quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A MORTE DE JESUS - OS FATOS E A FÉ



Dando ainda sequência àquelas nossas reflexões sobre as mensagens mitológicas da Bíblica, agora eu gostaria de trazer à pauta a narrativa do sepultamento de Jesus em Marcos 15.42-46. À primeira vista não vemos aspectos mitológicos no texto, mas nossa análise demonstrará como um olhar exclusivamente histórico pode matar também essa famosa passagem.

O texto fala que Jesus foi sepultado num túmulo comum. Tais túmulos (típicos para os sepultamentos judaicos daqueles dias) eram esculpidos na rocha calcária. No interior deles cavava-se nichos para que os corpos fossem depositados. Após a decomposição do corpo, os ossos podiam ser depositados em urnas que chamamos de “ossários”, ou enterrados normalmente. Até aí a história parece andar junto com o texto, mas o problema está em unir esse tipo de sepultamento a uma vítima de crucificação.

Os romanos, quando usavam a crucificação como punição de alguém, pensavam não somente na morte do indivíduo, mas em sua humilhação pública. Além do sofrimento que o ato implicava, após a morte a vítima podia ficar apodrecendo ao ar livre como advertência aos vivos, ou ser lançada em um lugar qualquer para servir de alimentos a animais. A pena era terrível não somente pela morte dolorosa, mas também pela sentença ao não-sepultamento.[1] Assim, o tratamento histórico da narrativa da morte de Jesus nos conduziria à triste conclusão de que provavelmente Jesus não teve direito a um sepultamento digno e por isso seu corpo nunca mais foi visto. A consequência dessa probabilidade histórica é que a fé na ressurreição surgiu para esconder a vergonha de ter um Messias sem sepulcro. Deveras, é por isso que embora existam registros textuais de milhares de crucificações, mas nenhum cadáver para servir de evidência material. A verdade é que apenas um cadáver de um homem crucificado restou para que o estudássemos.

Esse cadáver único lança nova luz às pesquisa do Jesus histórico. Em 1968 foram escavados túmulos na parte norte de Jerusalém onde foram encontrados os restos mortais de 35 pessoas que teriam morrido também ao longo do século I. O crucificado era um homem que morrera entre os 24 e 28 anos, cujos braços não foram pregados, mas amarrados à viga transversal, e cujas pernas foram pregadas à cruz dos lados de fora da viga vertical, uma de cada lado. Sabemos que ele foi crucificado porque ainda trazia um prego atravessando-lhe o calcanhar.[2] A ciência assim nos ajuda a entender melhor a crucificação, mas o que nos intriga é o sepultamento desse homem. Como ele obteve esse direito raro ao sepultamento? É aí que o historiador cria sua própria mitologia e acaba vendendo-a como história. Podemos apenas fazer suposições dizendo que aquele homem, embora tenha cometido um crime sério, tivesse familiares influentes que o livraram da punição pós-morte; ou podemos imaginar alguém subornando um guarda para que lhe desse o direito de sepultá-lo em segredo... Em todo caso, estamos diante de uma exceção à regra dos crucificados, um caso único que não prova a veracidade do texto bíblico que afirma o sepultamento de Jesus.

As possibilidades históricas nos permitem aceitar a cruz de Jesus como fato provável, e com um pouco de boa vontade até podemos crer na chance pequena de que ele tenha ganhado o direito a um sepulcro. Mas a verdade é que a existência de cruzes e de cadáveres não prova nada sobre o texto; ele pode estar simplesmente contando-nos uma história fictícia baseada em fatos reais. Assim, não só a ressurreição permanece no campo da mitologia, como não há túmulo ou cadáver de Jesus para provar sequer a crucificação. O texto, embora apoiado por algumas possibilidades históricas, continua exigindo fé. Teremos que escolher entre uma das possibilidades: 1) A mais cética não crê na versão de que Jesus foi comido por cães e nem no seu sepultamento, pois não passam de possibilidades. Esta opção costuma estender-se à negação da ressurreição, e leva à morte do texto e da fé. 2) Um alternativa mais religiosa e não tão severa seria crer na explicação mitológica dos textos do sepultamento e da ressurreição, considerando indiferente o destino dado ao corpo de Jesus já que o importante é a fé de que ele está vivo. 3) A terceira opção é a pior de todas, seria rejeitar a ressurreição por seu caráter mitológico mas aceitar o não-sepultamento de Jesus que não passa de uma nova hipótese, isso mataria o texto e a fé, simplesmente porque esta alternativa é a que foi exposta com argumentos mais científicos.

Novamente enfatizamos que o texto não precisa ser confrontado com as análises históricas. Aprendemos da ciência, mas deixemos o texto vivo, com Jesus no túmulo e ressurreto; nos inspiremos pela mensagem do homem simples que falava as palavras de Deus, foi morto por isso, mas até venceu a morte para nos motivar também a não temer os que matam o corpo e continuar o trabalho de pregar o Reino de Deus. A mitológica é ainda a versão mais fascinante, difícil apenas àqueles que acreditam que as coisas só têm valor quando há provas.


[1] CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. p. 574-575.

[2] CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. p. 576-577.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

COMO LER O MITO DO DILÚVIO?

Na postagem anterior nosso objetivo foi mostrar como é através da mensagem mitológica, isto é, dos dizeres que não possuem qualquer vínculo comprovável com a realidade, que se esconde a verdadeira mensagem bíblica. É preciso deixar de dar valor excessivo à historicidade dos textos como se somente aquilo que está escrito como realmente aconteceu possuísse valor, e perder o preconceito com relação à mitologia, já que o homem antigo construía seu mundo através dos mitos e tanto as coisas reais como as imaginadas ganhavam contornos mitológicos quando narradas.

Seguiremos neste exercício, de ler superficialmente textos bíblicos para mostrar que uma leitura histórica torna a Bíblia um livro antigo e superado, enquanto que a compreensão dos seus mitos revela sua mensagem religiosa. Nossa proposta é atualizar exatamente o mito, perguntar pelo papel que ele desenvolvia na sociedade que produziu o texto, por sua ideologia, sua utopia, e propor uma leitura do mesmo mito hoje, que ainda dependerá obviamente da fé do leitor.

A narrativa do dilúvio (Gn 6-9) é a parte mais longa de toda a seção mitológica que vai de Gn 1-11. Além de muitos estudiosos já terem relatado o parentesco entre o dilúvio bíblico e outras versões mesopotâmicas, a introdução da narrativa (Gn 6.1-7) apresenta uma forma bem resumida do chamado “Mito dos Vigilantes”, que podemos ler no livro extra-canônico de 1Enoque 6-16. O mito diz que anjos sentiram-se atraídos por mulheres humanas e geraram filhos com elas: “Quando outrora aumentou o número dos filhos dos homens, nasceram-lhes filhas bonitas e amoráveis. Os Anjos, filhos do céu, ao verem-nas, desejaram-nas e disseram entre si: ‘Vamos tomar mulheres dentre as filhas dos homens e gerar filhos!’” (1En 6.1) Os filhos dos anjos com as mulheres, estes seres híbridos, eram gigantes que começaram a devorar tudo o que a terra produzia, e depois os próprios homens: Estes consumiram todas as provisões de alimentos dos demais homens. E quando as pessoas nada mais tinham para dar-lhes os gigantes voltaram-se contra elas e começaram a devorá-las(1En 7.2). Deus, indignado com tamanho absurdo, decide punir os anjos responsáveis, e destruir toda a raça humana por meio de um dilúvio. Só um homem sobreviveria com sua família, o filho de Lamech (1En 10.1).

