Introdução:
Este breve estudo sobre o tema dos dízimos surgiu de uma necessidade prática. Na comunidade cristã em que participo temos agido com liberdade rara em relação aos dízimos e ofertas, coisa incomum se compararmos nossa prática com aquilo que vemos nas igrejas de forma geral. Nesta comunidade, cada um ajuda com os compromissos financeiros da forma que pode ou deseja, e não há qualquer exigência aos membros quanto a isso. Porém, tal prática ali, acontece de maneira natural, impensada para muitos. Creio que a maioria das pessoas, que não são muitas, não saberiam explicar a razão para essa maneira diferente de agir, e poderíamos até supor, que alguns ainda sintam-se de alguma forma culpados. Isso seria natural, já que alguns viveram muitos anos ouvindo nas igrejas evangélicas que não entregar dez por cento de seus rendimentos à igreja é roubar a Deus.
Agora, foi-me dada a oportunidade e a responsabilidade de refletir com o grupo sobre isso. Vou ler alguns dos textos bíblicos que mencionam a atitude esperada em relação às finanças do “servo de Deus”, e tentar encontrar nos textos qual a forma mais bíblica de lidar com a questão. Vamos então aos textos, fazendo breves comentários sobre eles e sua intenção original, para que ao final tiremos conclusões adequadas baseadas no conjunto, e não em alguns versículos apenas. Que essa leitura possa dissipar as dúvidas minhas e do leitor, que estando certo ou errado no presente, certamente anseia por guiar sua vida da maneira mais correta possível em relação às escrituras.
1 – Os Dízimos de Malaquias 3.7-12:
Este é o texto mais lembrado quando pensamos a respeito de dízimos. Ele tem sido tão repetido nas igrejas que na verdade ninguém mais o interpreta. Quero dizer que nossa leitura está sempre condicionada pelas muitas apresentações que no passado foram feitas diante de nós. Assim, creio que o grande desafio que temos de enfrentar é o de superar a tradição, as pré-concepções que até o momento parecem ser a maneira segura de interpretar o texto.
Vamos lê-lo em uma versão bem tradicional, de João Ferreira de Almeida, e ver o que ele diz. Mas temos de ter o cuidado de ler a unidade textual inteira, e não apenas o versículo 10, como se costuma fazer:
“(7) Desde os dias de vossos pais, vos desviastes dos meus estatutos e não os guardastes; tornai vós para mim, e eu tornarei para vós, diz o SENHOR dos Exércitos; mas vós dizeis: Em que havemos de tornar? (8) Roubará o homem a Deus? Todavia, vós me roubais e dizeis: Em que te roubamos? Nos dízimos e nas ofertas alçadas. (9) Com maldição sois amaldiçoados, porque me roubais a mim, vós, toda a nação. (10) Trazei todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha casa, e depois fazei prova de mim, diz o SENHOR dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu e não derramar sobre vós uma bênção tal, que dela vos advenha a maior abastança. (11) E, por causa de vós, repreenderei o devorador, para que não vos consuma o fruto da terra; e a vide no campo não vos será estéril, diz o SENHOR dos Exércitos. (12) E todas as nações vos chamarão bem-aventurados; porque vós sereis uma terra deleitosa, diz o SENHOR dos Exércitos”
Bem, para começar temos que entender que o texto trata de um problema religioso e econômico, coisas que na antiguidade não podiam ser consideradas separadamente como hoje fazemos. Todos os problemas, fossem eles econômicos, militares, de saúde, ou o que for, eram encarados como problemas também religiosos. Vejo então, que no período em que o texto foi escrito havia um problema sério com o qual o povo estava lidando, a saber, a pobreza e a fome decorrente.
O problema do povo para o qual o texto se destinava era a fome, mas o nosso é que toda a solução oferecida para a solução da fome é-nos extremamente antiquada. Como era costume na antiguidade, os homens sacrificavam animais às divindades para que seu deus mandasse chuva, para fizesse frutífera as plantações na temporada, e é disso que se trata em Malaquias 3.7-10. Esse derramamento de sangue animal como solução aos problemas sociais parece-me uma proposta equivocada.
