quarta-feira, 27 de abril de 2011

ARREPENDIMENTO, CONFISSÃO, BATISMO E ASCETISMO: NOVOS JUDAÍSMOS EM MATEUS 3.4-6

Seguindo com nossa leitura de Mateus, agora temos diante de nós mais três versículos que descrevem a aparência de João Batista, o alcance de sua mensagem, e um pouco mais sobre o ritual do batismo que ele praticava. Sobre a aparência (v. 4), não há muito o que dizer, a não ser que ele apresentava de uma maneira muito estranha. É possível que sua roupa e alimentação tenham significados simbólicos diversos, mas a princípio, talvez elas indiquem pela estranheza que transmitem, quão separatista era o profeta. Ou seja, como asceta, ele não apenas separava-se do chão em que os pecadores pisavam, mas também evitava usar roupas como a dos habitantes de Jerusalém e comer o que eles comiam. São apenas alguns palpites; uma pesquisa deve levar o leitor bem mais longe nesta questão, mas este não é nosso propósito aqui, já que nosso objetivo é principalmente falar sobre o texto a partir de uma leitura intuitiva e pessoal, como se fosse o primeiro passo para futuras exegeses.


Adiante, no versículo 5, vemos que de Jerusalém, da Judéia inteira, e até das regiões além do Jordão, as pessoas vinham procurar João. Assim como Jesus, seu predecessor já tinha uma atividade aberta para todo o mundo, e não exclusiva para os judeus. Mas é no versículo 6 que está o mais interessante dessa pequena seção que separamos. O texto é simples, diz que estas pessoas que procuravam João eram batizadas por ele no rio Jordão confessando os seus pecados. São poucos detalhes, mas suficientemente ousados. O batismo é uma prática que nasceu como um ritual de purificação, e não apenas como um ato simbólico de adesão a um movimento, ou como o símbolo de um novo nascimento. A necessidade de se confessar os pecados para que fossem batizados parece demonstrar que realmente a religião de João Batista pregava um perdão de pecados por meio do arrependimento, confissão, da lavagem com a água do rio, e com a aceitação de novos padrões de comportamento que deveriam seguir o modo de vida asceta do próprio João. E se isso estiver correto, a atividade de João não é tão pacífica quanto costumamos imaginar, mas constitui-se numa crítica aberta à atividade sacrificial realizada no Templo de Jerusalém.


João, portanto, considerava impura a religião centrada em Jerusalém e no Templo, e propõe uma nova maneira de buscar a pureza que Deus espera. Ele insta seus seguidores ao arrependimento, pede que se confessem, os batiza e isso talvez já seja uma maneira de livrar-se dos pecados, e depois certamente pede que vivam de maneira asceta como ele. A atividade de João, vista dessa forma, não é simplesmente religiosa, mas política também. Há uma clara condenação para com as instituições mais importantes da religiosidade judaica (Templo e cidade santa). Neste sentido, sua prática é profética, e já era de se esperar que os poderes se levantassem contra tal pregador.


Adiantando um pouco as informações, sabemos que Jesus, apesar de ter seguido João por algum tempo, quando deixou-se não deu continuidade a esta idéia de confissão, batismo e ascetismo. A proposta de Jesus era outra, itinerante, igualitária, apocalíptica, mas também era contrária à religiosidade dos sacerdotes. E não ainda muitas outras tradições judaicas como a dos fariseus e a dos essênios que servem para demonstrar quão diversificada e “sectarizada” era a religiosidade daquela época e lugar? Vemos uma crise na fé judaica, o que não era novidade. Vemos o nascimento de diferentes tipos de judaísmos que sempre estão de alguma forma de acordo ou em oposição aos sacrifícios do Templo. O cenário social e religioso da Palestina era, sem dúvida alguma, muito mais complexo do que costumam retratar as igrejas, os filmes e grande parte dos livros de hoje.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

NOVO ARTIGO PUBLICADO: O CASAMENTO DE JESUS


Em anúncio anterior, mencionei a publicação de um artigo meu pela revista Horizonte, da PUC-Minas, cujo tema é o suposto “casamento de Jesus” em João 4. Na ocasião, meu artigo estava no sumário da revista, mas não podíamos acessá-lo on-line. Volto a mencionar tal publicação pois agora o artigo pode ser baixado em pdf gratuitamente. Sugiro a leitura, que é bastante interessante e instrutiva.