O começo da narrativa do dilúvio, que dá o motivo para tal ação radical de Deus, foi herdada da mítica narrativa de 1Enoque. Ignorando toda a literatura extra-canônica e lutando por explicar de maneira racional o texto bíblico, os leitores conservadores desdobram-se para fugir à mitologia, mas tal exercício é vão. Mas o dilúvio em si, porção textual que na Bíblia ganhou novos contornos e se tornou o centro da narrativa não deixa de ser também mitológico. Esta narrativa responde também a uma das grandes questões do mundo antigo, que é sobre o perigo de um dilúvio fatal.

O homem antigo não tinha recursos para explicar as chuvas, não conhecia os limites dos mares e não sabia como era possível haver água abaixo da terra quando cavavam um poço. Ele sentia-se cercado por água e imaginava que diante da ira divina o mundo poderia a qualquer momento ficar submerso. A narrativa do dilúvio transmite-nos a esperança de que mesmo diante da maior de todas as catástrofes os fiéis podem ser preservados. Noé serve-nos como exemplo de fidelidade e perseverança quando tudo lhe é contrário, e acaba sobrevivendo ao quase fim do mundo. Apesar da resistência contra a cultura babilônica na narrativa da criação, Gn 6-9 é a prova de que a cultura estrangeira também foi sendo assimilada pelos judeus.

Há mais um aspecto desta narrativa que gostaríamos de mencionar. Mostra que a releitura judaica foi ainda relida e que o texto final, o que temos em nossas Bíblias, já atente a propósitos diferentes dos originais. Primeiro vejamos o que está escrito em Gn 6.18-19: “Mas contigo estabelecerei o meu pacto; e entrarás na arca, tu e os teus filhos, e a tua mulher, e as mulheres de teus filhos contigo. E de tudo o que vive, de toda carne, dois de cada espécie meterás na arca, para os conservares vivos contigo; macho e fêmea serão”. O tema em pauta é a preservação do justo, dos que ele preza, e dos animais de todas as espécies; a criação de Deus é preservada pela fidelidade de um único homem. Um casal de cada espécie é suficiente para tal propósito, mas isso muda ao longo do texto. Em Gn 7.2 lemos a ordem para a reunião dos animais na arca com uma diferença importante: “De todo animal limpo tomarás para ti sete e sete: o macho e sua fêmea; mas dos animais que não são limpos, dois: o macho e sua fêmea”. Agora há distinção entre animais puros e impuros, e para os puros a ordem é de que se preserve sete casais. Por quê? A resposta vem mais adiante, quando o dilúvio acaba e Noé sai da arca: “E edificou Noé um altar ao SENHOR; e tomou de todo animal limpo e de toda ave limpa e ofereceu holocaustos sobre o altar. E o SENHOR cheirou o suave cheiro e disse o SENHOR em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice; nem tornarei mais a ferir todo vivente, como fiz” (Gn 8.20-21).

Temos o texto em duas edições, uma mais antiga, com a preocupação de proteger a vida do justo e dos animais, e outro posterior com uma preocupação sacerdotal, onde não basta ser fiel às palavras de Deus, é também necessário sacrificar. A teologia sacerdotal viu que um casal de cada espécie seria pouco para agradar a Deus, e incluiu um número maior de animais puros para que Noé, após o dilúvio, pudesse também sacrificar. A leitura história, a princípio, não aproveitaria muita coisa desta longa narrativa. O método histórico-crítico traria a responsabilidade de distinguir as duas versões, e acabaria por desprestigiar os retoques sacerdotais, que evidentemente são posteriores. Uma leitura historicista também teria que reconhecer o valor do sacrifício de animais no texto, e sua aplicação tornar-se-ia impossível. Outra tentativa é fazer relações do dilúvio bíblico com achados arqueológicos que talvez confirmam a existência de um antigo dilúvio, mas que não ajudaria muito para comprovar a teologia do texto.

Nós, todavia, não nos importamos com as contradições e nem com a historicidade dos fatos, mas com a mensagem do texto e nada mais, que pretende tanto ensinar sobre a proteção divina sobre aqueles que o agradam, como incentivar a fidelidade litúrgica, que naquele caso aconteceu através do sacrifício. Não pediríamos que ninguém imitasse Noé sacrificando animais para agradar um Deus que gosta de cheiro de churrasco, mas exporíamos o texto como é, admitindo que sua teologia está superada. Mostraríamos que o personagem procura fazer o melhor para seu Deus de acordo com seu tempo e cultura, que é fiel em meio há uma sociedade condenada, e que por isso é salvo pela ação conjunta de Deus e de seu trabalho. Noé também mostra-se grato quando vê-se livre das ameaças que transtornam todo o mundo. Tais coisas podem ser facilmente transpostas para os nossos dias, onde as pessoas devoram-se e não se importam com o fim da vida; a ameaça de um dilúvio talvez não assuste o leitor de hoje, mas a mensagem de que o homem de fé, que trabalha a partir da Palavra de Deus, é capaz de livrar sua família e também a criação da destruição, é algo bastante atual. O chefe de família guiado por Deus é capaz de salvar toda a família, e há ainda um apelo ecológico no texto, e um incentivo à gratidão litúrgica. Novamente, a única coisa que importa ao leitor comum é a mensagem mitológica, e não a histórica.

Imagem: The Flood, de Masséot Abaquesne.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A CRIAÇÃO: UMA LEITURA MODERNA DE Gn 1.1-2.3


Há algumas semanas tenho trabalhado na produção de um novo artigo sobre a interpretação bíblica que conta com uma longa parte teórica e com alguns exercícios práticos no final. O texto está inacabado mas já é bem longo, e não poderá ser publicado aqui; então pensei em aproveitar ao menos a parte prática do artigo aqui no blog, divulgando minha leitura de alguns textos míticos que costumam ser mal aproveitados pelos leitores da Bíblia. Procurarei fazer uma abordagem didática dos textos, para ensinar o leitor sobre o que considero um bom uso da mitologia bíblica, assim como também tentarei ser prático, mostrando que aplicação estes textos podem ter para nossos dias.

