segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

ESTE É O TEMPO DA IDOLATRIA? PROPOSTA PARA UMA NOVA FORMA DE RELIGIOSIDADE


Meu título já traz uma pergunta, e sugiro que antes de ler o que tenho a dizer, reflita a respeito da questão e ofereça a si mesmo uma resposta. Enquanto pensa, saiba que esta resposta depende em grande medida do que você entende por idolatria. Não quero entrar em discussões sobre teologia sistemática, mas para não deixar termo tão importante sem nenhuma definição, adotemos provisoriamente uma bem simples: idolatrar algo é prestar culto ou adorar algum ídolo, um objeto que em determinado meio representa uma divindade. O idólatra é aquele que, por não poder ou não saber relacionar-se com sua divindade diretamente, adota algo em seu lugar, e este algo, é o que chamamos de ídolo.

É provável que você tenha pensado em algumas formas de religião contemporâneas que estimam determinados objetos para dizer se hoje existe idolatria, mas essa não é a resposta que eu ofereço à pergunta inicial. Para chegar até minha resposta, vou procurar expor com minhas próprias palavras uma teoria que em 2008 ouvi de um professor, o Dr. Jung Mo Sung. Não sei se o próprio Jung Mo Sung já registrou tal idéia nalgum trabalho, e por isso é importante fazer referência a ele, que é o verdadeiro autor desta reflexão.

Eu começo afirmando que nós, por mais religiosos que possamos ser, como homens não conhecemos nem jamais poderemos conhecer a Deus. Se há um Deus e se ele é tão grande quanto dizemos, aí então é que somos obrigados a reconhecer que esta grandeza imensurável não poderia ser conhecida ou plenamente compreendida por qualquer ser humano. Talvez alguém realmente tenha tido suas experiências místicas, suas viagens celestiais, suas visões; mas tais “experiências” não podem ser mais que vislumbres. Embora hoje seja tão comum ouvirmos falar em “intimidade com Deus”, penso que no máximo podemos experienciar algo entre a reverência temerosa do Pentateuco e a certeza de missão que o Novo Testamento apresenta através das narrativas sobre Jesus.

A verdade é que cada um de nós cria uma representação pessoal de Deus. Para uns, que vivem fora de qualquer igreja e que nunca leram a Bíblia, talvez ele seja apenas um administrador invisível do mundo em que vivemos. Para outros, marcados pelas fortes narrativas do Antigo Testamento, ele é acima de tudo um juiz implacável que conta as horas esperando pelo dia do grande julgamento, em que finalmente os pecadores padecerão. Há ainda os modernos evangélicos que são íntimos de Deus, que querem seu toque (que hoje já não mata ninguém), seu carinho, seu amor. Não posso dizer que qualquer um desses muitos deuses criados pela imaginação humana (a partir de sua experiência particular, é claro), é completamente falso ou verdadeiro; não há como avaliar tal coisa.

O ponto principal é que, seja qual for a idéia que temos sobre Deus, trata-se de uma idéia incompleta, limitada, e que fala muito mais sobre nós mesmos do que sobre um suposto Deus. O problema que queremos levantar é que, se este Deus que criamos não é Deus, mas uma imagem humana, limitada às possibilidades da nossa mente e condicionada por nossa existência, adorar este Deus como se fosse o único e verdadeiro Deus é também uma forma de idolatria. Ora, ainda que meu deus possa não possuir forma material, ele é tão fraco como representação da divindade quanto qualquer estátua; é um deus humano, e talvez, quando insisto em adorá-lo estou fazendo o mesmo que aqueles que colocaram suas idéias sobre Deus numa forma material.