Acessem: http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/1525/2125

sábado, 9 de abril de 2011

JOÃO BATISTA, MESTRE OU DISCÍPULO? MATEUS 3.1-3

No capítulo 3 de Mateus entra em cena João Batista. Há uma motivação histórica para que todos os evangelhos falem dele, pois sabia-se que Jesus havia procurado o grupo de seguidores de João, e por um tempo que não podemos determinar, havia sido um de seus seguidores. Os estudiosos não hesitam em afirmar que Jesus fora um discípulo de João Batista, e que só iniciou seu ministério porque João foi preso. Mas Mateus conta uma versão diferente da história, que procura exaltar Jesus, fazer de João um mero servo, explicando aos leitores qual é o real papel de ambos na história.


O João “batizador” aparece no deserto da Judéia (3.1). Está ao sul, longe da Galiléia de Jesus e de Nazaré. Sua localização nos indica que João é herdeiro de uma tradição judaica ascética, que condena o mundo e separa-se dele para que por meio do isolamento, viva de acordo com a pureza que sua fé exige. Isso também está presente no ritual de purificação do batismo. É, portanto, uma tradição bem diferente daquelas que geralmente seguimos a partir da leitura bíblica. Mas João não é apenas asceta, ele é também um profeta apocalíptico, que pregava a chegada da hora derradeira, quando Deus interviria no mundo para estabelecer seu reino (v. 2). O Reino de Deus (ou Reino dos Céus como prefere Mateus) não é apenas uma instituição religiosa, mas também política, pois para que Deus assuma o controle do mundo definitivamente, terá antes que derrubar os que no momento o governam. Há uma negação implícita ao Império Romano, ao governo dos Herodes, e sem dúvida, esse tipo de mensagem, quando atrai grande número de ouvintes, acaba provocando uma reação do poder governamental. Não é por acaso que João será preso.


No conjunto, o ministério de João previa o fim daqueles dias de dominação estrangeira, e o fim do sistema sacrificial. A proposta dele era a de que as pessoas deveriam declarar arrependimento, mudarem de vida, e então saírem do meio dos pecadores e batizarem-se para que esta “lavagem” os tornasse limpos e marcasse o início de uma nova trajetória. Nisso, ele está relativizando a importância de Jerusalém e do seu Templo, assim como dos sacerdotes e dos seus serviços sacrificiais.


Para explicar João, fazê-lo menor que Jesus, o cristianismo primitivo utilizou-se de Isaías 40.3. Mas lá, o texto claramente fala do exílio babilônico. A forma poética nos permite ver isso na maioria das Bíblias, com exceção daquelas que incluem acentuações em lugares equivocados. Uma versão coerente diria:


Uma voz clama:


No deserto preparai o caminho do Senhor;


Endireitai no ermo vereda a nosso Deus.


Só para lembrar, textos bíblicos em suas línguas originais não possuem acentuação, e por isso, os “dois pontos” são inclusões dos tradutores visando facilitar o entendimento do texto. Pela forma poética, vemos em Isaías 40.3 que há um paralelismo que destaca o imperativo para que se prepare no deserto o caminho do Senhor. Trata-se de um texto exílico, onde o autor lembra a libertação do Êxodo e pede que preparem o caminho do deserto, porque novamente é por lá que o povo de Deus passaria quando saíssem do cativeiro. A introdução, sem lugar no paralelismo, foi separada pelos dois pontos. É uma voz profética que anuncia a libertação.


Em Mateus 3.3, cuja versão foi tirada de Marcos, há uma alteração no texto:


Uma voz clama no deserto:


Preparai o caminho do Senhor;


Endireitai suas veredas.


A citação não é literal, como vemos. O texto se parece, mas como os evangelistas já associaram a voz profética a João Batista, eles também viram o deserto como o local geográfico da atuação desta “voz”, e não como o próprio lugar por onde o Senhor trilharia o caminho. Ao tirar o deserto do paralelismo, foi necessário também excluir seu paralelo, o “ermo” que líamos na primeira versão, ou a poesia ficaria desigual. Exegeticamente, o Novo Testamento está errado em sua interpretação. Hoje veríamos esse uso como uma adulteração. Isaías não profetizou a vinda de João, e muito menos disse que haveria um pregador que antecederia a vinda do Messias, como eles pretendem dizer. Nós aprendemos daí, como é que as tradições eram usadas para legitimar as próprias convicções dos leitores; vemos que não existiam leituras críticas e preocupadas com o contexto original dos textos. Isso, porém, as igrejas fazem até hoje, mas são mais culpadas do que Marcos e Mateus, pois não vivem mais na antiguidade e já dispõem de recursos diversos para que leiam adequadamente os textos bíblicos.


No caso de Mateus, sugiro que perdoemos tais erros. Ele não tinha como ler ou apropriar-se da tradição de modo diferente. Seguia a modo tradicional de interpretar, e fez isso com a melhor das intenções, afirmando aos seus leitores que Jesus era o Messias, e que João, embora tenha sido uma espécie de mestre de Jesus por algum tempo, era apenas um auxiliar.