Geralmente quando se fala de mitologia bíblica logo se pensa em Gênesis, dos capítulos 1 a 11, que é uma literatura claramente mítica; porém, o termo “mito” ainda é visto com resistência por grande parte dos leitores da Bíblia, que acreditam que tais textos são relatos precisos de acontecimentos passados. Não gostaria de discutir isso aqui, então vou direto ao texto de Gn 1 esperando que sua leitura já dê ao leitor alguma idéia do que entendemos por literatura mítica. Outros textos virão em próximas postagens para aprofundar o tema.

O primeiro texto da Bíblia começa dizendo: “No princípio, criou Deus os céus e a terra”. Temos aí um texto inquestionavelmente mítico, pois relata acontecimentos de um período que homem algum poderia ter testemunhado, já que não existiam. O próprio escritor obviamente não estava lá, não sabe exatamente como se deu tais eventos, e a falta de critérios para descrever tais eventos é o que nos leva a classificá-la como mitologia. A pergunta não é se o evento narrado ocorreu ou não, mas pelos critérios empregados para a composição do relato. Imaginamos, é claro, que o universo teve um início, mas quando e como esse início se deu é uma questão que não podemos responder. A criação do universo, mesmo após a narrativa de Gênesis, continua tão difícil de imaginar que não encontrei tal evento retratado por nenhum artista anterior às fotos de satélite; há inúmeras telas que nos revelam como o imaginário humano concebe a criação de Adão e sua queda, mas a falta de imagens é prova de quão inconcebível é a origem do universo. O mesmo problema da falta completa de respostas sobre as origens inquietava a humanidade quando este relato foi composto, e por isso logo imaginamos que o objetivo do texto sagrado é contar como as coisas aconteceram, revelando aquilo que só Deus mesmo poderia saber.

Como não é possível dizer como foi que tudo começou, Deus aparece como o agente da criação. Na verdade, as mitologias costumam evocar os deuses exatamente para explicar aquilo que não tem explicação, e por isso a chuva, os terremotos, a morte... são todos interpretados como ações dos deuses em todas as culturas não tecnológicas. Quando as explicações da ciência surgem e parecem coerentes, os deuses desaparecem junto com a mitologia, e adotamos a versão científica da história. Assim, quando se descobriu como se formam as tempestades, deixou-se de crer que os deuses estavam irados. O mesmo não aconteceu com a “vida após a morte”, que não possui explicação científica; neste caso a linguagem mítica e os deuses continuam servindo como respostas.

Voltando a Gênesis, além de não haver qualquer evidência de que o relato da criação diz a verdade, ainda há uma série de imperfeições que uma leitura crítica pode destacar. Por exemplo, os dias já são contados antes mesmos que existam sol e lua; a criação só fala do nosso mundo e dos astros daqui visíveis, ignorando a existências de outros planetas. Quando chega o momento da criação dos seres-humanos, eles são feitos segundo a imagem de Deus (ou deuses conforme o plural empregado no texto), deixando para nós alguns sinais de como eram “humanizados” os deuses imaginados no período. O ponto mais interessante, todavia, é o sétimo dia, em que o próprio criador descansa de seu trabalho: “E, havendo Deus acabado no dia sétimo a sua obra, que tinha feito, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra, que Deus criara e fizera” (Gn 2.2-3). Teologicamente falando, a divindade em questão, com suas características divinas e suas limitações humanas, é um ser que se cansa, coisa que não coaduna com nenhuma definição de Deus que posteriormente a Bíblia apresentará.

Uma leitura histórica desse texto, que tentaria focar os aspectos reais da narrativa, não é muito promissora. Apenas com o emprego de muita alegoria poderíamos dizer que os dias da criação coincidem com as eras que os cientistas distinguem na criação da terra. Tirar do texto seu aspecto mitológico significaria destruir o texto, fazê-lo mero conto de fadas da antiguidade. Pior ainda seria lê-lo literalmente e tentar dizer que tudo aconteceu como está narrado; é o que fazem os contrários ao evolucionismo que acham que Darwin era um inimigo da Bíblia e o criticam sem nunca tê-lo lido.

Então, o que fazer com esse texto? Eu sugiro que esqueçamos tanto a leitura histórica quanto a fundamentalista para nos atermos ao texto como é. Não devemos nos importar quanto a ser verdade ou não os fatos narrados, mas nos perguntar para que servia esse texto. Já dissemos que ele ajuda o ser-humano quando diz que o mundo nasceu por uma iniciativa de Deus; ele explica mitologicamente uma questão insolúvel e assim traz paz ao leitor. Todavia, há mais por trás do texto. Isso dizemos porque há um problema nele que é o Deus cansado que precisa repousar no sétimo dia, coisa que não estaria numa narrativa mitológica que procura apenas explicar as origens. O descanso de Deus, como problema teológico, é na verdade o centro do texto, pois evoca uma tradição bem conhecida de autores e leitores, a guarda do sábado (Êx 23.12-13).

O texto revela-se como uma narrativa que legitima a guarda do sábado. Ele diz: “Até Deus precisa descansar, e fez isso no sábado. Nós também devemos descansar, e isso deve ser feito no dia que Deus mesmo escolheu, que é o sábado”. Se este é realmente o tema central do texto, qual aplicabilidade ele possui na vida de quem o lê? Embora seja difícil precisar, tudo nos leva a crer que este relato, além de pertencer à cultura judaica, responde a um período histórico em que o descanso semanal estava ameaçado. Talvez o texto nos remeta ao período exílico (a partir de 587 a.C.), quando na Babilônia os judeus viram na guarda do sábado um sinal que os diferenciava. Pode ser que na ocasião, como povo dominado, sentiam-se pressionados a trabalharem nos sábados, e neste contexto o apelo à fidelidade à religião tradicional é também um pedido de descanso.

Meu professor, Milton Schwantes, faz uma leitura semelhante do texto num de seus livros, e vê outro aspecto que talvez esteja correto. Na narrativa, Deus cria todas as coisas, e entre elas, o sol e a lua, os luminares que eram divinizados na Babilônia.[1] Teríamos então uma reação contra as imposições culturais e religiosas estrangeiras, além de uma possível imposição física.

Agora a mensagem do texto, tirada exatamente da interpretação da mitologia judaica, pode ser resumida e depois transferia aos nossos dias. O texto ensinou, ainda que por argumentos mitológicos, a respeito da soberania de Deus sobre todas as outras supostas divindades, o que nos levaria a falar do monoteísmo. Mas não é qualquer monoteísmo que deve ser pregado, mas um monoteísmo preocupado com os direitos humanos, que defende o descanso do trabalhador, sua liberdade religiosa ainda que minoritária, que combate outra religião não porque ela é diferente, mas porque ela serve como instrumento de dominação do próximo. A mensagem do texto para hoje é: Nós acreditamos nesse Deus porque ele é um Deus mais humano, que conhece nossas necessidades e que instituiu leis para a defesa dos mais fracos.