Vamos por parte. Primeiro, no v. 7, o povo é acusado de não seguir a religião dos antepassados. Essa é a explicação dada para a situação difícil que enfrentavam, mas ignorante, esse povo nem sabe em que tem errado. O autor, falando em nome de Deus, se propõe a ensiná-los. Dos versículos 8 a 9 o suposto “pecado” é claramente exposto: eles não mais levavam seus dízimos e ofertas à casa do Senhor. Para entender isso melhor temos que voltar um pouco no tempo.
O texto em questão foi escrito provavelmente em meados do século V a.C. Após o retorno do exílio babilônico, o povo de Judá se propôs a reconstruir suas cidades e o Templo de Jerusalém. A obra foi feita por iniciativa popular, e a construção foi terminada, teve ainda dificuldades de se estabelecer como centro da religiosidade popular. Aconteceu que desde os últimos sacrifícios feitos no Templo antes do exílio tinham-se passado mais de um século, e esta geração sabia muito pouco sobre aquela antiga religiosidade baseada em sacerdotes. Consequentemente, a reinauguração do Templo deve ter decepcionado seus construtores. O número de sacrifícios e peregrinações não era o esperado, e as pessoas que viviam dos ofícios religiosos notaram que não sobreviveriam assim, sem a adesão nacional. Começou então a campanha, da qual Malaquias 3.7-10 faz parte, para a revitalização da religião do Templo.
Temos então, neste texto, uma propaganda sacerdotal, um chamado para a volta à religião dos antepassados que dá ênfase nos sacrifícios como forma de apazigua a divindade e obter boas colheitas. Porém, é curioso que essa propaganda não coincida com a principal função para a qual os sacrifícios do Templo foram criados, que é o perdão de pecados. Quero dizer que a função de perdoar pecados, fundamental na trajetória do Templo de Jerusalém, é ignorada nesse texto, e o apelo limita-se à solução da fome. Por isso nos v. 10 e 11 a recompensa pelos dízimos e ofertas não é a remissão, mas a colheita farta. Foi isso o que me fez supor que o problema mais premente daquela geração era a fome.
O autor do texto obviamente pertence à linha sacerdotal, e pedia que pessoas já empobrecidas ainda abrissem mão de parte do seu sustento para investirem no sistema religioso do Templo. Mas em nenhum momento podemos afirmar que esse autor sacerdote queria aproveitar-se da fé das pessoas para benefício próprio. Mesmo sabendo que os sacerdotes viveriam também desse investimento feito no Templo, a fé desse autor sempre respondia com sacrifícios aos problemas da sociedade. Na sua religião, ter alimento no Templo era o primeiro passo para que houvesse alimento nas aldeias, e ele facilmente relacionou a escassez do Templo com a escassez das fazendas. Como eu disse antes, essa é uma religiosidade antiga, ultrapassada, pois não acreditamos mais que sangue de animais agrada a Deus e que é preciso tais sacrifícios para que a terra produza. A produtividade dos nossos campos hoje depende de trabalho, tecnologia, e um pouco de sorte.
