Primeiras Palavras
Tenho escrito muito, dezenas de páginas por semana, e gosto muito do que faço. Mas ao contrário do que se pode pensar, não escrevo somente porque tenho a intenção de ensinar, escrevo também para aprender. É escrevendo que penso melhor, que desenvolvo e organizo idéias, e tal exercício tem me servido muito bem. Se estás lendo este texto no meu blog, poderás notar que meu último texto, intitulado “O Futuro a Deus ‘Não’ Pertence”, é um exemplo do que estou falando, onde mais registro pensamentos do que qualquer outra coisa.
Hoje, voltei às letras apressadamente para meditar e ensinar algo que julgo ser de grande importância. Todo cristão busca conhecer Jesus e vê nele o maior exemplo a ser seguido, mas em algum momento da sua vida deve se perguntar como é possível realmente assemelhar-se a Cristo, posto que ele descrito em tão alto padrão. Em alguns aspectos imitar Jesus não é problema; todos sabem sentar na casa dos amigos e compartilhar uma boa ceia, todos concordam que é preciso orar, que é preciso dividir o que sobre Deus aprendemos com os outros... Todavia, quantos estão prontos a aceitar o celibato que ele aceitou? Quantos deixam casa e família para anunciar o Reino de Deus aos pobres de outras regiões? Quantos abrem mão dos poucos pães e peixes que possuem para alimentar os famintos?
Não precisamos nos alarmar por isso. É absolutamente normal que façamos uma leitura seletiva da Bíblia, o problema é que geralmente essa seleção não é consciente, mas instintiva. Em decorrência dessa inconsciência, muitos selecionam como normativos para suas vidas textos que não precisávamos levar ao “pé da letra”, enquanto descartam outros muito mais relevantes. O objetivo desse texto é distinguir três aspectos básicos da religiosidade bíblica, e avaliar qual ou quais deles são relevantes para o cristão que pretende agradar a Deus em pleno século XXI. Essa tarefa primeiro nos proporcionará, a mim e ao leitor, aprendizado, e depois nos fornecerá subsídios para a vida cristã comprometida e coerente.
Devo mencionar que mais uma vez devo a John Dominic Crossan a distinção dos três aspectos da religiosidade bíblica que vou expor, o que deixou-me encarregado apenas de transmiti-la aqui em linguagem mais acessível ao meu leitor. Aos interessados no tema peço que leiam “O Nascimento do Cristianismo”, ed. Paulinas, pp. 321-328.
Três Aspectos da Religiosidade Bíblica
A religiosidade bíblica desenvolveu, durante os vários séculos em que os judeus padeceram sob o domínio de impérios estrangeiros, diferentes alternativas de resistência à opressão baseadas na fé. Na verdade, os judeus adotaram e adaptaram formas de resistência pré-existentes em outras culturas, gerando movimentos diversos que de hoje de maneira muito genérica chamamos de “judaísmos”. O que aproxima essas diferentes formas de resistência é o que chamamos de escatologia, ou seja, a expectativa de que as circunstâncias desfavoráveis seriam transformadas no “fim”, seja esse “fim” o fim de um império, de uma era, do mundo, da sua vida terrena etc.
A primeira dessas formas de religiosidade judaica é o que chamamos de apocalipsismo. Nela, nega-se o mundo presente através da crença de que Deus intervirá de maneira decisiva na história para pôr fim às injustiças. João Batista era adepto do apocalipsismo, e advertia seus ouvintes sobre a “ira vindoura” (Lc 3.7). O anúncio do Reino de Deus, comum a João Batista e a Jesus, é também tipicamente apocalíptica, pois implica necessariamente no fim de todo governo humano para que Deus assuma o comando. O apocalipsismo não é somente esperança futura, traz consigo também certo grau de violência, que se não é humana, ao menos é divina. O que se espera é, falando francamente, uma matança dos inimigos para a inauguração de um novo mundo purificado, uma guerra do Armagedom sanguinária que inspirou muitos apocalípticos a buscarem a justiça através da guerra.
O apocalipsismo não se extinguiu, como podes pensar, e grupos de várias religiões continuam esperando um evento salvífico como a volta de Cristo, o arrebatamento da igreja, o fim do mundo... O ponto negativo é que nessa espera alguns crêem que o tempo está se esgotando e querem “converter” os outros à força. Estes e gostam de textos que dizem para quem não tem espada adquirir uma (Lc 22.36), ou que os inimigos do homem estarão na sua própria casa (Mt 10.36). Outros, mais radicais, crendo que a hora chegou se suicidam, ou partem para a guerra civil como uma forma de dar início ao julgamento escatológico como fizeram os judeus em 66-70 d.C. e Che Guevara na América há algumas décadas. Pena que a vitória pela espada nunca é definitiva, e quem vence pela espada tem que manter seu governo também pela espada, numa tensão que a qualquer momento pode explodir em novas batalhas.
O segundo aspecto da religiosidade judaica é chamado de ascetismo. Os adeptos dessa forma de religião combatem o mundo através do isolamento e da purificação individual. São ascéticos os monges e as freiras, que separam-se do mundo, seguem padrões rígidos de alimentação e jejuns, e fazem votos de castidade. Eles esperam aproximar-se de Deus afastando-se do mau que está no mundo, e consideram-se vocacionados para tal forma de vida. Protestam assim dizendo pelas atitudes de renúncia que o que há “lá fora” não é bom. João Batista era também um desses, pois isolou-se no deserto, não comia nada além de gafanhotos e mel, vestia-se humildemente, purificava-se a si e aos seus discípulos através de um banho ritual, e ao que tudo indica não tinha mulher (Mt 3.1-6). Jesus não foi tão radical na prática ascética quanto João; comida livremente e não parece ter adotado qualquer banho ritual em seu seguimento. Todavia, Jesus também deixou sua casa e família pela sua missão, não tinha esposa, e isolava-se para tempos de oração. Assim ele inspirou nossos padres ou mesmo evangélicos que gostam de subir montes e jejuar em busca de santidade.