Em resumo, é na mitologia que está a mensagem, e esta mensagem é a porção permanente e valiosa da narrativa bíblica. Não precisamos crer nos relatos fantásticos, nem priorizar somente o que se comprova cientificamente, podemos ler a mitologia, interpretá-la coerentemente, de acordo com o modo de pensar do período de sua composição, e então aplicar seu ensinamento também aos nossos dias, adequando sua linguagem ao nosso próprio modo de pensar.



[1] SCHWANTES, Milton. Projetos de Esperança. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 33-34.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

NOVO ARTIGO PUBLICADO - APOCALIPSE 12

Outra vez escrevo apenas para divulgar a publicação de um novo artigo de minha autoria.

Trata-se desta vez de uma interpretação de Apocalipse 12, que fala da batalha entre a mulher e o dragão.

O periódico publicador é a Revista "Perspectiva Teológica", de uma faculdade jesuíta de Belo Horizonte. Os textos ficam disponíveis on-line para quem possui cadastro, o que pode ser feito rapidamente. Depois é só baixar o arquivo em pdf. Acesse a revista em:

http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/issue/current/showToc

terça-feira, 14 de setembro de 2010

IMAGENS, FÉ E CULTURA: UMA LEITURA DIFERENTE

1 – UMA HOMENAGEM CRIATIVA





Hoje proponho uma atividade completamente distinta. Não se trata de uma exegese, não farei observações sobre textos, mas sobre imagens. Queria falar algumas coisas sobre a imagem acima, uma expressão de fé, uma homenagem, e também uma bela obra de arte. Trata-se de um vitral de igreja, e quando o vi na foto pela primeira vez, julguei apenas que se tratava de uma imagem protestante, por retratar uma cruz sem a imagem do Cristo nela. Todavia, mais detalhes me foram sendo revelados à medida que a examinava.

Primeiro pensei melhor sobre a inscrição acima, que diz que o vitral (ou talvez a igreja inteira) foi produzido em homenagem a pessoas que entraram no mar de Santa Inês para salvar a vida de outros. A inscrição nos oferece inúmeros indícios para a leitura da imagem. A começar pelo idioma inglês, e pela referência ao mar de “Santa Inês”. Descobri então que o vitral pertence a uma pequena igreja anglicana (inglesa), que fica na ilha de Santa Inês, parte de um arquipélago do Reino Unido conhecido como “Ilhas Scilly”. Eu estava certo sobre a “veia” protestante da imagem, e já sabia localizá-la geograficamente.

Seguindo a investigação a partir da inscrição, agora com as informações precedentes, descobri que a tal igreja foi construída no norte da ilha por ocasião de um naufrágio francês, e como relatou Thomas Hall, o sino do navio está na igreja e soa para convidar os fiéis aos domingos (HALL, 2006, p. 88). Temos, portanto, uma obra cristã que foi construída para homenagear pessoas que morreram num acidente marítimo naquela localidade.

Bem, mas essa história da igreja e seu vitral não constituem-se verdadeiramente numa análise da imagem em questão. Eu queria saber por que essa imagem e não outra; por que uma cruz sem Cristo como homenagem às vítimas? A resposta foi encontrada com a ajuda de um artista e de um pesquisador. O primeiro é um amigo meu, um tatuador e estudante de arte chamado Néias. Ele, com seu olhar apurado para os detalhes, me ajudou a ver como o sentido das pinceladas do artista na imagem revelam mais sobre a imagem.

O detalhe mais visível é que o centro da cruz é também o centro do vitral. Dele emana uma espécie de luz que vai dissipando-se até as bordas da imagem. Depois, esse detalhes é fundamental, podemos ver mais abaixo que há traços horizontais em um tom de azul mais claro. O Néias imediatamente identificou o mar retratado naquele mosaico. Por fim, mais abaixo nota-se que as pinceladas são diagonais, e tons de verde e marrom tornam a base da cruz mais escura, nos levando à certeza de que temos a praia. O artista então não se limitou a pintar uma cruz que identifica sua fé cristã, em sua homenagem ele também evocou o cenário do acidente, o mar de Santa Inês.

Agora falo da ajuda de David Morgan, pesquisador da cultura visual religiosa que em seu livro “The Secred Gaze” trata de vários aspectos da imagética religiosa. Em sua abordagem, ele cita algo que é determinante em nossa análise, o uso de cruzes para demarcar os locais de tragédias nas estradas. Para a família de pessoas que se morreram em acidentes de trânsito, a colocação de uma cruz no local do acidente serve como homenagem às vítimas, lembrando tanto o local como a data do evento. Por outro lado, para os motoristas que não testemunharam o acidente e nem tampouco conheceram as vítimas e seus familiares, tais cruzes possuem outra função; serve de alerta sobre pontos possivelmente perigosos das estradas (MORGAN, 2005, p. 56).

A conclusão é obvia, o artista responsável pela imagem no vitral fixou uma cruz à beira mar para demarcar o local da morte daquelas pessoas que queria homenagear, mas fez isso através dessa bela pintura.

2 – A RELEITURA DA IMAGEM





Como já citei meu amigo Néias, é fácil para quem lê este texto supor que o que temos agora é uma tattoo que faz uma releitura da obra original. O simples fato de reproduzir a imagem de um vitral sobre a pele já merece alguma consideração; é mais do que desejar guardar consigo aquela bela imagem, é uma re-significação de toda a obra. O artista dessa segunda obra foi fiel na maioria dos detalhes: os traços continuam indicando que a cruz está à beira-mar, e que a luz emana do centro da cruz, mas a inscrição original foi substituída por outra.

O idioma já não é o inglês, mas o grego. Eis o que está escrito em grego e em seguida e sua tradução: “Pa,nta o[sa eva.n qe,lhte i[na poiw/sin u`mi/n oi` a;nqrwpoi( ou[twj kai. u`mei/j poiei/te auvtoi/j”. “Tudo o que desejais que vos façam os homens, assim também fazei vós a eles”. É um texto bíblico, Mateus 7.12 com pequenas reduções. O texto do evangelho conhecido como “regra de ouro” fala aos seus destinatários sobre a maneira ideal de se proceder para com os demais judeu-cristãos daquele mesmo grupo, mas é um mandamento eticamente tão universal que nesta releitura parece desprender-se de seu contexto original para servir como fonte de inspiração a qualquer ser-humano. Claro que o uso do grego dificulta muito o entendimento da mensagem para quem quer que veja a imagem, porém, ela não pretende ser uma propaganda ou um sermão público; no local em que está localizado, tal dito do cristianismo primitivo provavelmente representa mais uma máxima significativa para seu portador, que certamente a compreende à sua maneira. A imagem já não se encontra fixa na ilha de Santa Inês, e não traz a dedicatória original. Isso altera a funcionalidade da imagem, ainda que muitos outros detalhes permaneçam os mesmos.

Uma última observação: ao retirar a imagem do vitral, foi necessário substituir também sua moldura original por outra que lhe tornasse independente e mais completa fora das paredes da igreja. A escolha pode ser vista na foto acima, é uma moldura estilizada, um “fileteado porteño”, ainda inacabado no momento da foto. Essa também é outra característica desta releitura, que tomou a imagem original e moldou-a com liberdade para que se adequasse à sua nova localização e propósito.