Agora, alguns problemas hermenêuticos. Se o texto traz uma proposta religiosa absolutamente obsoleta, por que ele é tão popular nas igrejas? Como os leitores de fé se apoderam dele fazendo-o determinante ainda hoje? Para mim, essa atualização é feita através da substituição arbitrária de elementos originais do texto por outros que nos interessam. Veja:
Nós brasileiros não somos, com algumas exceções, os judeus aos quais o texto se dirige; somos os gentios que aparecem no versículo 12 como aqueles que assistiriam a prosperidade de Judá após a revitalização do Templo. Assim, para sermos honestos, o apelo não foi dirigido a nós, embora seja esse tipo de apropriação do texto uma prática bastante comum e até aceitável pela fé. O outro problema é a “casa do tesouro”, para onde devem ir os dízimos e ofertas. Hoje toda igreja sente-se apta para isso, mas sem dúvida quem escreveu o texto discordaria dessa opinião. Na verdade, todas as ofertas e dízimos deveriam ser oferecidas no Templo de Jerusalém, e a extinção de tal Templo, mesmo para os judeus, impede a aplicação desse texto de maneira precisa. Quem diz que a casa do tesouro agora é sua igreja, obviamente está aproveitando-se do texto. Temos ainda a questão da fome. O texto procura solucionar um problema econômico nacional, e não fazer enriquecer aqueles que seguirem suas instruções, como hoje muitos acreditam.
Eu acho que se há algo que realmente poderia ser aplicado aos nossos dias a partir desse texto é que nossa fé ou práticas religiosas precisam estar voltadas principalmente para a solução da fome. Isto é, todos têm direito ao mínimo necessário para uma sobrevivência digna, humana, e é absolutamente válido chamar os homens e mulheres de fé para contribuir na solução de tal problema. A falta de comida, roupa, moradia, saúde, sempre esteve presente na história da humanidade; e a fé bíblica, como vemos a partir de Malaquias, sempre colocou essa escassez desumana em pauta. Nós é que escolhemos apenas a parte do dízimo e esquecemos sua verdadeira aplicação. No entanto, quando hoje aplicamos nossa fé na solução das crises da humanidade, não precisamos mais fazê-lo de maneira mística, pensando que sacrifícios proporcionam riquezas e paz. Agora, o que Deus requer é comprometimento com o princípio eterno e universal do amor ao próximo.
2 – Os Dízimos de Deuteronômio 14.22-29:
Posso imaginar e compreender que alguns leitores discordem das coisas que eu disse acima. Realmente, não é porque escrevi algumas páginas com uma nova proposta de interpretação que todos conseguirão abrir mão de leituras mais antigas e tradicionais, que lhes foram transmitidas por verdadeiras “autoridades espirituais”. Mas minhas conclusões sobre os dízimos e ofertas na Bíblia não se baseiam somente na minha interpretação de Malaquias; há outros textos que podem ser empregados nessa discussão, dos quais, um deles é Deuteronômio 14.22-29, que também fala sobre dízimos e que surpreendentemente é ignorado pela grande maioria dos líderes religiosos de hoje. Vamos primeiro ler o texto:
(22) Certamente darás os dízimos de toda a novidade da tua semente, que cada ano se recolher do campo. (23) E, perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu cereal, do teu mosto, do teu azeite e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer ao SENHOR, teu Deus, todos os dias. (24) E, quando o caminho te for tão comprido, que os não possas levar, por estar longe de ti o lugar que escolher o SENHOR, teu Deus, para ali pôr o seu nome, quando o SENHOR, teu Deus, te tiver abençoado, (25) então, vende-os, e ata o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que escolher o SENHOR, teu Deus. (26) E aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, e por ovelhas, e por vinho, e por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma; come-o ali perante o SENHOR, teu Deus, e alegra-te, tu e a tua casa; (27) porém não desampararás o levita que está dentro das tuas portas; pois não tem parte nem herança contigo. (28) Ao fim de três anos, tirarás todos os dízimos da tua novidade no mesmo ano e os recolherás nas tuas portas. (29) Então, virá o levita (pois nem parte nem herança tem contigo), e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão dentro das tuas portas, e comerão, e fartar-se-ão, para que o SENHOR, teu Deus, te abençoe em toda a obra das tuas mãos, que fizeres.
Eis aí sob nossos narizes um texto bíblicos que oferece mandamentos sobre dízimos e que é bastante diferentes de Malaquias. Neste caso, não temos uma interpretação tradicional que condiciona nossa leitura, antes, a grande maioria dos cristãos nem mesmo o conhece. Quero comentá-lo brevemente, e o leitor deve vez ou outra voltar ao texto bíblico para confirmar se o que digo é coerente.
