1 - ABERTURA: Gl 1.1-5
“(1) Paulo, apóstolo (não da parte de homem nem por meio de homem, mas por meio de Jesus Cristo e de Deus pai que o ressuscitou dos mortos) (2) e todos os irmãos que estão comigo às comunidades da Galácia. (3) Graça a vós e paz de Deus nosso pai e do senhor Jesus Cristo (4) (que deu a si mesmo por nossos pecados para nos arrancar do presente século mau segundo a vontade de nosso Deus e pai), de quem (é) a glória pelos séculos dos séculos, amém”
O que nos propomos a fazer nas próximas páginas é uma análise exegética breve dos primeiros versículos da carta de Paulo aos gálatas. Trata-se de uma leitura e aproximação de sua introdução, a fim de que noutro momento nos voltemos para o texto desta carta mais preparados. Decidimos começamos por uma leitura direta, aproximativa, tirando conclusões prévias de conteúdo e deixamos questões mais técnicas para depois. Porém, vale observar que o texto citado acima é uma tradução mais literal do texto grego que produzimos especialmente para este trabalho,[1] assim, o leitor não deve surpreender-se com eventuais diferenças em relação às versões bíblicas mais tradicionais. Variações na tradução serão explicadas ao longo das páginas.
Logo no v. 1 Paulo faz questão de apresentar-se como apóstolo divinamente vocacionado. Isso, no texto, não é algo sem importância. Antes, esse primeiro versículo já nos apresenta um dos temas centrais da carta aos Gálatas, que é a defesa da apostolicidade de Paulo. Lembremos que ele nunca viu Jesus, não andou com os apóstolos originais que conheceram Jesus, e até teve conflito com eles por abdicar de regulamentos típicos da religiosidade judaica quando pregou aos gentios. Sem dúvida, havia muitos que questionavam sua autoridade como apóstolo por conta disso tudo, e não surpreende-nos vê-lo defender sua autoridade para ensinar sobre Cristo. Temos, por exemplo, o livro de Atos que foi escrito três ou quatro décadas mais tarde e, embora dedique sua maior parte à trajetória de Paulo como pregador aos gentios, em nenhum momento reconhece-o como apóstolo.[2]
No texto, a defesa de Paulo é esta: “eu sou apóstolo chamado diretamente por Deus, e não por homens”. Se alguém crê nisso, deve respeitar a autoridade de Paulo de forma igual ou até maior do que a dos demais apóstolos. Toda a teologia paulina, então, estará centrada em seu contato direto com o Cristo, e para evitar contradizer-se, o apóstolo jamais poderá demonstrar qualquer admiração ou inveja pelo ministério dos outros apóstolos, pois se eles merecem respeito pela história que tiveram com o Jesus da história, então pode-se descartar o ensino de Paulo, que era divergente. Paulo centrava-se no Jesus ressuscitado, na experiência direta que teve com ele, e sua pregação estará nele centrada, considerando de valor secundário o contato direto que outros apóstolos tiveram com o Jesus histórico.
Pois bem, ele era o apóstolo, o principal autor da carta, porém, no v. 2 vemos que havia outros irmãos[3] com ele e que participam desta composição como co-autores. Geralmente lemos as cartas de Paulo tendo apenas este apóstolo em mente, mas lembrando dessa autoria coletiva podemos nos perguntar como ela se expressa na carta, ou se na verdade Paulo fala por si mesmo e os outros apenas “assinam” com ele, já demonstrando submissão à autoridade apostólica antes defendida.
Também é neste v. 2 que temos os destinatários da carta: “às comunidades da Galácia”.[4] Por aqui já vemos que não é uma carta pessoal, destinada a uma pessoa só. Tampouco essa carta foi escrita para um só grupo. Por isso, o plural “comunidades” nos leva a crer que haviam vários pequenos grupos que se reuniam periodicamente nas residências para cultuar Jesus como salvador, e era de se esperar que a carta paulina fosse lida publicamente em todas elas, ou copiada desde sua chegada para acesso de todas as comunidades. Imaginar esse processo de divulgação nos dá um vislumbre de como os textos paulinos ganharam fama no cristianismo primitivo após a morte de Paulo, espalhando-se e posteriormente ganhando status canônico.