Esta análise, mais que apresentar uma interpretação das imagens, procura destacar como a arte, a fé e a vida de maneira geral estão se relacionando através dessas imagens. A cruz, o principal símbolo do cristianismo, é usada por artistas diferentes, por meio de expressão distintos, e para representar coisas também diferentes. Além da fé em Jesus Cristo que é evidente em ambas as imagens, também temos representados a dor e o respeito pelos mortos num naufrágio, a decoração de uma igreja, e o uso dela como moldura de uma máxima ética de origem distinta.

REFERÊNCIAS

HALL, Thomas. The T.W. Lawson: the fate of the world’s only seven-masted schooner. United Kingdon: The History Press, 2006.

MORGAN, David. The Sacred Gaze: Religious Visual Culture in Theory and Practice. California: University of California Press: 2005.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

EXORTAÇÃO À LIBERDADE (Rm 12.1-2)

DELIMITANDO TEMA E PERÍCOPE

A atividade que propomos hoje é exegética, vamos estudar dois versículos reveladores de Romanos, que são Rm 12.1-2. Esta análise produzimos há vários meses, e já a apresentamos a amigos noutras ocasiões. Finalmente vamos torná-la pública, nesta versão discretamente abreviada da exegese original.

Começaremos revendo o texto, que expomos abaixo em nossa própria tradução. Esses dois versículos abrem uma seção do livro de Romanos cujo conteúdo dá ênfase a questões éticas. Estamos então dando início a um novo tópico da carta, estamos em sua abertura. Nos apoiamos nisso para começar nosso estudo daqui sem mencionar os textos anteriores. Do outro lado da perícope, no v. 3, temos uma nova unidade que trará a alegoria do corpo humano; embora ali se dê continuidade ao tema dos dois primeiros versos, emprega-se outra maneira de se expressar. Vamos à leitura:

(1) Assim, exorto-vos irmãos, pelas misericórdias de Deus: apresentar vossos corpos sacrifício vivo, santo, agradável para Deus, o vosso culto racional. (2) E não vos moldeis a este século, mas sejais transformados pela renovação da mente para que experimenteis a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.

ENTENDENDO A FORMA DO TEXTO

Sabemos que o texto grego do Novo Testamento não foi escrito dividido com parágrafos, vírgulas, e muito menos versículos e capítulos. Assim, para que nossa leitura seja compreendida mais facilmente, decidimos reorganizar o texto incluindo nele nossos próprios sinais. Veremos esse texto subdivido, e no final o apresentaremos representado por meio de pequeno gráfico. A compreensão dessa estrutura nos parece imprescindível para a interpretação do texto.

Temos então, no início do versículo 1, a abertura que apresenta ao leitor ou ouvinte o gênero daquilo que virá a seguir: “Assim, exorto-vos irmãos...”. Paulo dirige-se aos destinatários de sua carta chamando-os como de costume, de irmãos, mas não deixa de assumir um tom mais grave, de quem pretende fazer a seguir uma recomendação importante. Eis aí o próprio texto anunciando seu gênero literário, que é a exortação. Não se trata de mandamento ou de mero conselho, mas de um pedido feito com ênfase. A seguir temos a razão para que os “irmãos” dêem ouvidos à exortação do apóstolo: “... pelas misericórdias de Deus:”. Isso é importante, pois é a justificativa que pretende levar os leitores à obediência. Não é simplesmente pelo apreço a Paulo ou por sua autoridade apostólica que os “irmãos” deveriam seguir seus conselhos, mas pelas “misericórdias de Deus”. Explicaremos isso melhor mais adiante, porém, notemos que incluímos dois pontos aqui para mostrar que agora é que virá a exortação.

A exortação está dividida em duas partes, mas é uma só. Ou seja, Paulo usou duas frases com palavras distintas para deixar apenas uma exortação. Saber que as duas frases se completam será também decisivo para nossa compreensão do texto. A primeira parte desta exortação é: “... apresentar vossos corpos sacrifício vivo, santo, agradável para Deus...”. A segunda parte é: “... o vosso culto racional”:

Abertura: “Assim, exorto-vos irmãos...”

Justificativa: “... pelas misericórdias de Deus:”

Exortação (parte 1): “apresentar vossos corpos sacrifício vivo, santo, agradável para Deus”

Exortação (parte 2): “o vosso culto racional”

Falando agora do versículo 2, dá-se sequência ao que se dizia com uma nova exortação relacionada à anterior. Na verdade, ela também se divide em duas partes, a primeira negativa e a segunda positiva. Assim, lemos uma proibição: “E não vos moldeis a este século...”, uma frase regida por um imperativo. Depois lemos o conselho positivo, a solução que substitui a proibição anterior. A outra opção é esta: “... sejais transformados pela renovação da mente...”.

O que fazer e o que não fazer foram ditos no versículo 2, mas Paulo ainda acrescenta o grande benefício ligado à sua exortação. Quem fizer o que ele diz, poderá experimentar a vontade de Deus, que é boa, agradável e perfeita. Sem maiores problemas podemos retratar este versículo graficamente da seguinte forma:

Exortação Negativa: “E não vos moldeis a este século...”

Exortação Positiva: “... mas sejais transformados pela renovação da mente...”

Recompensa: “... para que experimenteis a vontade de Deus”

Características da vontade de Deus: “boa, agradável e perfeita”

Antes de seguirmos, temos que unir as propostas estruturais dos dois versículos para notar como a construção é inteligente, centralizando as exortações duplas que se complementam e cercando-as por “Deus”, o motivo e a recompensa daquele que segue tais conselhos:

Abertura (v. 1a)

Deus como motivação (v. 1b)

Exortação 1 (v. 1c e d)

Exortação 2 (v. 2a e b)

Deus como recompensador (v. 2c)

À INTERPRETAÇÃO

Começaremos agora a buscar o significado de cada uma dessas frases, primeiro do versículo 1, partindo direto à exortação paulina que como vimos, está subdividida em duas partes.

Na primeira parte da exortação, prevalece a analogia entre os “vossos corpos” e o “sacrifício”. Ou seja, para falar do corpo humano o apóstolo empregou um linguajar próprio dos templos religiosos da antiguidade, onde se faziam sacrifícios de animais para as divindades. Obviamente não podemos limitar tal imagem ao templo judaico em Jerusalém, moradores de Roma que nunca conheceram a Palestina e nem os costumes judaicos também estavam familiarizados com a prática religiosa sacrificial. Em todo caso, o texto usa adjetivos como “santo” e “agradável” para falar das vítimas perfeitas para o sacrifício. No Antigo Testamento, nós lemos que segundo os escribas sacerdotais Deus considerava aceitável apenas os animais perfeitos, sem máculas, doenças ou defeitos de qualquer espécie. Tal tradição sem dúvida continuou presente na cultura religiosa do povo da diáspora e mesmo após a destruição do Templo em 70 d.C. (por exemplo: Lv 4.3; 23.12; 1Pe 1.19).