Primeiro, lendo o texto dos versículos 22 a 26 o que vejo é uma festa religiosa. Trata-se como antes, de um texto escrito para camponeses, que plantam e criam animais para sobreviver. Eles são chamados a investir numa festa religiosa que seria feita também no Templo de Jerusalém, o lugar que Deus iria escolher. Importante mesmo é que o dízimo de tudo deveria ler levado e comido durante a festa por toda a família. Não há entrega a sacerdotes, não há patrocínio ao Templo, mas a dedicação de uma porção da produção agrícola que é investida numa festa de comunhão e refeição comunitária.
O verso 27 fala do cuidado com os levitas. Como todos eram agricultores e tinham recebido parte da terra por herança, tinham que ajudar os levitas, que serviam religiosamente nas as aldeias e que por decreto divino não possuíam propriedades nem herança. Não tendo como plantar, eles não tinham o que comer, e era correto que a partir desse acordo nacional todos se unissem para ajudá-los. Assim, os dízimos serviam para celebrar a Deus pela produção do último ano de trabalho, para reunir a família e o povo todo em comunhão de mesa, e para não permitir que os levitas vivessem miseravelmente por causa da sua vocação.
Curioso hoje é que eles podiam administrar tal celebração por conta própria, comendo e bebendo o que desejassem. Assim, o dízimo era uma instrução que estava por conta de cada chefe de família, e o Templo ou o Estado não intervinham em sua prática.
Do v. 28 em diante o texto sofre algumas mudanças, sua redação é outra. Diz que ao final de três anos os dízimos não serão usados para a festa religiosa familiar, mas exclusivamente em boas obras para com os mais necessitados da nação. Nesta ocasião, deve-se levar o dízimo para a porta da cidade e deixar que os levitas, os órfãos, as viúvas e os estrangeiros comam até fartar-se. Nesse caso, o dízimo serve para suprir a carência das pessoas necessitadas da sua localidade. A recompensa por tal dedicação (v. 29b) é que Deus abençoa quem assim procede, fazendo prosperar as obras das tuas mãos.
Outra vez, segundo a religiosidade antiga quem agrada a Deus garante a boa colheita no ano seguinte, mas aqui não é por se queimar animais sobre um altar que se agrada a Deus. Aqui não há sacrifícios no Templo, todo o investimento é usado para solucionar a desigualdade social e fortalecer a tradição religiosa nacional. Novamente é a fé e a comida dos pobres que está em jogo. Os levitas não são prósperos, são também tão dependentes como os órfãos e as viúvas, e espera-se que em nenhuma aldeia haja pessoas morrendo de fome.
Desta vez o autor não é da estirpe sacerdotal, mas é um levita. Ele se preocupa com a celebração a Deus, com a ajuda aos pobres, e com a sobrevivência de sua própria família. O problema não é a interpretação que se faz desse texto, mas a completa falta de leitura do mesmo. Então, pergunto o que o leitor já deve estar se perguntando: Por que nas igrejas evangélicas de hoje somente Malaquias é lido? Na verdade, Malaquias é lido, porém, mal interpretado. Deuteronômio 14 não dá tanta margem para que se interprete o texto para benefício de instituições religiosas e líderes, motivo pelo qual, é um texto desconhecido da maioria. Lê-lo e comprometer-se com ele nas igrejas de hoje provocaria uma revolução na maneira de se praticar obras sociais.
Tire então suas próprias conclusões: É correto dizer que o cristão não pode administrar seu dízimo? Será que se eu levasse meu dízimo para uma instituição de caridade e não para a igreja, eu estaria roubando a Deus? Mas não vemos nos dois textos que a preocupação central é a fome, a desigualdade, a desumanidade? Para mim, tudo o que se diz atualmente nas igrejas sobre dízimo é, ou uma 1) má interpretação motivada pela tradição e falta de cultura bíblica do povo e de seus líderes, ou 2) completa manipulação interesseira do texto e da fé simplória do povo.