Esta era a teoria do professor Jung que queríamos trazer. Quer dizer que todo deus que porventura adoramos não é deus; que toda forma de divindade que podemos conceber por obras artísticas, palavras, canções, ou mesmo pensamentos, é uma espécie de ídolo que quer representar o verdadeiro Deus para nós. Assim sendo, em todas as formas de religiosidade há idolatria, posto que cada religião institucionalizada oferece aos “fiéis” uma imagem divina que lhes parece mais crível. Por isso, eu diria que estamos vivendo num tempo em que a idolatria atingiu proporções nunca vistas, pois se nos dias do Antigo Testamento os homens diziam que era impossível ver Deus, ouvir sua voz, ou ter qualquer contato direto com ele sem ser exterminado, a religiosidade moderna insiste que devemos nos aproximar pessoalmente de Deus, e com arrogância jamais vista, afirma conhecê-lo.

Parece loucura toda esta discussão? Que solução poderíamos sugerir para os muitos religiosos que só querem conhecer a Deus? Quiçá o melhor a fazer é procurar viver como quem é conhecido, mas não conhece, tendo como inestimável privilégio cada possível experiência religiosa. Imaginemos uma religião formada por ignorantes assumidos, que são mais humildes quando ensinam, já que não podem afirmar nada sobre Deus e nem questionar as opiniões alheias. Imaginemos uma religião de pessoas que não levam tão a sério as leis eclesiásticas, já que não sabem se foi Deus mesmo que legou qualquer uma delas aos homens. Uma religião de pessoas que sem se envergonhar, sentem-se desconfortáveis quando oram, pois não sabem se alguém os ouve, não sabem para onde olhar, que expressão corporal assumir, nem sabem com que tom de voz devem falar. E imagine pessoas que se esforçam por fazer o que lhes parece bom, sem saber de verdade se haverá outra vida, se haverá recompensas ou castigos, mas que se deixaram encher de um espontâneo anseio por contribuir com o criador desse maravilhoso mundo, seja ele quem for, e que por isso querem tornar este lugar melhor através de seus pequenos atos.

Se alguém é capaz de viver tal religiosidade, admita, é porque realmente tem fé. Os demais talvez sigam suas religiões por medo do inferno, por ambição, por soberba, por hábito... mas os que conseguem abandonar qualquer forma de idolatria, apenas seguem.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

OS POBRES BEM-AVENTURADOS: MATEUS 5.3-12


Logo no início do grande discurso e famoso discurso de Jesus na montanha, encontramos algumas seções narrativas cuja delimitação não representa grande desafio. A primeira delas traz as famosas bem-aventuranças (5.3-12), que pretende ter como interlocutores um grupo bem definido de seguidores de Jesus, os supostos membros do grupo mateano. As bem-aventuranças os descrevem como pessoas de sorte, abençoadas, detentoras de uma espécie de felicidade ou privilégio de origem divina que os diferencia. Aqui, o texto nos dá bons indícios de que o grupo de Mateus é “pobre” e “perseguido”, e o apelo do texto é para que os destinatários aceitem este destino e suportem as limitações, acreditando que este é o caminho correto. Trata-se de uma exortação para que ninguém abandone a fé ou o grupo por conta das dificuldades que esta opção impõe.

Podemos tratar de alguns detalhes mais específicos, e o primeiro deles é que as bem-aventuranças de Mateus são em maior número do que as da versão de Lucas. Supõe-se, é claro, que ambos os evangelistas herdaram o texto da Fonte Q, e que Mateus teria dado um arranjo mais elaborado à sua versão. Na comparação com Lucas 6.20-23, um detalhe muito debatido da versão de Mateus é o acréscimo “em espírito” que geralmente nossas Bíblias trazem (Mt 5.3). Para muitos comentaristas, Mateus estaria “espiritualizando” o texto, fazendo com que o “pobre” deixasse de ser uma categoria social simples como em Lucas. Porém, essa explicação não condiz com o Evangelho de Mateus num todo, que dá muitíssima ênfase às questões econômicas. A solução que nos pareceu mais coerente para este problema foi oferecida por Paulo Roberto Garcia, que disse que “... o termo em espírito não espiritualiza a palavra pobre, muito pelo contrário, ele aponta o motivo que levou a comunidade a ser pobre. Em outras palavras, pela opção da vida "em espírito", a comunidade passa a ser pobre” (1995, p. 50-52). Garcia entende que o artigo definido grego da frase to pneumati está no caso “instrumental”, o que nos leva a entender a expressão como “por meio do espírito”. Quer dizer que a “pobreza” de Lucas não é excluída por Mateus, mas acrescida de um detalhe importante, que demonstra que para o grupo mateano a pobreza não era uma das vicissitudes que a vida lhes impunha, mas uma consequência da opção de fé que estavam fazendo. Por tudo isso, traduziríamos Mateus 5.3 assim: “bem-aventurados os pobres pelo espírito”.