Mas aí surge um problema: se Paulo está falando de regulamentos judaicos, como os gentios que aparentemente eram maioria em Roma o compreenderiam? Mesmo que as exigências de perfeição em relação aos sacrifícios à divindade fossem desconhecidas pelos romanos, ainda podemos acreditar que eles entendiam Paulo. Quem nos ajuda a explicar isso são John Dominic Crossan e Jonathan L. Reed, que trataram da audiência paulina em geral de maneira muito especial. Eles dizem que Paulo, quando ia a cidades gentílicas e procurava pregar em sinagogas, não procurava os judeus, mas os “adoradores” ou “tementes a Deus” que ali também se congregavam. Esses eram gentios que simpatizavam com o judaísmo, mas que por algum motivo não aderiam ao movimento; não eram prosélitos, apenas participantes. Esse grupo, presente nas sinagogas da diáspora nos dias de Paulo conforme testificam os documentos arqueológicos, poderiam compreender a linguagem tipicamente judaica de Paulo.[1]

Nossa opinião é que Paulo emprega uma imagem sacrificial principalmente judaica para dizer aos gentios e judeus congregados em Roma que eles deveriam apresentar-se a Deus como as vítimas eram apresentadas a Javé no Templo. Isso é, eles deveriam ser santos, sem pecados. Porém, havia uma diferença entre esse sacrifício novo pelo qual Deus se agradava; eles eram sacrifícios “vivos”. Óbvio, tal ressalva foi necessária porque todos sabiam que as imaculadas vítimas oferecidas no Templo de Jerusalém não poderiam servir a Deus depois do ato sacrificial. Ali, o animal puro era imolado, queimado, comido... agora os “irmãos”, como novas ofertas agradáveis a Deus, deveriam oferecer-se também, mas sem que tal oferta santa implicasse em sua morte.

Passando para a segunda parte da exortação do versículo 1, temos que nos voltar mais cautelosamente para as palavras usadas. Paulo pede que eles pratiquem um “culto racional”. Primeiro, o “culto” é nada mais que um serviço prestado a Deus. Nós temos que nos cuidar para não sermos levados por nossas pré-concepções e imaginar uma igreja com louvores e toda uma liturgia. Trata-se aqui de uma vida dedicada a fazer o que Deus deseja. A outra palavra é “racional”, do grego “logikós”. Além de notarmos claramente que essa palavra grega deu origem à nossa “lógica”, também a encontramos em 1Pedro 2.2, onde explica qual o tipo de alimento que os cristãos deveriam desejar. Comparando os dois textos, vemos que Paulo está falando de um culto “maduro”, “pensado”, “ponderado”, “sensato”. Diríamos que na prática, o que ele esperava é que os romanos vivessem servindo a Deus de maneira sensata.

Como já dissemos, essas duas partes da exortação devem ser lidas em conjunto, e assim, vemos que para Paulo, a vida que deveriam ter com Deus, sensata, madura, racional, era o mesmo que viver de maneira santa, imaculada, como sacrifícios vivos. O que se pede é que os proto-cristãos de Roma conduzam suas vidas longe dos pecados, da violência, da injustiça, da imoralidade etc. Parece pouco, mas há uma grande revolução na maneira de se viver a fé nessas palavras.

Lembremos da justificativa que Paulo deu para que seus leitores seguissem seu conselho: “pelas misericórdias de Deus”. Sem dúvida, aqui ele está se referindo a um conjunto de convicções teológicas pelas quais julga ser Deus alguém digno de obediências. Deus se compadeceu dos homens e agiu em nosso favor, e saber disso deve motivar todos a servi-lo de maneira irrepreensível. O sacrifício de Jesus em favor dos homens é, para Paulo, a maior de todas essas misericórdias, mas outras poderiam ser mencionadas, como a revelação de Deus a toda a humanidade através da criação (Rm 1.19-20).

Desta forma, Paulo diz que não é porque Deus deixou mandamentos que os homens devem obedecer; nem é porque existe o medo de condenação no dia do juízo que devem se abster dos pecados. O amor e a gratidão eram razões suficientes para que Paulo seguisse a vida que seguia. Essa é a “obediência da fé” para a qual os romanos foram chamados (Rm 1.5), uma forma de obediência que não vem pela Lei, pelo medo, por ameaças, mas simplesmente por se acreditar no caráter misericordioso de Deus e amá-lo acima de todas as coisas. Em resumo e em nossas palavras, Paulo disse: “Exorto-vos irmãos que vivam servindo a Deus da maneira mais perfeita possível; façam não por mim e não pela Lei, façam por causa de Deus, por causa de seu caráter e por gratidão por suas misericórdias para conosco”. É uma pregação de libertação, onde se espera que cada cristão viva de maneira digna por conta de sua própria consciência. Pena que as igrejas de hoje ainda não atingiram a “racionalidade” ou “maturidade” que Paulo já atingira há dois milênios, e continuam querendo imputar santidade nos outros por meio de ameaças.

Na sequência do texto, no v. 2, Paulo parece regredir no raciocínio. A nova exortação não é nova, mas aprofunda o sentido da anterior. Agora ele orienta os irmãos a não se moldarem conforme o modelo apresentado a eles naqueles dias; era para que eles não imitassem os demais, mas que aceitassem ser diferentes. Claro que isso não significa excluir-se do mundo ou não receber qualquer tipo de influência cultural; o próprio Paulo é um homem do seu mundo e fala como judeu e gentio demonstrando quanto o mundo condicionou sua formação e maneira de pensar. Pelo v. 1 entendemos que aqui ainda estamos falando de coisas que “maculam” o servo de Deus, que o tornam um sacrifício inaceitável. Tais coisas devem ser evitadas.

O que Paulo espera é que os cristãos, gradualmente, sejam transformados pela renovação da mente. Eles deveriam mudar não de fora para dentro, trocando os lugares que freqüentavam, as roupas que vestiam, os amigos que tinham... a transformação só é real se nasce de dentro, da mente para o exterior. O modo de pensar deve ser mudado, e isso é algo mais racional do que espiritual. Vemos aqui uma clara relação com “culto racional” do versículo anterior. Paulo quer que seus leitores meditem, aprendam, entendam, e assim, mediante uma decisão consciente, mudem de vida. É uma exortação, não uma ordem; é um conselho valioso, não uma obrigação. Os cristãos precisavam conhecer para notar que a proposta de Jesus Cristo e de Paulo era melhor do que qualquer outra maneira de se viver. Novamente, o tema da liberdade dada ao cristão está em pauta.