Mas ainda não acabei. Quero falar rapidamente de uma outra passagem bíblica, desta vez do Novo Testamento, para vermos como a oferta a Deus, também para Jesus, nunca é o caminho para a prosperidade de alguns, mas para a igualdade de todos.
3 – Nem Pobreza nem Prosperidade, Jesus quer Igualdade (Marcos 10.29-30):
Lendo o capítulo 10 de Marcos vemos que um jovem rico havia procurado Jesus. Ele seguia os mandamentos da Torá como bom fariseu, mas queria ser completo, e Jesus lhe diz que para isso era-lhe necessário vender tudo o que tinha, dar aos pobres, e segui-lo. Sabemos da história, e sabemos que o jovem não seguiu Jesus porque tinha muitas riquezas. Depois que o jovem deixa-o, Jesus aproveita a ocasião para dizer aos seus discípulos como as riquezas impedem o homem de entrar no Reino de Deus. Ficamos com a impressão de que o desejo de Jesus é que todos façam um voto de pobreza, mas isso também é um erro. Aí entra Pedro, pensando que por ter deixado tudo por Jesus irá se dar muito bem conforme o Reino irrompia. Vamos agora ver isso lendo o texto bíblico:
“(28) E Pedro começou a dizer-lhe: Eis que nós tudo deixamos e te seguimos. (29) E Jesus, respondendo, disse: Em verdade vos digo que ninguém há, que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou campos, por amor de mim e do evangelho, (30) que não receba cem vezes tanto, já neste tempo, em casas, e irmãos, e irmãs, e mães, e filhos, e campos, com perseguições, e, no século futuro, a vida eterna”
Agora vemos que a ação de Pedro ao deixar tudo e seguir Jesus é aprovada. Ele iria receber cem vezes mais nesse tempo, além da vida eterna; além, é claro, de perseguições. Então concluímos que temos que ser “mão aberta”, dar muito para receber muito, e a caridade é vista como um meio de ficar ainda mais rico. Novamente estamos enganados.
Na verdade, o Reino de Deus para Jesus tinha uma aplicação escatológica, ou seja, para o fim dos tempos, e outra para a vida aqui, na prática e no presente. Abrir mão de todos os bens significava fazer caridade, ajudar aqueles que já faziam parte do movimento do Reino e que não tinham mais o que comer. Imagino que as coisas funcionavam assim: Ao entrar no movimento do Reino você era convidado a doar seus bens à comunidade, ajudar os mais pobres, e assim, você mesmo não seria pobre, já que teria também o direito de possuir tudo o que a comunidade possuía. Por isso, Jesus diz que em vez de uma casa, você teria várias. Se um dia você não tivesse onde dormir, no movimento do Reino você seria acolhido por cem; se não tivesse quem o ajudasse, no movimento do Reino teria irmãos prontos a ajudar; se não houvesse uma família para o consolar, no movimento sempre haveria muitas mães que poderiam fazê-lo.
Assim, o convite para vender os bens, dar aos pobres e seguir Jesus, não era um convite à pobreza, mais um convite à comunhão plena na comunidade. Doando tudo você ajudava na solução da pobreza, na igualdade social entre membros, e recebia a garantia de sobrevivência a partir dessa mesma vida em comum. A promessa de receber cem vezes mais nesse tempo não quer dizer ficar rico, mas ter sempre o necessário para suprir suas necessidades. Ou seja, o objetivo de Jesus é oferecer a todos os seguidores uma vida digna, onde os mais ricos não são egoístas e os mais pobres não passam fome. Isso coincide com a proposta dos textos que lemos do Antigo Testamento, cujo objetivo é solucionar as injustiças através da união de um povo de fé, empenhado em construir uma sociedade melhor. Contudo, Jesus é mais radical e espera que o seguidor invista tudo, e não apenas do dízimo.