As demais bem-aventuranças continuam apregoando aos pobres, fracos e poucos discípulos, que eles estão no caminho certo. Fazendo um resumo, o texto trata o próprio grupo como “os que choram”, os “humildes”, “os que têm fome de justiça”, e de “perseguidos por causa da justiça”. Essas expressões nos oferecem vislumbres das condições desvantajosas em que estes cristãos se encontravam, ou pensavam que se encontravam. Por outro lado as bem-aventuranças que os desenhou como grupo marginalizado, fraco, pobre... exalta outras virtudes deles ao chamá-los de “misericordiosos”, “puros de coração” e “pacificadores”. Parece que moralmente eles se consideravam superiores, e tais procedimentos exemplares inspirados na religiosidade talvez seja o que eles chamam de “justiça”. Temos um grupo que pretende ser exemplar no que diz respeito à moral e à religião, mas que julga sofrer preconceitos, sanções econômicas, perseguições, por parte de outros. As bem-aventuranças, então, não só explica ao próprio grupo quem eles são, construindo fronteiras e formatando a identidade social do grupo, como também os consola e motiva, através de promessas religiosas. Por isso, diz que os pobres de hoje serão nobres membros de uma corte quando o Reino dos Céus vier, diz que receberão grande herança, que verão a Deus...

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

REFLETINDO SOBRE A NATUREZA DO TRABALHO EXEGÉTICO (PARTE 2)

O Exegeta e seu Público

Para falar da natureza da atividade exegética, temos que considerar que esta exegese a que me refiro é bíblica; trata-se de uma ciência, é verdade, mas de uma ciência cujo objeto de estudo é um ajuntamento de livros que são venerados principalmente por religiosos. Isso não quer dizer que a Bíblia contenha apenas conteúdo religioso, mas que seus leitores comuns a vêem como um livro unicamente religioso. Para falar a verdade, dificilmente encontraremos um exegeta que não tenha, ao menos no começo dos seus estudos, alimentado um relacionamento de fé para com a Bíblia. Essa primeira constatação já possui várias implicações para a nossa reflexão:

Primeiro, vemos que o exegeta é um profissional capaz de desmistificar as narrativas bíblicas e de revelar o valor que elas possuem como artefatos da humanidade. A Bíblia pode ser lida como fonte para a pesquisa sobre a antiguidade, para a compreensão da religiosidade, da cultura, da política, da economia... Segundo meu ponto de vista, é papel do exegeta demonstrar que não é preciso ser judeu ou cristão para apreciar suas narrativas, e que mesmo se a religião cristã um dia chegasse ao fim, a Bíblia mereceria um lugar entre as grandes criações literárias dos povos antigos ao lado de Homero.