Chegando às últimas palavras, experimentar a vontade de Deus, que é boa, agradável e perfeita, é a recompensa para aqueles que tomam a decisão certa. Isso é um incentivo, um argumento motivacional, que procura causar curiosidade e desejo. Se alguém quiser realmente saber como é boa, agradável e perfeita a vontade de Deus, deverá primeiro fazê-la.

Enfim, julgamos que Deus exerce um papel fundamental em todo o texto, confirmando a importância que a estrutura antes proposta lhe dá, fazendo-o emoldurar as ações humanas. Deus agiu antes, com atos de misericórdia, e isso é o motivo que leva os cristãos a o seguirem, a fazerem sua vontade espontaneamente. Deus, no fim, é também quem nos recompensa por seguirmos sua vontade, ao nos mostrar que o seu desejo é bom, agradável, perfeito. É deixada ao cristão apenas a tarefa de, a partir de seu conhecimento de Deus, mudar sua vida por amor e gratidão. Ele deve abster-se de tudo o que for indigno de um santo sacrifício, deve fazer-se imaculado tanto quando puder, deve mudar sua maneira de pensar, evitando a pressão que o mundo desses dias exerce sobre suas ações e pensamentos.

O texto, em momento algum se dirige a pessoas que não conhecem Jesus ou que podem não fazer parte do grupo cristão. O tema não é a salvação, a vida eterna, mas a conduta daqueles que já crêem. Paulo recusa-se a fazer ameaças, a mencionar o risco de voltar à condição de condenados, mas incentiva os cristãos a serem cada dia melhores. Isso, neste texto, não é algo milagroso, mas um ato consciente de renovação da mente. Deve o cristão pensar diferente, amar a Deus e querer servi-lo mais do que deseja ser semelhante aos desse século. Rm 12.1-2 é, portanto, um texto maravilhosamente construído para proporcionar crescimento e maturidade ao cristão, sem que isso seja resultado de ameaças, submissão a autoridades, mandamentos ou qualquer coisa assim. Não há muita religião por trás do ideal transmitido, só Deus é a motivação para que as pessoas mudem o que está ruim nelas mesmas, e como a mudança é individual, toda tentativa de forçar a mudança de outrem revela-se hipocrisia. Paulo ensina, exorta, convida à vida cristã de liberdade, mas cabe ao ouvinte ou leitor decidir se quer seguir nos seus caminhos, se quer subjugar-se ao senhorio da lei, da igreja, ou seja lá o que for.

Deixando o formalismo um pouco de lado nestas últimas linhas, confesso que para mim é um privilégio encontrar um texto bíblico tão atual, tão verdadeiro, tão inspirado... Este é o cristianismo que eu procuro viver, uma fé racional e pessoal, onde só me reporto a Deus, já que só a ele devo prestar contas. Eu lhe exorto a fazer o mesmo, mas a escolha é sua.

A imagem usada no inicio deste texto é uma tela de Rembrandt de 1635 intitulada simplesmente “Apostle Paul”.



[1] CROSSAN, J. D.; REED, J. L. Em Busca de Paulo: Como o Apóstolo de Jesus Opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas, 2007. pp. 23-48.


quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A IGREJA TEM AUTORIDADE PARA EXCLUIR?



A pergunta que nosso título coloca não é tão simples quanto pode parecer. Trata-se de um tema difícil, mas que procurarei abordar de maneira breve nas próximas páginas. Tenho feito isso já há algum tempo; escolho falar principalmente de temas complexos, onde há divergências de interpretações, e uma coisa interessante a observar quando nos debruçamos sobre temas difíceis ou polêmicos, é que geralmente o procedimento adotado pelas igrejas cristãs é diferente daquele sugerido pelo texto bíblico. Assim, mais que solucionar controvérsias seculares, procuro propor aos cristãos sinceros uma nova maneira de viver seu cristianismo. As pretensões são, portanto, mui modestas; nossas reformas são individuais e não sistêmicas. Contudo, não considero a discussão de hoje de pouca importância, pois a não compreensão do assunto já ocasionou muita injustiça, muitos traumas, muita violência e muitas mortes.

Para falar da exclusão ou mesmo excomunhão em igrejas cristãs, temos que delimitar nosso tema. Eu não tenho competência para falar de determinações legais. Acredito que uma igreja não pode escolher seus membros e impedir a entrada de quem quer que seja de acordo com a lei, mas só posso manter minhas argumentações dentro dos limites bíblicos, minha área de estudos. Então, teremos um estudo bíblico, o que é (temos que admitir) uma abordagem limitada para este tema. Espero que atenda às expectativas dos meus leitores, cada vez mais competentes e exigentes.

Entrando agora em nosso problema, gostaria de transcrever abaixo uma passagem bíblica que é provavelmente a mais usada para tratar do tema “exclusão”. Trata-se de Mateus 18.15-17, que diz assim:

(15) Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, ganhaste a teu irmão. (16) Mas, se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que, pela boca de duas ou três testemunhas, toda palavra seja confirmada. (17) E, se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano”

Aqui está um texto que costuma ser citado todas as vezes que se quer justificar o afastamento forçado de alguém. Lendo-o rapidamente vemos que há um personagem anônimo, provavelmente um cristão que peca contra um irmão e não aceita a repreensão de ninguém. As tentativas de demovê-lo são progressivas; primeiro ele é repreendido individualmente pelo irmão ofendido, depois por ele e mais outros, e por fim, por toda a igreja. Após estas tentativas, o pecador obstinado parece ser excluído da comunhão da igreja, pois passa a ser tratado como pecador e publicano. Bem, esse é o resultado de uma leitura rápida, mas há detalhes que quero abordar mais atentamente, pois acredito que nesses detalhes se escondem os segredos para leitura correta do texto.

Não sabemos que tipo de pecado foi cometido, mas o texto é só um exemplo, e pode ser aplicado a diversos tipos de pecados. Em todo caso, sabemos que é um pecado contra o irmão, o que já exclui grande número de possibilidades pecaminosas. Também estamos falando de algum tipo de erro que prejudica o próximo, e fazer mal ao próximo é quebrar um dos grandes mandamentos do amor (Mt 22.37-40). Um cristão que ofende um irmão está maculando o cristianismo em sua essência. Outra coisa que o texto nos diz é que esse pecado contra o irmão é mal visto por toda a comunidade. Veja que toda a igreja repreende o pecador conjuntamente tentando convencê-lo do erro, o que significa que não temos um líder qualquer tomando a decisão de excluir ninguém em nome dos outros. Trata-se de uma audiência pública, onde não há dois partidos lutando, mas uma pessoa que sozinha nega-se a seguir a opinião unânime da igreja, que provavelmente é mais acertada. Isso também exclui muitos pecados que são de particular interpretação, pois o erro em questão tem de ser óbvio. Em resumo, o processo indicado no texto só se aplica em casos extremos, onde não existem dúvidas sobre o mau procedimento do suposto réu, e todas as tentativas de conversão foram feitas.