Após a apresentação pessoal do autor da carta, era costume de Paulo seguir a abertura com uma bênção, como a que aqui lemos nos vv. 3-5: “Graça a vós e paz de Deus nosso pai e do senhor Jesus Cristo...” Inicialmente há uma abertura amigável que aproxima remetente e destinatários. Todavia, nesta seção, ao falar de Jesus Cristo, Paulo interrompe-se para apresentar melhor esse Jesus e glorificá-lo. Então, na segunda parte do v. 4 fala-se sobre Jesus como uma espécie de oferta feita por Deus para nos arrancar ou livrar[5] do presente século mau. Jesus é relacionado, então, às ofertas oferecidas pelos judeus no Templo de Jerusalém, que tinham por objetivo perdoar pecados e livrar os pecadores das conseqüências inevitáveis de seus atos. É uma primeira abordagem sobre o outro tema central da carta: a discussão sobre a validade da Lei judaica mesmo após a vinda de Jesus, o Messias, e sua oferta de graça. É melhor deixar essa discussão para outros momentos, quando textos mais diretos porventura estiverem sendo analisados. Mas podemos guardar conosco que já temos na abertura da carta os seus dois temas principais expostos; trata-se de uma prévia bem sucinta daquilo que adiante se pode ler.[6]
1.1 – Delimitação e Forma
Passando para questões mais técnicas de nossa exegese, vamos justificar nossa delimitação, explicar a escolha que fizemos de estudar somente esses primeiros versículos sem seguir adiante neste mesmo trabalho. Isso não é tarefa difícil para esta introdução, pois ela segue os padrões das cartas paulinas apresentando brevemente os três elementos que tradicionalmente são usados por Paulo: remetente, destinatários e bênção.[7] Outra característica própria de Paulo pode ser identificada aqui, é a abertura de eventuais “parênteses” quando se menciona um tema relevante. Paulo faz pausas no andamento do texto para se aprofundar nesses temas, interrompe-se para explicar expressões de significado teológico fundamental.[8] Aqui, vimos isso quando ele fala de seu apostolado (v. 1) e quando ele fala de Jesus Cristo (v. 4); em ambos os casos nós demarcamos isso com verdadeiros parênteses em nossa tradução.
Como estamos no começo da carta, a pergunta que resta a ser feita a respeito da delimitação do texto é: até onde vai essa introdução de Gálatas? Primeiro, essa pergunta é respondida quando notamos que os passos padrões da introdução à carta paulina já foram dados. Em segundo lugar, basta ler o versículo 6 para notar como o autor muda o tom do texto ao introduzir uma crítica árdua contra seus destinatários. Essa transição prova que a partir de então estamos noutra seção, que deverá ser analisada de maneira independente.
Temos, assim, nessa breve abertura, uma estrutura dividida em três seções principais que são vez ou outra intercaladas por apêndices explicativos. Expressando isso graficamente para fins didáticos, temos:
A) Remetente: Apóstolo Paulo e companheiros
A’) Apêndice: Apóstolo vocacionado por Deus não por homens
B) Destinatários: Comunidades da Galácia
C) Bênção: Graça e Paz da parte de Deus Pai e Jesus Cristo
C’) Apêndice: Jesus é o que se ofertou para nos livrar do tempo mau
1.2 – Datação e Localização Geográfica
Sempre devemos evitar usar as conclusões de outros pesquisadores para datar ou localizar geograficamente um texto antes de lê-lo com atenção em busca de indícios internos. Mas nem sempre o texto nos fornece tais sinais, e nem sempre os sinais fornecidos são esclarecedores. Assim, em relação à datação, nossa introdução não ajuda muito; deveras o texto de Gálatas como um todo faz-se um desafio para os exegetas.[9] Não temos instrumentos suficientes para arriscar qualquer data para a produção da carta de Paulo aos Gálatas, e só podemos situá-la dentro do período de atividade do apóstolo. Neste caso, seguiremos com reservas algumas incertas opiniões alheias, que julgam que a carta fora escrita por volta de 52 a 55 d.C.,[10] por mais imprecisa que possa ser esta datação.
Quanto à localização geográfica, vamos nos voltar para os destinatários, os gálatas, e não para Paulo e seus companheiros. Embora tenhamos uma referência sobre as comunidades da Galácia no v. 2, temos outro problema. Vejamos qual é este problema nas palavras de Giuseppe Barbaglio:
“No século I d.C., o vocábulo Galácia indicava duas realidades distintas: a região gálata e a província romana homônima. A primeira, situada no centro-norte da Ásia Menor [...] A segunda, mais vasta, além da região gálata, compreendia a Pisídia, a Licaônia, uma parte da Frígia, a Isáuria, a Paflagônia e o Ponto [...] Eis, pois, a pergunta: Paulo escreve às Igrejas da região gálata ou às comunidades cristãs da província romana da Galácia?”[11]
O comentarista G. Barbaglio não oferece, e nem poderia oferecer, uma resposta definitiva. Ele está, com base nos relatos das viagens de Paulo em Atos, mais voltado para a primeira opção, isto é, para a região centro-norte da Ásia Menor que é territorialmente mais limitada. Ainda assim, Barbaglio salta o problema ao dizer que “não se deve valorizar demais a importância do debate [...] A interpretação do escrito paulino não depende, substancialmente, dessa questão”.[12]
Essa dúvida entre “província ou região” também deu trabalho para C. J. den Heyer, que opta pela segunda opção. Para ele, Paulo escreveu no fim do seu ministério uma carta para diversas comunidades da província romana da Galácia, que incluía Icônio, Listra e Derbe. Mas, a exemplo do outro comentarista, Heyer acrescenta: “... a questão ‘província ou região’ não é decisiva nesse debate”.[13]
Diante de um problema tão debatido e sem consensos, seremos sensatos se guardarmos os resultados alcançados pelos pesquisadores anteriores sem fecharmos a questão. A aproximação do problema em si deve nos satisfazer, já que uma definição não acrescentaria muito na interpretação do texto em si.