Em segundo lugar o exegeta brasileiro deve sempre levar em conta que os cristãos continuam considerando-se os “donos” dessa literatura, o que quer dizer que sempre, por mais acadêmicos que sejamos, os cristãos comporão a maior parte do nosso público. Ora, o exegeta encontrará eventuais resistências às suas ideias, já que a exegese, não comprometida com dogmas, inevitavelmente apresentará leituras que comprometem o status eclesiástico. Felizmente, nos dias de hoje não acredito que tais resistências possam transformar-se em animosidades mais severas, em perseguições. Por outro lado, o apreço que os cristãos dedicam à Bíblia é o grande aliado para que o profissional dedicado à exegese encontre nessa atividade uma fonte de subsistência. O público religioso, em especial os evangélicos que nesses nossos dias demonstram cada vez mais interesse pelo conhecimento bíblico, comporá nossa principal audiência, seja na igreja, nos seminários ou nas universidades... Só posso sugerir que o exegeta seja simpático ao seu público e se aproveite com prudência do próprio fundamentalismo religioso para demonstrar o valor que seu empenho interpretativo possui.

Em resumo, o exegeta tem em suas mãos a responsabilidade de conhecer, preservar e divulgar a literatura bíblica em todas as instâncias da sociedade, o que é um trabalho em favor da humanidade. Mas é em relação ao seu público religioso que o exegeta é mais responsável, pois como são sua principal audiência, este será o público mais influenciado por seu trabalho. A exegese é capaz de transformar a religiosidade dos indivíduos, estudantes de teologia e ciências da religião em primeiro lugar, e dos ouvintes que nas igrejas poderão ser instruídos por sermões mais inteligentes. A exegese pode então transformar grupos religiosos, e quiçá em longo prazo não possa expandir estes resultados à religiosidade de toda uma nação?

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

REFLETINDO SOBRE A NATUREZA DO TRABALHO EXEGÉTICO (PARTE 1)

Introdução

Tenho dedicado cada vez mais tempo à leitura de historiadores. O interesse pela historiografia me parece natural, já que como exegeta, tenho que lidar de forma criteriosa, como os historiadores, com documentos antigos que precisam ser interpretados, decifrados, traduzidos, para que se enfim desempenhem seu papel em nossos próprios trabalhos contemporâneos. Mas meu interesse nessas leituras não é pela história, pelo passado humano si; tenho prazer em ler historiadores porque me identifico sobremaneira com a forma com que os historiadores refletem sobre a natureza de sua profissão.

Ao longo do último século os historiadores tiveram que superar crises em sua disciplina. As ciências sociais, de forma bem geral, pareciam em certo momento que suplantariam a historiografia, e a famosa Escola dos Annales (1929) foi motivada em grande parte pela necessidade de redefinir a prática do historiador diante do status científico que estas outras disciplinas adquiriam. Seguindo pelo século XX, a linguística e a semiótica atacaram a própria essência da história levando-os a uma crise de paradigmas; desde então se diz que o historiador tanto pesquisa quanto cria enquanto reconstrói e conta o passado, e daí toda história contada passa a ser uma leitura pessoal, ainda que tenha sido produzida seguindo critérios metodológicos rigorosos. Estas crises não destruíram a historiografia, mas obrigaram os historiadores a refletir sobre sua atividade, delimitar seus objetos, definir seus papéis para a sociedade humana.

Enfim, tenho visto muitos historiadores se arriscarem nesses debates, e parece que algum consenso está sendo alcançado, o de que a história, ainda que só possa nos oferecer reconstruções limitadas do passado, é importante para a “constituição da memória social e configuração de nossa própria identidade”. A verdade é que o tempo passa, e o que fica para a posteridade não são os fatos, mas as narrativas que os historiadores produzem sobre aqueles fatos. Nossa história depende da competência e do empenho desses pesquisadores, e o que somos depende em boa medida do entendimento que temos dessas narrativas. Podemos explicar quem somos como indivíduos, como grupos sociais ou mesmo nações, a partir das narrativas históricas, fazendo o mesmo que os antigos faziam a partir das suas mitologias.

Então me pergunto: em que pé anda a reflexão sobre a natureza do trabalho exegético entre os exegetas? Este é um tema para pesquisa, que demandaria tempo e trabalho árduo. Porém, não é este meu objetivo aqui. Embora eu já tenha escrito centenas de páginas sobre a exegese, imaginei que seria conveniente voltar a estas questões que dão sentido à nossa atividade profissional.