Agora um detalhe mais técnico. Eu mesmo fui levado a usar o termo “réu” no final parágrafo anterior, palavra que pertence ao campo semântico dos julgamentos, cujo lugar vivencial é o tribunal. Mas será que temos em Mateus 18 um julgamento? O que nos leva a ver assim este texto? Penso que nossas Bíblias nos conduzem a isso ao empregarem outro termo jurídico que é “testemunhas”. Lendo isso nós somos automaticamente remetidos aos tribunais, e o pecador se torna um réu que deve se defender de acusadores. Todavia há nisso um possível problema de tradução, pois o substantivo grego que traduzimos por “testemunha” é martys, de onde deriva a nossa palavra martírio. Ela pode sim significar “testemunha”, alguém que está ali para declarar como ocorreu determinado evento, mas também possui um sentido menos jurídico, o de testemunhar ou proclamar a respeito do evangelho. Esse é o sentido que damos ao testemunho dos mártires, uma prova da veracidade do evangelho através da submissão à morte. Assim, é bem provável que a igreja de Mateus não esteja sugerindo a instituição de um tribunal contra o pecador, mas que esteja incentivando a pregação para que ele volte atrás. Essa proposta ocasiona uma pequena mudança na leitura do versículo 16 de conseqüências gigantescas; o objetivo já não é provar a culpa do pecador publicamente para então condená-lo, mas resgatá-lo através da pregação.

Confesso que posso estar enganado na hipótese acima, mas ela está de acordo com o que o texto diz no final. Como vimos, é fácil imaginar a partir do verso 17 que o pecador obstinado deve ser excluído da igreja; e ficamos com a impressão de que ele é esquecido, deixado de lado porque não quis ouvir aos apelos dos irmãos. Entretanto, mesmo em casos extremos em que um pecador ofende seu irmão, quebra o grande mandamento do amor ao próximo e não dá ouvidos a todos os apelos e pregações, fazendo-se um verdadeiro teimosos, não há condenação. O que o texto diz é que esse pecador deve ser tratado com pecador e publicano, e esses tais pecadores e publicanos são exatamente os alvos principais de nossa evangelização (obs. para uma boa hermenêutica desse texto não devemos nos deter nas categorias distintas de publicanos e pecadores, mas vê-los como categorias que resumem todos os tipos de pecadores que devem ser alcançados pela evangelização cristã).

Lembre-se de Jesus, que era na verdade mais amigo dos pecadores e publicanos do que dos religiosos. A pena, portanto, para um ex-irmão que se tornou um pecador obstinado, é que ele deve continuar sendo amigo da comunidade, comendo com eles, freqüentando a casa deles caso deseje, para que nessas ocasiões continue ouvindo sobre Jesus Cristo e quiçá se converta de seus maus caminhos. Nós, com nossa sede de vingança é que já usamos esse texto para excluir pessoas e por vezes até excomungá-las.

Anos atrás ouvi de um senhor que os protestantes não terão salvação, mas somente os católicos. O argumento era que Martinho Lutero fora excomungado pela igreja nos dias da reforma, e todos os descendentes do reformador estavam com ele fora da comunhão. Esta afirmação é tão ridícula que nem merece nossas considerações, mas será que a igreja tem esse direito de excomungar alguém e impedir-lhe a salvação? Será que algum homem recebeu o poder de salvar ou condenar outrem?

Lemos Mateus 18.15-17 e vimos que o texto é mais inclusivo do que pensávamos. Os pecadores continuam nossos amigos, e não devem ser afastados da igreja, embora não se concorde com o erro deles. A unidade textual seguinte, Mateus 18.18-19, dá ênfase à autoridade da igreja:

“Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu. Também vos digo que, se dois de vós concordarem na terra acerca de qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus”

Algo parecido foi dito antes, quando Jesus diz a Pedro: “E eu te darei as chaves do Reino dos céus, e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mateus 16.19).

Parece que a igreja católica estava correta ao entender que o texto bíblico dá ao cristão a autoridade para excluir pessoas, porém, o uso que se faz dos textos não está de acordo com o princípio cristão. Como certa vez me alertou meu professor e orientador Dr. Paulo Roberto Garcia, o objetivo dessas passagens não é nos dar autoridade para julgar os outros, mas nos alertar a respeito da grande responsabilidade que temos. Noutras palavras, a igreja possui as chaves das portas do céu, e pode até fechá-las a algumas pessoas, mas a sua responsabilidade é abrir tais portas para todos. A idéia é que no futuro, caso alguém não se encontre no Reino dos Céus, Deus poderá cobrar tais almas da igreja perguntando: “Você tinha a chave, por que você não abriu a porta para aquela pessoa entrar?”. Novamente, os textos nos responsabilizam pela salvação alheia, e não procuram nos dar o direito de condenação, o que seria contrário ao mandamento de não julgar (Mateus 7.1-5).

Falei do modo como deve-se tratar o pecador obstinado e da responsabilidade da igreja pela salvação de todos. Os textos estão na sequência em Mateus, devem ser lido conjuntamente. Agora, essa leitura pode ser confirmada pelo texto anterior a esses, Mateus 18.12-14:

“Que vos parece? Se algum homem tiver cem ovelhas, e uma delas se desgarrar, não irá pelos montes, deixando as noventa e nove, em busca da que se desgarrou? E, se, porventura, a acha, em verdade vos digo que maior prazer tem por aquela do que pelas noventa e nove que se não desgarraram. Assim também não é vontade de vosso Pai, que está nos céus, que um destes pequeninos se perca”

E esses não são os únicos textos desse agrupamento, que pretende destacar exatamente a necessidade de se lutar por todos os filhos de Deus. Como ler essa analogia da ovelha perdida, que fala claramente que Deus não quer que ninguém se perca, e em seguida interpretar Mt 18.15-17 como um texto que legitima a exclusão? Isso seria um crime exegético imperdoável, mas coisa que fazemos quando queremos justificar biblicamente nossas atitudes desumanas.

Enfim, não expulse ninguém da igreja, nem trate cristãos e não-cristãos com distinção; não amaldiçoe ninguém nem se faça juiz em lugar de Deus; não desista do pecador e não deixe de perdoar seu ofensor... se quiser inclua isso nas margens da sua Bíblia, para nunca mais usá-la como defensora de suas más ações.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

NOVO ARTIGO PUBLICADO

Olá amigos leitores.

Novamente venho comunicar a publicação de um artigo meu, que fala da exegese bíblica diante da nova maneira de se fazer história. Desta vez a publicação é pela revista Ciberteologia (teologia e cultura) de Setembro de 2010. A revista é da editora Paulinas e disponibiliza os textos (de diversos temas relacionados) on-line.

O site da revista é: ciberteologia.paulinas.org.br

Mas se quiser ir direto ao meu artigo para baixá-lo em pdf acessem a partir do endereço abaixo:

http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/index.php/artigos/historia-cultural-e-exegese-biblica-reflexoes-sobre-as-contribuicoes-da-historia-cultural-para-a-metodologia-exegetica/