1.3 – Uma Introdução Completa
A conclusão a que chegamos após essa primeira aproximação de Gálatas nos mostrou que a abertura da carta paulina não é, em nenhuma hipótese, acidental. Na verdade ela possui um propósito bem específico, que é apresentar numa estrutura habitual o remetente e o(s) destinatário(s) do documento, e abrir o diálogo indireto de maneira amigável por meio de uma bênção. Além de cumprir esses primeiros objetivos (A, B e C), Paulo aproveita esta abertura para incluir os temas centrais de sua carta de maneira secundária (apêndices A’ e B’). Na sequência a defesa da autoridade apostólica de Paulo e o debate sobre o encontro entre a Lei da retribuição exposta na Torá e a Lei da graça exposta no evangelho de Jesus nortearão a ácida correspondência entre Paulo e os proto-cristãos[14] da Galácia.
BIBLIOGRAFIA
BARBAGLIO, Giuseppe. As Cartas de Paulo (II): Tradução e Comentário. São Paulo: Loyola, 1991.
CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Em Busca de Paulo: Como o Apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas, 2007.
HEYER, C. J. den. Paulo, um Homem de Dois Mundos. São Paulo: Paulus, 2009.
LIMA, Anderson de Oliveira. Enunciados Teológicos Paulinos em Estrutura Cumulativa: Estudo sobre Romanos 1.1-7. São Paulo, 2010.
NESTLE, Eberhard; ALAND, Kurt. Novum Testamentum Graece. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 27a ed. 1993.
QUESNEL, Michel. Paulo e as Origens do Cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2008.
THEISSEN, Gerd. O Novo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2007.
[1] Nossa tradução foi produzida a partir do texto grego de: NESTLE, E.; ALAND, K. Novum Testamentum Graece.
[2] Veja: CROSSAN, J. D.; REED, J. L. Em Busca de Paulo. pp. 36-38.
[3] O termo grego é adelfoi, que traduzimos preferencialmente por “irmãos”, embora algumas versões da Bíblia em língua portuguesa o traduzam por “companheiros”.
[4] Também preferimos substituir o termo “igrejas” por “comunidades” quando o texto grego traz ekklesiais. Assim procedemos por ser a expressão “igreja” carregada de sentidos para o leitor moderno, acostumado a aplicá-lo às instituições religiosas do cristianismo que nem se comparam aos ajuntamentos do cristianismo primitivo realizado em lares e com liturgia incerta.
[5] Aqui temos o verbo ekséletai (subjuntivo aoristo médio, 3ª pessoa singular, de eksairéo), que pode significar primordialmente “arrancar”, “tirar”, “subtrair”, mas que também pode ter o sentido de “livrar” ou “libertar”. Optamos pela primeira opção, mas há diferenças radicais na compreensão do texto de acordo com a opção que o exegeta fizer na sua tradução. Em todo caso, essa escolha não influi diretamente sobre a leitura desta introdução.
[6] HEYER, C. J. den. Paulo, um Homem de Dois Mundos. pp. 166, 169.
[7] BARBAGLIO, G. As Cartas de Paulo (II). p. 133.
[8] Veja a análise que fizemos sobre a abertura da carta aos Romanos em: LIMA, A. de O. Enunciados Teológicos Paulinos em Estrutura Cumulativa.
[9] THEISSEN, G. O Novo Testamento. p. 46.
[10] HEYER, C. J. den. Paulo, um Homem de Dois Mundos. p. 166; QUESNEL, M. Paulo e as Origens do Cristianismo. p. 33.
[11] BARBAGLIO, G. As Cartas de Paulo (II). pp. 14-15.
[12] BARBAGLIO, G. As Cartas de Paulo (II). p. 15.
[13] HEYER, C. J. den. Paulo, um Homem de Dois Mundos. p. 166.
[14] Pareceu-nos sensato evitar chamar essas primeiras gerações de discípulos de Jesus de cristãos, posto que muitas das características que para o leitor moderno definem um “cristão” ainda não estavam definidas, como por exemplo, sua separação definitiva em relação ao judaísmo. Este ajuntamento de gentios e judeus que acreditavam em Jesus como Messias é apenas um dos princípios do que no futuro se tornaria uma nova e independente religião, motivo pelo qual é melhor o encararmos como um grupo em processo inicial de definições identitárias chamando-os de proto-cristãos.
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