
quanto as respostas ao Rodrigo do Evangelho Maltrapilho, foram muito boas, com sua permissão gostaria de acrescentar, que DEUS pra atuar na miséria do mundo ELE sempre precisará do Rodrigo, do Marcio, do Paulo, do Anderson, do João e de todo o mais... se não for assim, muitos morreram hoje, muitos morrerão amanhã, e depois, e depois...
quero finalizar com as palavras do apóstolo Paulo:
Rom 13:8a " A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros..."
Desculpa ai, já escrevi demais, um grande abraço mestre.
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