O último tipo de religiosidade que quero mencionar é o chamado eticismo (de ética). Só pela estranheza que o nome nos transmite, já dá pra imaginar que este é o aspecto menos mencionado pelos religiosos de hoje. Neste caso a resistência ao mundo não é feita em isolamento físico, mas em mudança de atitudes cotidianas. O foco não está na intervenção de Deus, mas na mudança da sociedade injusta através das ações justas dos adeptos, inspirada, todavia, no conhecimento de um Deus que é justo. Esse tipo de religiosidade ensina a não mais participar de qualquer instituição promotora da injustiça, a não mais colaborar com a violência, com a desigualdade social, a crer que mudando as pessoas mudamos o mundo. Uma característica marcante desse tipo de religiosidade é que ela se nega a reagir a ações violentas (Mt 5.39), motivo pelo qual nasceu desde os primórdios do cristianismo a idéia de que o martírio era um privilégio a ser recebido com alegria.
Sem dúvida Jesus e os seus primeiros seguidores eram sérios adeptos desse eticismo. Jesus ensinou a dar a outra face aos que nos agridem (Mt 5.39), crendo que tal atitude resultará em vida eterna (Mt 10.28); ensinou a não dar as costas aos que nos pedem (5.42), a não cobrar pelas boas ações praticadas (Mt 10.8), a não tratar ninguém com preconceito (Mc 2.17) etc.
Que Aspecto da fé Bíblica Devemos Viver?
Tu deves ter notado que os três aspectos que distinguimos estão misturados na Bíblia e aparecem em medidas diferentes a cada personagem. Alguns são mais apocalípticos, outros mais radicais e individuais, e outros mais adeptos da sabedoria e da vida comunitária. A questão é, então, aprender a distinguir em nossa própria vida esses três aspectos e avaliar se nossas atitudes estão de acordo com nossas expectativas escatológicas. Isto é, como acreditamos que as coisas erradas podem mudar? Estamos agindo de acordo com essa nossa fé?
Minha opinião pessoal é que do apocalipsismo podemos aproveitar a fé de que esse mundo repleto de coisas negativas será transformado, e que Deus está nos esperando no fim para receber os “justos”. Mas essa esperança não deve resumir-se em passividade e nem tampouco culminar
Quanto ao ascetismo, creio que devemos modernizá-lo ou mesmo descartá-lo. Não acredito que o mundo será transformado pelo nosso isolamento, antes, ele nos escarnecerá. Não vejo valor algum em banhos rituais como o batismo, nem em isolamentos como fazem os monges ou os evangélicos em vigílias nos montes. Também não consigo imaginar nenhuma utilidade para os jejuns, para a assiduidade supersticiosa a todas as reuniões da igreja, ou para a castidade. Nem creio também, que o cristão de hoje deve abrir mão dos seus bens simplesmente por acreditar que a pobreza é uma virtude. Assim, em minha opinião, do ascetismo pouco se aproveita para nossos dias. Talvez a eventual prática da meditação e a abstenção de alimentos prejudiciais à saúde ou a produtos como cigarro e bebidas possa nos servir, mas em qualquer implicação espiritual. O perigo é que adotando o ascetismo em qualquer medida, sempre corremos o risco de escorregar para o rigor da lei, que sem qualquer motivo racional proíbe um de cortar o cabelo, outro de usar roupa vermelha, outro ver TV, outro de ir à faculdade, outro de se casar com pessoa de outra religião, outro de praticar esporte etc.
Porém, não há qualquer “contra-indicação” à adoção completa da religiosidade ética que predominava em Jesus e na primeira geração de cristãos (conforme os testemunhos textuais dos primeiros trinta anos de cristianismo). É desse aspecto da religiosidade bíblica que aprendemos a amar o próximo como a nós mesmos, e assim, se toda ação por nós praticada estiver condicionada por esse princípio do amor, não há como errar. O cristianismo ético baseia-se na vida real, trata dos problemas que as pessoas enfrentam no dia a dia e fala ao mundo em linguagem clara e sábia. Ele pode ser facilmente adaptado a cada nova geração, o que a torna viável e de fácil aplicação a toda cultura.
No cristianismo ético, não há criatividade para se criar animais mitológicos ininteligíveis que nunca são compreendidos e só levam a intermináveis discussõesteológicas, e nem há limites doutrinários que sem notarmos tornam-se abusivos e servem para que líderes opressores controlem as massas. Tudo é avaliado por um só critério: isso faz bem ao próximo? Então devemos fazê-lo. Isso faz mal ao próximo? Então deve ser rejeitado. Essa me parece a parte que devemos prestigiar da religiosidade bíblica; talvez, ela seja a única realmente necessária.
Eram estas as coisas que eu tinha a dizer hoje. Agora tu podes descartar o que leu, reler o texto para assimilá-lo com maior clareza, ou fazer logo sua opção e seu auto-exame. Seja qual for tua escolha, faze-a conscientemente. Decide o que vais vivenciar e o que pretendes descartar da Bíblia, e não te enganes pensando que alguém é capaz de ser tudo isso ao mesmo tempo, pois se tal coisa fosse possível, teríamos uma figura estranhíssima que certamente não desejaríamos imitar. A maneira distinta com que cada profeta, apóstolo ou messias da Bíblia montou sua própria religiosidade é sinal de que não estamos errando ao fazer isso; erramos mais quando abaixamos a cabeça e anulando a capacidade de discernir que Deus nos deu seguimos um padrão religioso que alguma igreja nos ditou. ¡Viva la revolución!