Notemos que além de oferecer vida eterna, Jesus veio para oferecer uma proposta de vida mais humana. Como me ensinou meu professor, o Dr. Paulo R. Garcia, no Reino de Deus, tanto quem já era rico e investiu muito na comunidade, quanto quem não tinha muito e pouco doou, no final do dia recebem o salário necessário para as suas necessidades (Mt 20.1-16); todos têm direito ao mesmo denário. Não trata-se de injustiça com aqueles que muito deram, mas de igualdade. Neste ponto, acredito que as instituições religiosas de hoje deixam muito a desejar.
Conclusão
Após lermos três textos, a que conclusão chegamos? Relemos três textos bíblicos, que foram escritos com um intervalo de séculos entre eles, e que sem dúvida apresentam propostas de fé e prática divergentes. Temos que escolher apenas um deles e descartar o resto? Malaquias deve continuar sendo o texto preferido para se falar da vida econômica dos cristãos?
Acho que nesse caso, as divergências entre textos sagrados devem ser ignoradas. Ou seja, se um orienta a sacrificar, o outro a patrocinar uma festa e fazer caridade na comunidade local, e o outro a doar tudo à comunidade e viver em comunhão plena de bens, penso que nenhuma dessas coisas é realmente imprescindível. Os desacordos nos mostram como eles tentaram, mas não nos dá uma proposta definitiva. Por outro lado, as convergências devem ser aproveitadas, pois esses talvez sejam os elementos inspirados dos textos, que os fizeram compor um único livro no final. Assim, temos a devoção religiosa e o comprometimento social como únicos mandamentos reais.
Hoje, as igrejas até podem solicitar dos seus membros dízimos, ofertas, e isso em si não é o problema. As questões são: A Bíblia realmente apóia os estatutos econômicos adotados pelas igrejas de hoje? Onde esse dinheiro é investido de verdade? Por que eles fazem segredo sobre o destino do nosso investimento? Qual a real motivação para tal exigência financeira, que inclusive é feita sob ameaças de condenação e acusações de roubo? Infelizmente, fala-se de manutenção de prédios, não de obras sociais, não de amenizar o problema da fome, não de investimento em educação em comunidades carentes.
Pior, a igreja não procura em nada fazer com que a consciência gananciosa dos homens de nossos dias mude; não existe nenhuma iniciativa no discurso religioso sobre dízimos que esteja voltada para transformar a vida das pessoas nesse aspecto, em fazer com que dentro dessas comunidades todos vivam dignamente. Assim, a obrigação dos membros é só dar, não decidir, não acompanhar, não julgar o que se faz com o dinheiro. Isso, ainda que não implique em desonestidade, nada acrescenta às pessoas e à sociedade. Continuam todos em suas buscas desenfreadas por cada vez mais e mais dinheiro, gastando com coisas desnecessárias, preocupando-se só consigo mesmos. A cobrança dos dízimos, então, é até prejudicial, serve para consolar nossa consciência, pois ao doá-lo achamos que já fizemos nossa parte e cruzamos os braços esperando pelo governo para a solução das crises humanas.
Para terminar, deixe-me dizer que não acho que um socialismo seja a solução para os nossos problemas. Mas independente da estratégia, nossa consciência deve ser transformada a cada dia. O Reino de Deus não se resume à vida eterna, mas também à vida digna nesta terra, para todos. Quem quer servir a Deus não pode, definitivamente, acumular riquezas enquanto vê seu irmão passando fome. Porém, se é consenso que todos temos que investir, fica em aberto a estratégia para que tais investimentos colaborem com a melhoria das condições de vida dos filhos de Deus em todas as partes.
Discursar sobre tais coisas, definitivamente, não é meu “forte”. Prefiro que minha contribuição ao leitor seja minha proposta de interpretação do texto bíblico, deixando que cada um faça com sua fé bíblica o que achar mais correto.